domingo, 11 de julho de 2021

O RIO MADEIRA E SEUS AFFLUENTES: As últimas explorações nos rios Beni, Madre de Dios, Orton e Abuná

Conferência realizada pelo Sr. Dr. D. Juan Francisco Velarde, ministro residente da Republica da Bolivia no Brazil e membro da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, na sessão publica de 28 de Junho de 1886, ás 7 horas da noite, honrada com a augusta presença de S. M. o Imperador e presidida pelo Sr. Visconde de Paranaguá.

Karipuna do Amazonas e Madeira por Franz Keller Leuzinger

Senhor. — Meus senhores. — Na nossa formosa America do Sul existem ainda regiões inexploradas ou imperfeitamente conhecidas, cujo estudo interessa á sciencia.

A civilisação parece haver limitado seus benefícios á parte externa do continente, emquanto o interior, com poucas excepções, permanece inculto e no seu estado primitivo.

O esforço humano, que tantas obras prodigiosas vai realizando, com o poderoso auxilio do capital e dos elementos modernos, ainda não entrou em luta com as forças vivas dessa natureza vigorosa e pujante.

Muitos rios caudalosos que descem de montanhas mysteriosas e atravessam magníficas selvas ou campos de incomparavel fertilidade, ainda não foram utilisados em beneficio da humanidade.

O deserto no meio da vida, a riqueza inexplorada, os elementos naturaes abandonados, estão chamando a immigração, o commercio e a industria.

O isolamento actual, a inércia e o abandono a que se acha condemnada a mais bella porção da America, não podem subsistir por mais tempo.

Ha alli por demais atractivos para interessarem em seu favor a vontade dos Governos e a inércia dos homens de trabalho e de acção.

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Estas considerações geraes nos suggere o grande Valle do Amazonas em sua maior parte deserto, e mui particularmente a bacia do caudaloso Madeira, seu mais extenso e poderoso affluente.

O rio Madeira nasce nas regiões da prata, e do ouro, da quina e da coca.

Semelhante a uma arvore gigantesca, elle tem por tronco o baixo Madeira, de livre e fácil navegação; o nó dos ramos é a região não navegável, obstruída por 60 leguas de corredeiras e cachoeiras; os ramos e galhos são rios que com differentes nomes penetram no interior da Bolivia, do Brazil e do Peru.

Destas tres regiões em que se divide naturalmente o rio, só a região inferior aproveita das vantagens da navegação a vapor, podendo asseverar-se, que ella é também a única, que se acha perfeitamente conhecida.

A região intermediária, de prodigiosa fecundidade e belleza, só poderá ser utilisada mediante a construcção da via-ferrea Madeira e Mamoré, sobre cuja necessidade e conveniência não ha muito tempo se occupou, em interessantes conferências, o nosso intelligente consocio o Sr. Commendador Dr. Julio Pinkas.

A parte superior começa na confluência dos rios Beni e Mamoré 10° 22' 30" lat. S. e 68° 19' 30" long. 0. de Paris.

Esses rios recebem por sua vez o Madre de Dios e o Itenez respectivamente.

Esses quatro grandes rios formam realmente o rio Madeira e occupam desde suas cabeceiras uma área de 12° em long. sobre 9º em lat., a contar de Paucartambo no Peru, departamento de Cuzco (71º long. 0. Greenw.) até as proximidades de Matto Grosso, Brazil, no rio Alegre a 59° long. 0. Gr.

São estes os pontos salientes do angulo formado pelos rios Madre de Dios e Itenez (Guaporé).

Traçando-se um semi-circulo, no vértice desse angulo se alcançará Chuquisaca a 19° lat. S.

Neste perímetro se acham comprehendidas tres nacionalidades : Bolivia no centro, ao Leste Brazil, e Peru ao Oeste.

Aquella republica com seus departamentos de Santa Cruz, Beni, Cochambamba, Chuquisaca e La Paz; o Brazil com a extensissima provincia de Matto Grosso e o Peru com os departamentos de Puno e Cuzco.

Não menos de 1 1/2 milhão de habitantes, vivem nessa immensa região, que tem capacidade para conter 23 vezes esse numero.

O clima é temperado e frio na parte montanhosa, cálido e humido nas planicies. Naquella crescem todas as plantas da zona temperada desde a vinha e oliva até o trigo, a cevada e as batatas, nestas se ostentam todos os productos tropicaes, taes como o milho, arroz, cacáo, fumo, algodão, etc.

E todo este mundo que podia ter fácil sahida pelo Madeira se acha encerrado, infelizmente, pelas cachoeiras do mesmo rio, que obstruem a navegação.

No dia em que desapparecer essa barreira pela construcção de uma via-ferrea, começará uma nova vida de actividade e progresso.

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Dos quatro rios principaes, que formam o Madeira, só dous foram navegados desde os primeiros tempos da conquista: O Itenez (Guaporé) e o Mamoré.

O Itenez ou Guaporé foi descoberto pelos irmãos Simão e Estevão Corrêa e o primeiro viajante que por elle desceu foi Manuel Felix de Lima, que em 1742 após longa e penosa viagem pôde chegar a Belém do Pará. D'ahi em diante ficou estabelecida essa communicação com Matto Grosso, porém o desgraçado Lima teve a sorte de todos os homens de sua tempera.

Em prêmio da sua intrepidez, foi perseguido, preso e seus bens confiscados.

O Itenez é um formoso rio de águas tranquillas de 1.500 kilometros de curso e de fácil navegação. (Fonseca) São numerosos seus afluentes e todos elles navegáveis.

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O Mamoré nasce no paiz dos Yuracarés e atravessa a planície dos Mojos, Canichanas, Movimas e Cayuvabas.

Foi navegado desde a mais remota antiguidade.

O primeiro hespanhol que penetrou em Cochambamba foi Diego Aleman, que teve um fim trágico; só se pôde porém fazer formal conquista pela catechese, emprehendida pelos padres jesuitas com tanto zelo quanto perseverança.

