João Veras
A capoeira, é assim que
nos reportamos ao bairro, fica no centro da cidade ao lado do estádio José de
Melo, em que acontecia de tudo, inclusive o campeonato acreano de futebol que
só tinha time de Rio Branco. A capoeira sempre esteve perto de qualquer coisa:
dos circos que circulavam pela região, dos cines Rio Branco e Acre, dos poucos
hotéis e clubes de bailes e shows, do mercado municipal, das pontes que ligam o
primeiro distrito ao segundo, das escolas, da praça central, da catedral, do
primeiro supermercado, do rio acre...
O bairro tinha pelos
fundos uma extensa área verde fechada que chamávamos de Mata da Guidinha, a
nossa floresta encantada. Eu morava na travessa Maria Amélia, uma rua sem saída
para seguir caminho (quem entrava tinha que voltar por onde entrou), ambientes
de muitos duelos, depois das matinês, entre zorros, dolars furados, sansões e
dalilas. Templo do convívio de crianças amigas só para as funções comunitárias
como jogar futebol, inventar brincadeiras, tomar banho no igarapé, ir para escola,
para o cinema, pular muro do estádio, trocar gibis e para o mundo juntos.
Também para brigar, para ficar de bem, para brigar de novo, para ficar de bem
de novo, sonhar e realizar todo o tempo. O que faltava na capoeira? Ninguém de
lá jamais soube.
Quando cheguei
Clenilson já estava lá. Ele, o irmão Clevisson, as quatro irmãs, seu pai e sua
mãe. Também uma reca de meninos e meninas espalhados pelo bairro, seus
parentes, seus cachorros... Mas foi junto com os dois irmãos que a música ficou
em nós três dali em adiante. Com as mesmas referências musicais nacionais,
internacionais e locais, chegadas principalmente pelo cinema e pelo rádio,
fomos construindo o nosso jeito de reproduzir e principalmente de criar. Fomos
nos fazendo inventores de si e do mundo pelo caminho da música.
Disso resultou, entre
outras coisas, o Grupo Capu, hoje conhecido como uma banda de rock acreana de
músicas autorais. Nascemos pela primeira vez na versão de 1980 do Festival
Acreano de Música Popular, o FAMP. Quando nem sabíamos tocar instrumento, mas
tocávamos. Os dois, violão, e eu flauta doce, acompanhados pela banda-base do
festival. Pitico (o Toin, também da capoeira) era o nosso quarto elemento que
tocava percussão. Eram batidas e baladas de rock. Do tipo nosso de rock com flauta e percussão.
Depois xote, baião, forró, lambada, balanço, balada e não sei mais nada,
inclusive o que possa ser estilisticamente incomparável.
Com a morte de Pitico,
chegou a bateria autoral, potente e criativa de Hermógenes. Clevisson se tornou
baixista e a minha flauta doce virou transversal. Vieram mais composições que,
no conjunto, foi imprimindo uma musicalidade, formas de cantar e de falar com
textos inerentes ao momento e ao lugar em que vivíamos. O momento político era
da ditadura militar. Letras e atitudes, enfim, de maneira nenhuma indiferentes
e bem fincadas na vida cotidiana de uma Rio Branco e uma capoeira vivas política
e culturalmente. Nada igual. Conseguimos não ser a pretensão da cópia. Éramos
nós próprios, o que quer dizer do nosso jeito, cantando e tocando a cidade.
Depois, todos nós fomos
nos espalhando, cada um acomodado/incomodado esteticamente no que individual e
coletivamente foi se achando. Criamos um lugar de encontro chamado Os
Alquimistas – tendo como elo o músico mineiro Heloy de Castro – a tocar de bar
em bar pela cidade – lugares possíveis para divulgar a música que fazíamos.
