sexta-feira, 2 de julho de 2021

TRÊS POEMAS DE ALCIDES WERK

Alcides Werk (1934-2003), poeta sul-mato-grossense radicado no Amazonas, autor, entre outros, de Da Noite do Rio (1974); Trilha Dágua (1980); Poems of the water and the land/Poemas da água e da terra (edição bilíngue, 1987); Poemas Escolhidos (1985); In Natura – poemas para a juventude (1999); Cantos Ribeirinhos e outros poemas (2002).

 

Canto caboclo

 

Muita gente me pergunta

por que meu canto é de rio,

de floresta, de animais;

 

por que meu canto é vadio,

se perdeu, vive à deriva

nas forças elementais;

 

traz o recado da chuva,

dos peixes, das canaranas,

da terra, dos seringais.

 

É que um dia uma cabocla

com a puçanga da ternura

me feriu, me enfeitiçou,

 

fez-me ouvir a voz das aves

pra cantar o verde, as águas

e a vida que me ensinou.

 

Por isso navego livre,

e a letra do meu poema

o próprio Tupã me deu.

 

Sou um cantador caboclo,

e em vez de cantar estrelas,

eu canto o mundo que é meu. p. 19

 

 

Revisitação a um Paraná

 

A canoa desliza quase ao rés da beira,

movida por um remo lânguido,

tão cheio de saudade, que reluta

em ferir as águas brancas.

 

E eu vou cumprimentando esta paisagem

guardada a memória.

 

As canaranas, como cílios verdes,

enfeitam as margens.

Nas bocas de pequenas cabeceiras,

de águas calma,

reina a vitória-régia, e o jaçanã

passeia como um rei sobre seu colo.

Circundando a rainha,

os murerus e outros aguapés

lembram floristas,

que oferecem aos olhos flores violáceas.

 

O aningal e, adiante, os buritis

com seus cachos grenás.

O arroz-de-marreca, a membeca, a canarana

abrigam gafanhotos saltitantes,

sapinhos verdes, besouros multicores...

 

Canarinhos da várzea,

socós, garças, carões e arirambas

estão por toda parte.

 

Nos matupás,

embaixo do emaranhado de raízes,

pequenos camarões e caranguejos

são alimento de carauaçus,

piranhas, jacundás, aruanãs,

pacus, bararuás, pirapitingas...

 

Na mata ciliar

há guaribas vermelhos

e uma rara preguiça na embaúba.

Nos galhos altos,

em simbiose com cabas-beiju,

ninhos de japiim balançam ao vento,

como pingentes.

 

No caule de uma ourana,

O aruá em processo de desova.

Sobre a água,

no galho morto de uma piranheira,

tracajás sonolentos tomam sol.

 

Observo, distraído, a outra margem,

e vejo um maguari

esquivo, solitário, meditando.

 

No meio da corrente,

navega um velho cedro carcomido,

lembrando a doce alma amargurada

de Hemetério Cabrinha.

 

Passa o boto vermelho,

e me cumprimenta gentilmente.

 

Aqui e ali, a paisagem denuncia

a presença do homem:

a casinha de palha em palafitas,

e no terreiro

os patos, as galinhas e o cachorro;

a garera suspensa, de hortaliças,

e a canoa no porto.

 

Cogito:

por aqui viajou Cobra-Norato.

 

No crepúsculo da tarde,

garças e araras passam em revoada,

recolhendo-se às árvores prediletas.

 

Embevecido, sinto que sou parte

deste belíssimo concerto.

Minha alma exulta de ternura e de respeito

ao Criador.

 

Preciso ser aqui.

Encantado, talvez, no reino lá do fundo,

convidado perene do Boto e da Iara,

como eterno aprendiz de coisas belas,

para recompor canções de Amor e Vida,

que na memória do mundo se apagaram. p. 43-46

 

 

Da partilha

 

Aqui tendes os corpos, meus senhores:

pálidos, magros, tristes e sem nome.

São todos meus irmãos, e é para eles

que eu canto meus poemas de ternura.

 

Vede-os. Estão vazios de esperança.

São da estirpe de heróis que construíram

as cidades, as pontes, as lavouras

e todo o bem-estar que vos rodeia.

 

É dos seus braços frágeis o milagre

das catedrais em que vos reunis

para aplacar os vossos corações.

 

Vede-os, senhores. Deserdados todos.

Testemunhas apenas da partilha

da paz que edificaram com seus sangues. p. 72

 

WERK, Alcides. Cantos ribeirinhos e outros poemas. Manaus: Valer/Prefeitura de Manaus, 2002.  

* Foto de Alcides Werk retirada de TELLES, Tenório; GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de Literatura do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2021. p. 388

 

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