Em ambas as margens do Mamoré existem extensos e fertilissimos campos e pastos onde o gado vaccum se multiplica com uma prodigiosa fecundidade.

Os departamentos de Cochambamba, Chuquisaca e Santa Cruz enviam suas águas ao Mamoré pelos Securé, Chaporé Chimoré, Mamorésito, Ypacomi e Rio Grande ou Guapehy, todos elles navegáveis até a proximidade da cordilheira, ou melhor dito, desde que entram nas planicies.

Por vapores de um metro de calado é navegável o rio Mamoré em todo tempo desde Guajará-mirim até a confluença do Chymoré com o Ichilo ou Mamorésito.

Subi por este rio em Maio de 1872 até este ponto, e encontrei nessa estação, em sua parte superior, depois da separação do Rio Grande e do Chaparé nunca menos de 4 metros. Em Setembro de 1875, o mez e o anno mais secco e por conseguinte da maior vazante do rio, tinha o Mamoré acima da sua confluença com o Chaparé, 2 metros de profundidade, emquanto este só tinha 1 metro e apresentava em sua bocca um baixio de arêa que apenas dava passagem a uma canoa.

A extensão navegável é a seguinte:

De Guajará-mirim á bocca do Guaporé.........................32 leguas

Do Guaporé á Exaltacion...............................................40    ››

De Exaltacion á Trinidad................................................58    ››

De Trinidad á bocca do Rio Grande...............................50    ››

Do Rio Grande á bocca do Chaparé..............................5      ››

Do Chaparé á bocca do Chimoré...................................40    ››

                                           Total...................................225    ››

A esta distancia póde-se accrescentar:

No Ichilo ou Mamorésito.................................................25 leguas

No Rio Grande................................................................45    ››

No Chaparé.....................................................................40    ››

No Securé.......................................................................35    ››

                                           Somma..............................145    ››

Total 370 léguas navegáveis.

Nestes últimos rios será preciso introduzir alguns melhoramentos para limpal-os e destruir os paus e troncos que se fixaram e que tornam perigosa a navegação.

Durante 6 mezes do anno, de Novembro a Maio, são também navegáveis outros affluentes secundários do Mamoré, taes como o Tyamuchi, Apere, Yacuma, Iruyani e o Matucaré.

Nas immediacões do Mamoré existem seis povoações do departamento do Beni e outras nove no interior.

As cidades de Santa Cruz, Cochambamba e Sucre ficaram de um ponto navegável a uma distancia respectiva de 30, 50 e 75 léguas.

A superfície tributaria do Mamoré é de 9.985 léguas quadradas e a do Itenez 9.715.

A quantidade d’agua deste, segundo Keller, é de 663m3 por segundo em águas baixas; de 1.579 em águas medias de 5.120 nas enchentes; emquanlo o Mamoré tem: 835—2530—7624 em cada caso. A differença resulta de que o Mamoré desce das montanhas andinas de Leste, comprehendidas entre o Tunari e Espejos — os dous pontos mais elevados dessa secção; emquanto o Itenez tem sua origem nas montanhas mais baixas do Aguapehy e da Serra Geral e nas lagoas e pântanos da Provincia de Velasco, antigamente conhecida com o nome de Chiquitos.

A mesma causa origina também uma correnteza maior, quasi dupla, de um sobre outro e a differença na indole e no caracter destes rios, visto que o Mamoré é turbulento, impetuoso, emquanto o Guaporé se manifesta sempre tranquillo e firme em seu curso.

O que acabo de expor até aqui, não é novo; D’Orbigny, Gibbon, Leon Favre, Church, Medinaceli e ultimamente Caymari e Pinkas occuparam-se do mesmo assumpto.

Meu objectivo foi unicamente rememoriar certos factos.

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Passo agora a considerar os rios Beni e Madre de Dios, a respeito dos quaes terei alguma cousa de novo a dizer, em vista das recentes explorações effectuadas pelo padre missionário, Frei Nicolás Armentia, da ordem de S. Francisco, que ha dous mezes passou por esta Corte em regresso da Bolivia, depois de haver permanecido cerca de dous annos naquelles rios, estudando-os e procurando uma communicação com o Rio Purús.

Tanto o Beni como o Madre de Dios foram por muito tempo objecto da preoccupação dos geographos. Conheciam-se as cabeceiras destes rios desde remota antiguidade, por haver feito parte dos domínios incasicos e da conquista hespanhola; porém, a parte inferior se achava velada pelo mysterio do desconhecido.

Não é destituido de interesse o conhecimento dos esforços empregados para explorar e reconhecer estes rios, até o presente.

Antes, porém, se me permittirá dar uma idéa geral do rio Beni.

Esse rio desce do departamento de La Paz e recolhe todas as águas da cordilheira dos Andes comprehendida entre o Pico del Tunari, nas proximidades de Cochambamba e o Nó de Apolobamba, que divide a Bolivia do Peru.

Nesta secção andina se encontram os picos mais elevados, entre os quaes merece citar-se o Illimani, a 6.386m acima do mar, o Illampu ou Pico de Sorrata, a 6.503m, o Huaina-Potosi, o Mururata e outros que formam parte dessa magestosa cortina de branca e perpetua neve que se estende por mais de 60 léguas.

A superfície tributaria do Beni foi estimada por Keller em 7.068 leguas quadradas.

Na secção montanhosa se acham comprehendidas as provincias de Ayopaya, Inquisivi, Yungas, Cercado de La Paz, Larecaja e Caupolican, onde produz coca, quina excellente café.

Entre os rios componentes do Beni, deve mencionar-se por sua abundância d’agua, o rio La Paz ou Choqueyapu, o Miguila, desde cuja incorporação se navega em jangadas, águas abaixo, o Bopi, o Tamampaya, o Santa Helena ou Cotacuges, o Caca ou Sanes, também chamado Guanay, o Tuiche e o Madidi.

O Beni só era conhecido na sua parte superior até o Madidi em cujas immediações se fundou em 1802 a missãode Cavinas. Os padres missionários haviam percorrido essa região e fundado, desde tempos remotos, as povoações de Covendo, Tumupasa, Isiamas, S. José de Uchupiamonas, Muchanis e S. Buenaventura, que d’Orbigny minuciosamente descreve.