Também nos associamos a uma ideia/luta em defesa da cultura artística local e
contra o poder estatal forjado de tanto engano social, coisa dessa política da
manutenção do status quo. Por isso, fomos juntos censurados justamente pelo
governo que dizia ter chegado para acabar com a censura. Encontramos uma
maneira de não largar o nosso canto, uma forma de continuar juntos, quando a
individualidade foi dando a forma para cada um de nós. E cada um virou um de si
próprio integrado ao outro. Cada um no seu sistema de viver, de se situar no
mundo. Uma forma de ser – num ambiente cultural como o nosso aqui – que se faz
sempre juntos.
Essa contextualização memorialista
de minha parte foi necessária para situar um pouco o ambiente de onde surge um
dos personagens mais importantes da história contemporânea da cultura acreana,
que é Clenilson Batista.
Clenilson, sempre
desassossegado, não ficou só na música, forma estética pela qual mais
criou/cria. Escreveu Seringal Astral e A Lenda do Reino dos
Beija-flores, obras que refletem o modo só seu de perceber o mundo que se
vive na Amazônia lançando-se na aventura/ventura de querer e, por querer tanto,
viver/imaginar outro. A produção de Clenilson tanto musical quanto literária se
funda na vontade de alterar o que está posto, não com as armas da violência,
nem com outro tipo dela, a política institucional, mas com a potência do sonho,
da imaginação, da criação, da arte.
No campo das ideias
contidas em suas obras, Clenilson desenvolveu uma teoria livre para
possibilitar que os outros consigam compreender esse modo (que parece se
revelar como uma cosmologia própria), que ele vai classificar como
Lendologia/lendologismo.
Pela sua complexidade,
não é possível abreviar aqui o tanto de significado produzido por esse seu
sistema, cuja base se sustenta nos elementos da natureza, da magia e na ideia
(utópica?) de uma outra humanidade que tenha o amor como fundamento. Estou correndo
o risco aqui de simplificar (senão já praticando a redução), o que só pode
acontecer como justo reflexo de meus limites diante da obra de Clenilson. Seria
preciso de mais fôlego. Aqui tenho objetivo mais ameno.
Confesso que é na
música onde mais toca em mim Clenilson. Por isso quero chamar atenção para duas
obras suas mais recentes: Cidadão de Bem, balada cuja letra vale por um
tratado de política, do ponto de vista de quem questiona o poder institucional,
um libelo anarquista (diriam cientistas políticos eurocêntricos do tipo que só
aceita ideia se for nascida de seu lugar de conhecimento), cujo efeito de duplo
sentido revela a posição crítica de quem tem sido desde sempre vítima do poder
dos estados-nações e suas estruturas históricas de governos centralizados/mantenedores
da condição moderno-colonial.
Por razões de espaço,
não há como me dispor a fazer aqui uma análise da letra de Cidadão de Bem,
como eu gostaria. Porém, valem algumas observações inadiáveis para o contexto
deste breve escrito.
A música começa
afirmando: “Você é livre, está na Constituição, você é livre se for da Nação”.
É possível observar que neste trecho é constatada e questionada a ideia de
liberdade reduzida ao espaço do estado e sua normatividade (você só é livre se
integrar e for da vontade da nação), isto é, aduzindo que fora de tal espaço
político não há liberdade senão interna corporis a ele (a do seu tipo). No
mesmo passo, a letra afirma a liberdade do “cidadão”, apesar do estado-lei –
como se dissesse, e diz, “você é livre” e pronto, que “se foda a nação” que não
te quer livre desde que pela sua ideia de liberdade normativa. O segundo
sentido se revela mais que uma negação do primeiro, o seu questionamento.
No estribilho, que
segue o mesmo efeito de duplo sentido, a oração “se for da lei”, quando lida,
expressa de forma literal a ideia de condição, mas quando ouvida muda de
sentido tornando-se um grito-desejo-manifesto de sua negação: “se foda a lei”,
o que se repete em relação a categorias que corporificam/sustentam a ideia de
estado como sociedade, nação, juiz,
justiça, polícia... e ainda batendo na tecla da liberdade como uma
condição da lei que na voz de seu alvo (“o cidadão”) soa como menosprezo, rejeição, negação, portanto, de resistência a
ela: “Você pode fazer o que bem entender, se for da lei”, um grito de liberdade
em face da liberdade da lei. Uma vida normativa versus uma vida “anormativa”,
nesse sentido, livre do poder estatal.