O padre Armentia, que residio sete annos nestas missões, nos dá a conhecer todas as correrias dos padres e seus esforços para catechisar os selvagens e reduzil-os á civilisação.

Abaixo do Madidi ninguém havia penetrado. O rio Beni corria mysteriosamente até unir-se ao Mamoré onde contemplavam com certa admiração os viajantes, que desciam por este rio e pelo Guaporé.

Suppoz-se, que nessas paragens desconhecidas habitavam numerosas tribus guerreiras de índios bravios, resolutos a impedir o passo a qualquer que ousasse alli penetrar.

Esta crença, baseada em tradições antigas e superstições populares, havia germinado no espirito dos habitantes do Mamoré e alto Beni um terror secreto que sempre se oppoz á realisação de viagens projectadas nessa região.

Por outra parte a falta de estimulo, e de interesses reaes contribuia em muito a manter esse abandono.

Com effeito o alto Beni só era navegado por índios simi-bravios das missões, que subiam em balsas até o Miguilla conduzindo os carregamentos de quina calisaya extrahida nas montanhas visinhas para serem remettidos a Europa transpondo os Andes.

Mais abaixo só se via um paiz desconhecido, perigos imaginários que vencer e depois as temíveis cachoeiras do rio Madeira. Apezar disto porém fizeram-se differentes tentativas para explorar o rio Beni.

O prefeito do departamento do mesmo nome D. Águstin Palácios, em 1846 desceu o Mamoré e o Madeira até Tamanduá em commissão do Governo boliviano afim de estudar a praticabilidade das cachoeiras desse rio. Regressando seguiu pelo Beni, encontrando porém a cachoeira da Boa Esperança, vio-se obrigado a retroceder, seja pela escassez de viveres ou, o que é mais provável, pela resistença opposta pela gente que o acompanhava, em seguir adiante.

O professor James Orton, do collegio de Waslar em Nova-York, depois de haver explorado o rio Napo, baixando desde o Equador até o Amazonas, resolveu estudar o rio Beni.

Com esse propósito chegou á La Paz em 1876 acompanhado pelo Dr. Ivon D. Heath. — Seu plano era descer o rio Beni desde o Miguilla, 30 léguas daquella cidade, porém a estação não era própria e além disso lutava com a falta de remeiros.

Consultando-me naquella occasião esse explorador, sobre roteiro que devia seguir, indiquei-lhe o caminho do Mamoré via Cochabamba pelo Chaparé, afim de prover-se em Trinidad, com o auxilio das auctoridades, de tudo que fosse necessário para a grande viagem: a subida do rio Beni. Assim o fez, e em Janeiro de 1877 navegava pelo Chaparé e Mamoré chegando a Trinidad em poucos dias onde encontrou o mais cordial acolhimento e facilidades para o completo equipamento de sua expedição.

Em carta, que me escreveu o Dr. Orton, dizia que aquelles rios têm muita semelhança com o alto Mississipi e julgava-os facilmente navegáveis.

Terminados os preparativos, continuou o Dr. Orton sua marcha, em companhia do Dr. Ivon e mais um pequeno destacamento de praças, para sua segurança contra selvagens.

Infelizmente, porém, ao approximar-se á primeira cachoeira (Guajará-mirim) aquelles que deviam proteger os viajantes, sublevaram-se e negaram-se a proseguir na viagem, sob pretexto de falta de viveres ou da má qualidade dos que levavam. A verdadeira causa porém, foi o terror que lhes inspirava a subida pelo rio Beni e os suppostos e imaginários riscos que iam correr.

Forçado esse illustre viajante a retroceder quando se achava próximo do Beni, objecto de seu anhelo sonhado, e vendo frustradas suas esperanças, sentiu tão grande dôr e contrariedade, que desde esse instante começou a contrahir o germen de uma molesita mortal, que breve terminou com seus preciosos dias.

Dr. Ivon foi testemunha de suas angustias e cruel decepção, e acompanhou-o até receber seu ultimo suspiro a bordo da galeota Aurora no lago Titicaca.

Este martyr da sciencia não teve ao menos a consolação de ir morrer em solo pátrio, nem de dizer um ultimo adeus á sua esposa adorada e seus queridos filhinhos.

Tres annos mais tarde, o Dr. Edwin Heath, irmão do companheiro de Orton, ex-medico da malograda empreza constructora da ferrovia Madeira e Mamoré, foi à Bolivia, depois da interrupção desses trabalhos, resolvido a realizar o pensamento daquelle professor.

Passou á Reyes pelo Mamoré e Yacuma, e desceu pelo Beni até as barracas recentemente estabelecidas nesse rio para a extracção da gomma elástica.

As circumstancias eram favoráveis ao. Dr. Heath. A extracção da gomma elástica havia attrahido alguma população, ao rio Beni, em cujas margens se descobriram extensos seringaes.

Os industriaes, movidos pelo lucro fabuloso deste commercio, avançaram até á foz do rio Ienesuaya poucas milhas acima do Madre de Dios.

O Dr. Heath foi cordialmente recebido, porém, encontrou sempre dificuldades para effectuar sua viagem, visto que ainda subsistiam os temores de grandes perigos na região desconhecida. Finalmente em um pequeno bote e acompanhado de dous únicos remeiros, que os Srs. Antonio Vaca Diez e Antenor Vasques, lhe cederam, pôde elle emprehender a viagem arriscada, separando-se da ultima barraca em 27 de Setembro de 1880.

Em 8 de Outubro chegou ao tão almejado Madre de Dios cuja união com o Beni se effectua aos 10° 51' 42" lat. S. A sua largura era de 785 yardas e a do Beni, 243. O volume cúbico tanto de um como de outro, não foi medido, porém tanto Heath como o padre Armentia e os seringueiros estão accordes em qualificar o Madre de Dios como mais caudaloso e tendo correntesa mais impetuosa do que o Beni.

Na distancia de cinco milhas tinham ambos os rios cerca de uma milha de largara e uma correnteza de 3 a 5 milhas por hora.

Dr. Heath descobriu também um pequeno rio á direita e um maior á esquerda do Beni e deu-lhes os nomes respectivos de Ivon e Orton em memória dos últimos exploradores.

No dia 10 passou a cachoeira Esperanza e no dia 11 se achava outra vez no Mamoré depois de haver navegado desde S. Buenaventura, em frente de Reyes, 543 milhas.

O problema estava resolvido. Os perigos haviam desapparecido e desde a Esperanza ficou franca a navegação, rio acima.

O Dr. Heat subiu pelo Mamoré, regressou á Reyes, ponto de partida de sua destemida viagem, e d’alli passou a La Paz pelo mesmo Beni até o Miguillia, subindo em balsas e completando o estudo desse rio, do qual levantou uma planta.

O Dr. Heath immortalisou seu nome, prestando um serviço de inestimável valor á sciencia e á Bolivia.

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Volvamos agora a vista sobre o rio Madre de Dios que, segundo parece, occupa o primeiro lugar entre os affluentes do Madeira por seu maior volume d’agua.

Este rio e seu mysterioso curso, preoecupou muito tempo aos geographos e viajantes scientificos. Noticias contradictorias faziam duvidar da sua verdadeira posição e direcção. Uns suppuzeram que elle fosse um afluente do Purús, outros do Amazonas e alguns do Beni.

Heancke e Gibbon eram da primeira opinião e quando Chandless explorou o Purús e o Aquiri em 1865 em commissão da Sociedade de Geographia de Londres, teve por objecto resolver o problema do Madre de Dios que inutilmente procurou.

Paz Soldan, o notável autor da Geographia do Peru e do Atlas geographico da mesma republica, julgou, em 1862, que o Madre de Dios desaguasse no Marañon, porque ao descrever os rios da província de Paucartambo, disse:

« Os rios caudalosos que possue a provincia reservam a essa um grande futuro quando suas águas forem sulcadas por vapores.

No centro da provincia correm os poéticos rios Madre de Dios, Inambari, Mayo, Mapiri e outros que depois de percorrer centenares de milhas, vão tributar suas águas ao gigantesco Marañon. Dasgraçadamente não se exploraram ainda esses rios e apenas tem-se noticias vagas do seu curso. »

O mesmo autor, ao occupar-se da provincia de Caravaya, accrescenta:

« O Inambari, rio muito caudaloso que separa esta provincia do território dos selvagens, tem vários tributários. O Inambari e affluente do Marañon, no qual deságua após um longo percurso. »

Os historiadores e geographos antigos se achavam entretanto melhor informados.

Garcilaso de Ia Veiga nos Comentários Reales narra a expedição mandada pelo Inca Yupanqui, em meiados do século XVI contra os Índios Musos. Conta elle, que desejando o Inca estender seus domínios além da cordilheira oriental que formava o limite do seu vasto império, determinou fazer uma excursão até a parte oriental de Cuzco.

Tendo elle recebido noticia que naquelle lado existia uma provincia chamada Musus (Moxos) que se poderia alcançar por um grande rio chamado Amarú-mayú (rios das Serpentes), mandou fazer um grande numero de balsas, que pudessem levar um grande exercito.

Que effectivamente se embarcaram nelles dez mil guerreiros, e lançados rio abaixo, tiveram grandes encontros e batalhas com os naturaes chamados Chunchus, que viviam em ambas as margens desse rio, e os quaes se submetteram bem como outras tribus ribeirinhas daquelle rio, passando os conquistadores até a provincia que chamam Musu, povoada de gente bellicosa.

D. Antônio Raymondi, o celebre naturalista que tanto escreveu sobre o Peru, referindo-se a essa conquista disse:

« Esta arriscada e nunca assás avaliada expedição, que com immensos trabalhos desceu em grande numero de balsas pelo grande Amarú-mayú, o mesmo que nas montanhas da provincia de Paucartambo do departamento de Cuzco se conhece hoje com o nome de Madre de Dios, chegou seguindo as águas do citado rio, ás terras habitadas pelos índios Mojos; resolvendo-se deste modo o problema geographico, desconhecido até estes últimos tempos, de que o rio Madre de Dios juntando-se com o Beni é tributário do grande Madeira, e não é a origem do Rio Purús como se julgava.

O mesmo Raymondi, referindo-se ao padre Tena, cuja Historia de Ias Missiones permanece inédita em um dos conventos de Lima, cita o seguinte trecho:

« O rio Paucartambo, lá onde entra nos Andes e se junta com o Vilcabamba e Vikamayu não se une ao rio Apurimac, mas sim com aquelle que vem de Mojos em uma palavra com o rio Beni para que se nos entenda melhor. Este rio Paucartambo é na realidade o tão celebre Amarú-mayú pelo qual o Inca Yupanqui, fez a conquista de Moyos de que já nos occupamos citando Garcilaso Inga.

E para provar que o padre Inga havia noticias de boa fonte, e conhecia o verdadeiro curso daquelles rios por informações dos missionários, cita este outro trecho:

« E dividindo (o Beni) estas Missões (se refere a de Mosetones ou Caupolican) da provincia de Mojos passa junto a povoação de Reyes, e correndo muitas léguas recebendo outro rio importante ao Oeste com o nome de Parabau ou rio da Castella (Madidi ou rio Madre de Dios?) entra no rio Mamoré e Itenez reunidos, tomando o nome de rio Madeira.

Os padres missionários tinham noticias exactas sobre o Madre de Dios, recolhidas nas excursões e contacto com os selvagens. O coronel Church, baseado nas informações d’elles, publicou em 1876 um interessante trabalho sobre o Purús manifestando quão errônea era a idéa de uma via de communicação para a Bolivia por esse rio, por encontrar-se na região intermediária o rio Madre de Dios como affluente que é do rio Beni.

O padre Armentia, nos subministra agora dados novos sobre as explorações dos padres referentes ao Beni e Madre de Dios. Tendo porém, permanecido inéditos os relatórios que fizeram, não é de extranhar que se houvesse perdida toda a noção exacta a esse respeito.

A conquista do Inca Yupanqui parece que não foi de grande duração, porque aquelles índios Chunchus que lhe deram tão rudes batalhas, ainda se conservam bravios e selvagens, fazendo frente a toda a expedição que pretendera baixar pelo Madre de Dios; foram elles que atacaram a Maldonado e também ao prefeito La Torre, cujo corpo atravessaram com 32 flechas.

Emquanto á expedição ao paiz dos Mojos não podemos acreditar que se houvesse realizado contra os verdadeiros Mojos que habitam no Mamoré e dos quaes existem ainda quatro povoações civilisadas, porque em balsas como baixaram os conquistadores não podiam passar as cachoeiras do Mamoré nem subir 130 léguas água acima para os sítios que os Mojos occuparam. Mais provável é que, como diz o padre Tena, a conquista se houvesse dirigido centra os habitantes do Beni, cujas cabeceiras occuparam até os dias da conquista. Entretanto é digno observar-se que esta gente bellicosa, de que falla Garcilaso, haja desapparecido quasi totalmente, seja por causa de guerras, de innundações ou de enfermidades. Certo é que hoje só se encontram pequeníssimas tribus, de boa indole e pacificas, que entraram em relações amistosas com os nossos habitantes.

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Das expedições que do Cuzco sahiram em busca do Madre di Dios, a única que conseguio baixar e percorrer todo o seu percurso, descobrindo sua incorporação ao Beni, foi a de D. Faustino Maldonado, a qual infelizmente não deu os resultados que deviam esperar-se por causa do desastroso naufrágio deste explorador, que succambio, victima da sua intrepidez, no Caldeirão do inferno, com mais três dos seus companheiros, conseguindo os quatro restantes, salvar-se. E são estes que forneceram os dados imperfeitos que temos desta viagem.

Cabe pois ao cidadão peruano Faustino Maldonado, a gloria de haver sido o primeiro homem dos tempos modernos que conseguio descer pelo Madre de Dios, feito que contribuio altamente para a solução desse problema geographico.

É digno de observar-se que a maior parte das descobertas se deve à audácia de homens intrépidos, que não receiam o perigo e se lançam em busca de aventuras, sem medir seus recursos nem as dificuldades que terão de vencer.

Felix de Lima, Maldonado e Heath são homens da mesma tempera. Com força de vontade e energia assignalaram ao mundo três rios navegáveis de incalculável valor, o Itenez, o Madre di Dios e o Beni. Honra a elles!

Maldonado e seus companheiros, sem recursos nem elementos para uma formal expedição, se lançaram em procura do desconhecido, tendo por guia o curso das águas, e por objectivo a sua entrada no Amazonas, para alcançar um prêmio pecuniário que, segundo diziam, foi offerecido pelo governo peruano ao primeiro que descobrisse a communicação com o grande rio.

Sobre a viagem de Maldonado correm varias versões, porém, a maior parte inexactas. À que mais se approxima, da verdade é a seguinte:

Detalhes minuciosos sobre esta exploração foram recolhidos pelo Sr. Barão de Teffé, mui digno chefe da commissão brazileira de limites com o Peru. No seu interessante relatório que conserva inédito e que teve a bondade de franquear-me, transcreve as declarações dos quatro companheiros sobreviventes de Maldonado, que foram tomadas pelo chefe de policia de Manáos e uma exposição verbal de um delles Raymundo Estrella, a quem encontrou em 1873 na cidade peruana Yurimaguas, na margem esquerda do rio Huallaga.

Consta dessas declarações que Maldonado era natural de Rioja e pessoa de influencia por sua sagacidade e prudencia, havendo chegado a ser subdelegado da localidade. Em Tarapoto organisou sua expedição para explorar o Madre de Dios, composta delle, seu filho, três sócios e oito índios remeiros; ao todo treze pessoas. Partiram em 1.º de Março para Nanta seguiram pelo rio Ucayali até Hillapany e d’alli a Cuzco e ao povoado de Paucartambo.

« Ao partir de Paucartambo a expedição se compoz de Maldonado, Raymundo Estrella, um filho de Maldonado e cinco índios, sendo dous Conibos de Larayaca, e os outros tres de Tarapoto, ao todo oito pessoas. Os cinco restantes ficaram doentes durante a viagem por terra.

« De Paucartambo viajaram ainda por terra durante 20 dias, dos quaes quatro por um caminho trilhado e 16 dias abrindo picada na matta.

« Nesse trajecto atravessaram uma serra de mais de duas léguas de extensão, e ao descer do lado Este encontraram o rio Tono, cuja margem esquerda contornaram, encontrando depois de dous dias de viagem a bocca do rio Pilama aflluente esquerdo do Tono. Alli construíram balsas e o passaram seguindo-o até seu encontro com o Pini-Pini, que vinha da esquerda.

« Nessa confluência pernoitaram e logo na manhã seguinte começaram a construir uma jangada grande na qual se embarcaram nesse mesmo dia em meiado de Janeiro de 1861.

« Apenas haviam navegado um quarto de hora quando appareceram os selvagens Tuyuneres, que lhes dispararam infinidade de flechas perseguindo-os depois em suas ubás até que se intimidaram pelos tiros dos exploradores. Durante os seis primeiros dias reproduziram-se os ataques dos índios todas as vezes que passavam perto de uma maloca, mas depois desse prazo principiaram a navegar em uma região completamente deserta....

« Antes de entrar no Beni passaram pela foz de dous rios caudalosos affluentes do Madre de Dios pela margem direita, vindos da Bolivia e um só pequeno que afflue da esquerda.

« Não encontraram cachoeiras, senão a 6 milhas antes do Mamoré ou Madeira onde existe uma, que offerece canaes navegáveis.

« Em todo seu curso a água é branca. — Na bocca do Beni chegaram a uma Maloca de índios Caripunas, com os quaes negociaram uma canoa de casca de páu, tapada com barro e mantida aberta por travessões nas extremidades (que servem de assentos) e mais um ubá dando-lhes em troca algumas armas.

« Abandonando a desmantelada balsa que lhes sérvio na baixada desde o rio Tono se embarcaram na canoa e ubá e continuaram a marcha já pelo grande rio (o Madeira) seguindo pela margem direita e passando algumas corredeiras, até que uma tarde chegaram a um ponto em que o rio se apresentava dividido em cinco canaes. formando todos terríveis quedas (Caldeirão do Inferno).

« Tomaram o canal da esquerda que lhes pareceu melhor mas ao dobrar bateram as duas embarcações, indo a maior a pique e perecendo Faustino Maldonado, seu filho e dous dos quatro remeiros, salvando-se dous dos remeiros da canoa grande e elle (Estrella) e mais outro índio que tripolava a pequena ubá.

« Com immensa dificuldade conseguiram levar para terra a ubá e depois de esgotada continuaram nella a viagem em um estado de miséria indiscreptivel, sem roupa nem o menor abrigo e tendo apenas para alimentar-se uma ou outra fructa silvestre até que chegaram á primeira barraca brazileira, onde foram soccoridos. »

Depois da expedição de Maldonado nenhuma outra conseguio descer do interior. — A mais seria que se organisou em 1873 pelo prefeito de Cuzco Coronel La Torre, infelizmente naufragou logo ao principio pela resistência opposta pelos Chunchos que mataram o chefe da expedição e seu secretario.

Não era pelas cabeceiras do Madre de Dios onde devia começar o reconhecimento do rio.

Os habitantes das serras não são os mais aptos para emprezas deste gênero. A matta os intimida e a navegação lhes é completamente desconhecida e estranha a seus hábitos e costumes.

Si Maldonado e seus companheiros não houvessem vindo do Amazonas, remontando o Ucayali e mostrando sua perícia como remadores exercitados, não realizariam a arriscada viagem que fizeram. Elles já tinham pratica da navegação de rios caudalosos e alem disso força de vontade e coragem sufficiente para lutar com os elementos e forças naturaes.

Até 1880, nenhum incidente notável se deu. A morte do Coronel La Torre poz um termo ás tentativas de descidas do rio, e foi ao Dr. Heath a quem coube a sorte de evidenciar a confluencia do Beni e do Madre de Dios.

A noticia da existencia de extensos seringaes no Beni attrahio immediatamente uma numerosa colonia, ávida de extrahir o succo da preciosa arvores e começar um comercio valioso.

Levado por esse interesse, D. Antenor Vasquez foi o primeiro que subio o Madre de Dios em Agosto de 1881. Após elle, foram outros industriaes, que estabeleceram trabalhos para a extracção da gomma elástica, reconhecendo-se então a existência dos rios Ienechiquia e Manuripi, que se incorporam pela margem direita.

Em outubro e Novembro de 1884 o padre Nicolas Armentia, em commissão do governo boliviano, empreendeu uma exploração regular do Madre de Dios. Elle navegou aguas acima, durante 30 dias, em companhia de Antenor Vasquez, até o ponto mais avançado, que elle calcula como próximo ás montanhas, 280 milhas da foz a 13º lat. S. e 71º 30’ long. O. de Paris.

Não concordo com o padre Armentia em suppôr, que houvesse chegado ás proximidades das serras, porque sendo este rio mais caudaloso que o Beni, não poderá ter uma extensão navegavel menor do que este. O Beni, segundo Heath e o mesmo Armentia, tem desde sua união com o Madre de Dios, 434 milhas de franca navegação até San Buenaventura. Demais, o padre Armentia não dá noticia de haver encontrado os indomaveis Chunchus ou Sirionos que habitam entre o Tono e Inambari, isto é, nos últimos contrafortes andinos e na entrada para a planicie, onde Maldonado durante seis dias tinha sido perseguido por elles, e o Coronel La Torre pagou com a vida sua patriotica idéa, e onde foram detidos tantos viajantes illustres, entre os quaes Guibbon, Wendell, Nystrom.

É pois de suppôr que ainda restam 150 a 200 milhas de águas navegáveis, rio acima.

Outro esclarecimento importante nos dá o padre Armentia a respeito da direcção geral do Madre de Dios. Quasi todos os mappas representam este rio com rumo de E. a O.; entretanto, segundo aquelle viajante, elle se desvia sensivelmente para S. O., havendo elle avançado até os 13° lat. S. desde os 10" 51' 42" lat. S. da sua foz. Isto explica facilmente a posição reciproca do Purús e do Madre de Dios.

Chandless subio pelo Purús e Aquiri até 10° 52' 52" lat. S. e 74° 37' O. de Paris.

As cabeceiras do Madre de Dios não se acham ainda bem determinadas, só se possuem indicações vagas e incertas. Consta porém que elle recolhe todas as águas da cadeia andina comprehendida entre o nó de Apolobamba ou serra de Caravaya a SE. e as montanhas de Paucartambo ao NO.

O Inambari que nasce ao S. da cordilhera nevada de Caravaya e das proximidades do lago Titicaca parece ser o braço principal, ao qual se incorpora uma porção de pequenos affluentes antes de unir-se com o caudaloso Amaru-mayú, de que nos falla Markham e Raymondi e que segundo elles, se compõe dos rios Tono, Pini-Pini e outros que descem das montanhas orientaes de Paucartambo.

Foi na confluência do Tono e Pini-Pini que se embarcou Maldonado e de onde provavelmente partio a expedição do Inca Yupanqui.

Não creio, que seja bem navegável desde esse ponto. As balsas podem fluctuar nas maiores corredeiras e não obstante isso, consta que Ugalde naufragou alli em 1852 ao ensaiar suas balsas, que foram despedaçadas ao bater nas rochas, e o prefeito La Torre também naufragou alli em 1873 antes de ser morto pelos Índios.

Desde a confluência do Inambari porém, deve ser o rio francamente navegável. Julgo portanto que a extensão que se pôde utilisar para e navegação, não será menor de 400 milhas até a foz. Em breve se conhecerá mais essa circumstancia. A parte que até hoje tem sido explorada no rio Madre de Dios, é sufficiente para mostrar que novos interesses economicos, industriaes, commerciaes e políticos vão augmentar a importancia da bacia do Madeira.

A Republica do Perú póde pelo Madre de Dios, dar sahida a seus departamentos de Cuzco e Puno, entrando por esta via, em concurrencia com a Bolivia e o Brazil, para resolver o problema da communicação com a Atlantico.

É aqui o lugar para tratar de uma questão de interesse capital, que se relaciona com a sahida ao Atlantico.

Os riscos que se correm ao passar as temíveis cachoeiras do Madeira e Mamoré, os naufragios frequentes e perdas de vidas e propriedades, que se soffre na luta com as formidaveis correntesas e o adiamento indefinido, que retarda dia por dia a construcção do ferro-carril Madeira e Mamoré esse desideratum da bacia do alto Madeira, deu lugar a que a alguns espíritos observadores pensassem em uma outra via que julgaram mais certas e menos dispendiosa.

Todos os geographos modernos figuraram em seus mappas como mui próximos os rios Madre de Dios e Aquiri (Acre), affluente meridional do Purús. Esta supposta proximidadefez crer que sria fácil ligar estes dous rios por meio de uma estrada de curta extensão que poderia construir-se a pouco custo.

O primeiro que apresentou a idéa de ligar o Beni e o Mamoré com o Aquiri, foi Asrael D. Piper, cidadão norte-americano que em 1868 tinha obtido do governo da Bolivia uma concessão de terras para colonisar o territorio boreal da Republica, e que empregou vários annos na exploração do Purús e Aquiri procurando inutilmente a desejada communicação com o interior.

Baptista e Medinaceli com os quaes Piper se tinha posto em relações na cidade La Paz, propagaram a mesma idéa, e o ultimo apresentou ao governo boliviano uma memoria a esse respeito.

Na provincia do Amazonas se sustentou também com calor o mesmo projecto com pequenas variantes.

Nosso digno consocio o Sr. Julio Pinkas em seu relatorio sobre a Estrada de Ferro Madeira e Mamoré de 1885 estudou detidamente essa questão e nos dá interessantes e minuciosos detalhes.

Segundo elle, o Coronel Labria, importante seringueiro do rio Purús, lembrou ao Governo Imperial, e também ao provincial a abertura de uma estrada de rodagem entre a foz do Beni e o porto da Labria no Purús para trazer gado do Beni e conseguio que se votasse uma somma pela assembléa provincial, para mandar um engenheiro que explore o terreno, sendo o Sr. Alexandre Haag commissionado para esse effeito.

Não havendo podido este internar-se senão poucas leguas, se resolveu á insinuação do mesmo Coronel Labria que o mesmo engenheiro subindo o rio Madeira e chegando á foz do Beni partisse d’alli por terra em demanda da picada já aberta no porto da Labria.

Essa nova viagem do Sr. Haag não deu porém, resultado algum porque não podendo conseguir os braços auxiliares para a expedição por terra nem para subir o Madre de Dios, passou a Trinidad, Cochambamba, La Paz e Cuzco donde regressou ao Império sem realizar seu intento.

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Na legislatura boliviana de 1883 votou-se uma lei autorisando a despeza de certa somma para explorações e fundação de missões no Madre de Dios para catechisar os selvagens que habitam nessa região.

O padre Nicolas Armentia foi commissionado para esse duplo objecto, e percorreu varias vezes com louvável zelo e perseverança o Madre de Dios, subindo nelle 284 milhas.

Lá encontrou muitas tribus de Araonas e Pacaguaras, e effectuou varias entradas por terra em direcção ao N. em procura da tão appetecida communicação com o Aquiri e a sahida ao Amazonas pelo Purús.

Estas explorações deram o seguinte resultado: encontrou o Tahuamanú ou Orton e o Uaicomanú ou Aboná, rios que correm quasi parallelos com o Madre de Dios. O primeiro deságua no Beni 42 milhas abaixo da foz do Madre de Dios, e o segundo no Madeira perto da Cachoeira das Araras.

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O rio Orton nasce, segundo os cálculos estimativos do padre Armentia, entre 11° 30' e 12° 30' lat. S. e até 72° 30' long. 0. de Paris. Elle é mui tortuoso e formado por margens baixas e alagadiças. É formado por dous rios o Manuvini e o Tahnamanú, que é o principal.

Em 4 de Novembro de 1884 chegou o padre Armentia em companhia de D. Antenor Vasquez ao Maurini, na latitude de 11° 35' S. Suppondo que elle fosse o Acre, communicou essa descoberta ao governo; havendo, porém, seguido o curso do rio, reconheceu seu erro quando, sem esperal-o, achou-se no rio Beni.

O Maurini tinha no ponto de embarque da expedição vão de 100 metros de largura e 12 de profundidade e corre entre 20 e 28 milhas de distancia média do Madre de Dios.

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O Aboná ou Uaicomanú é de maior volume ainda que o Orton e tem, como este, em suas margens, uma abundancia extraordinária de seringaes.

Recebe pela direita um afluente de pouca importância, de nome Tsipamanú. A parte inferior do seu curso está obstruida por varias cachoeiras que correspondem com as da Esperança, Madeira, Misericórdia, Ribeirão e Periquitos do rio Madeira.

A distancia média que separa o Orton do Aboná era de 9 léguas.

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Attrahidos pela abundância e qualidade excellente de seringaes, muitos bolivianos foram estabelecer-se nas margens destes rios. A estes destemidos industriaes se deve o bom êxito das ultimas descobertas e o povoamento dessas regiões.

No principio deste anno, existia o seguinte numero de estabelecimentos nas margens dos diversos rios:

50 no rio Beni, com um pessoal de...................2.117 almas

5     »      Madre de Dios      »       »....................585       »

4     »      Orton                     »      »....................123        »

69 estabelecimentos com...............................2.825        »

Sem contar ainda os que estavam em viagem, transportando a carga, e que naturalmente farão elevar esse numero a mais de três mil indivíduos de ambos os sexos com predomínio do masculino.

Esse pessoal de trabalhadores produzio no anno de 1885 25 mil arrobas de borracha, e que foi levada até o ponto de embarque nos vapores, na cachoeira de Santo Antonio em batelões, a razão de 8$000 a arroba, sendo toda Ella consignada á praça do Pará.

Esta producção augmentará à medida que crescer a população attrahida pelo fácil e considerável lucro, que offerece a extracção da gomma elástica.

Dedicam-se também a outras culturas para o consumo local, taes como o milho, arroz, banana, mandioca, canna de assucar e outros de uso commum.

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Aquiri ainda não foi encontrado, porém em breve ahi chegarão os infatigaveis pioniers, que, com o nome de seringueiros, vão em procura do rico producto em que negociam.

Creio, porém, que, antes de chegarem ao Aquiri, encontrarão outro rio intermediário ainda, cuja foz foi encontrada por Chandless na margem direita do Purús, e cujas cabeceiras se acharam collocadas entre o Aquiri e o Aboná.

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Quanto á via projectada, expressa-se o padre Armentia da seguinte fórma:

« Por minha parte estou convencido que o Acre dista do Madre de Dios mais de 25 léguas de terrenos sujeitos a inundações na maior parte do anno. Accrescenta-se a essa circumstancia que o Acre só póde ser navegado na época durante a qual as communicações por terra se acham interrompidas. »

Essa opinião confirma a já emittida pelo Commendador Pinkas, que, com dados abundantes e incontestáveis raciocinios, demonstra a impraticabilidade desta via.

Com effeito ficou demontrado:

(1) que a distancia entre o Acre e o Madre de Dios não póde ser menor de 25 léguas;

(2) que o terreno intermediário é baixo e alagadiço;

(3) que se acha cortado por dous rios navegáveis o Orton e Aboná os quaes se dividem e se subdividem no seu curso superior;

(4) que o Acre, segundo Chandless, até aos 11° lat. S. se espraia, resultando naturalmente que o rio durante a vazante, se torna muito razo e de difficil navegação, augmentando ainda as dificuldades os labyrinthos de pau fincados no leito ou encalhados e que por vezes occupam toda a largura de rio em trechos de 200 a 300 braças de comprimento.

« Agora disse o Sr. Pinkas, encaminhar um trafego que deverá alcançar o valor de 10 a 12 mil contos em mercadorias para um rio que só durante 6 mezes do anno é navegavel e isso com dificuldade, como provam os constantes encalhamentos, de que dão noticia os jornaes do Amazonas é não querel-o. »

« Uma via-ferrea não se construe para ficar condemnada á inércia durante a metade do anno, e uma estrada de rodagem fica intransitável exactamente durante os mezes de navegação, que são os dos chuvas, a menos que não se queira macadamisal-a que seria além de difficil, por não haver pedras, muito mais dispendioso do que a construcção de uma via de communicação entre o Madre de Dios e o Acre de maneira alguma resolve o problema da communicação da Bolivia com o Atlântico, » A região do Mamoré e do Itenez ficará separada por cinco cachoeiras no Mamoré e uma no Beni, e mesmo vencida esta difficuldade se terá que subir parte do rio Beni, e do Madre de Dios o que sem duvida origina alongamento de caminho e portanto augmento de fretes.

O natural, o lógico, o que aconselha o simples bom senso e o estudo serio e consciencioso é procurar sahida pelo rio que recebe todos os affluentes navegáveis que a Bolivia possue e que facilmente ligarão os centros productores e de consumo com o mundo externo, em uma palavra pelo Madeira.

Pretender encaminhar todo o commercio presente e futuro para o Madre de Dios e Aquiri é forçar a ordem natural das cousas, é querer sahir pela janella de preferência á porta.

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Em conclusão senhores, creio que todo esse vasto e riquissimo paiz, trancado pelas cachoeiras, e todos esses rios volumosos que o banham, terá de desempenhar um papel importante no futuro.

Esse mundo ignorado, com espaço para hospedar muitos milhões de homens e elementos para alimentar um grande commercio, somente aguarda para ser utilizado em bem da humanidade, que se construa o ferro carril ao longo das cachoeiras, afim de evitar obstáculo e ligar os rios superiores com a parte exterior navegável.

Trabalhar para a realização desse bello programma é não somente dever de patriotismo, como também de humanidade e civilisação.

Felizmente, a idéa está defundida e geralmente acceita, o Governo Imperial, que mandou estudar o terreno e levantar as plantas e orçamentos correspondentes, se acha habilitado para principiar a obra no momento necessário.

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Concluindo o orador, que consagrou 20 annos de sua existencia a combater pela sahida do Madeira, faz fervorosos votos para que se realize esse de sua mocidade, em beneficio da Bolivia e do Brazil, tendo o Império muito a ganhar em constituir-se empório do commercio cisandino boliviano.

O orador póde asseverar que a Bolivia por sua parte, concorrerá com o estabelecimento de vias complementares terrestres como fluviaes, para fazer da via do Madeira uma das mais importantes do continente sul-americano.

O orador faz também voto para que se torne realidade esse plano, cuja realização estreitará mais intimamente os laços de visinhos entre o Brazil e a Bolivia por meio de um extenso commercio e commodidade de interesses permanentes, conservando a esperança que assim será, conhecendo, como conhece, as vistas elevadas do Governo de Sua Magestade e mui especialmente as nobillissimas e generosas intensões do esclarecido Monarcha amante do progresso, que dirige com tanto tino como illustração os destinos do Império.

 

VELARDE, Juan Francisco. O rio Madeira e seus affluentes: as últimas explorações nos rios Beni, Madre de Dios, Orton e Abuná. Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro. Tomo II, 3º Boletim, 1886, p. 165-190

Um comentário:

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

VOCÊ, COMO SEMPRE, SURPREENDE!