Vale ainda atentar-se
para o fato de que os sentidos duplos da oração “se for da lei” se opõem também
pelas suas formas de emissão, isto é, estão vazados, de um lado, pelo registro
da escrita (que é o registro da norma, da condição normativa “se for da lei”),
e, de outro, pelo registro da oralidade, captada pela audição (“se foda a lei”),
quando aponta a sua negação,
resistência, insurgência (eu acrescentaria) que esgarça uma vontade
popular, vinda das ruas, contra o estado...
Por fim, em Cidadão
de Bem, Clenilson parece ter realizado um movimento diferente do que
realizaram Raul Seixas e Paulo Coelho com a Sociedade Alternativa deles.
Enquanto estes saíram do estado para criar uma sociedade alternativa também
normativa dizendo que toda liberdade é que era da lei: “faça o que tu queres,
pois é tudo da lei” (baseado na Lei de Thelema e seus postulados dogmáticos a
fugir da lei se refugiando na lei), Clenilson tem um intento diferente. Ele
quer destruir por dentro o maior fundamento do estado colocando que “se [tudo]
for da lei” então que se foda a lei.
A segunda obra é o seu
último CD solo, A Arte é um Veículo, que ele produziu em 2019. Para mim
um feito artístico admirável, porquanto culturalmente significativo, mesmo
sendo ignorada por todos, como a rigor são as obras artísticas locais. O disco,
com as suas trezes faixas, não representa a diversidade de sua produção
musical, na medida em que ele se dedica mais a um dos lados de suas
composições, aquele desenvolvido nas épocas Alquimistas, que podemos chamar de
balanço, exemplo clássico das faixas Bole,
bole, composta com Alexandre Nunes (“Segura sanfoneiro esse bole,
bole...”), Balanço da Aldeia (“Vem mostrar esse balanço como é, que
balança toda mata e igarapé...”), Daquiry (“Dança ashasninka, Huni kui,
kaxinauá...”) e as duas que fizemos juntos, na década de 90, para também tocar nas noites acreanas: Mela
coxa (“Universo sou toda a terra”) e O povo quer dançar (era meia
noite, madrugada, a festa tava animada, o sanfoneiro sem para...”).
Nesse sentido, parece
ser uma obra que busca disseminar sonoramente alegria. Não se pode duvidar ser
a alegria uma forma de manifestação do amor. A dança é um ótimo meio. O corpo
uma expressão vigorosa para o sentimento. Mas, como tudo em Clenilson, a coisa
não se restringe a um ritmo só. Tem as letras em suas contundentes narrativas
tão política e culturalmente próprias, das quais destaco, além das já citadas,
as faixas Tribal (“um canto inteiro, não é um canto de partido, não é um
canto dividido”), A arte é um veículo (“O sonho é uma nação... A arte é
um veículo que sai da multidão...”), Bem vindos ao leito do rio (“...É
um banzeiro de paz e amor...”) e Você reclama da Terra (“Você reclama da
terra mas quem é que produz a poluição?”). Esta um potente manifesto ecológico
composto com Geovania Barros.
Considero Clenilson
como tipo exemplar de artista cuja ontologia política e estética é fundamental
e radicalmente decolonial, o que afirmo no contexto em que venho pensando a
nossa produção artística a partir de um registro crítico, de modo a buscar
revelar algum movimento de resistência diante do projeto de colonização
cultural de que se é alvo em um lugar considerado periférico como o Acre.
Em sua obra nada está
conformado à condição moderna-colonial que se tem nos imposto historicamente
como deveria “naturalmente” estar moldado para estar – nos conforme da
pedagogia colonial pela qual temos sido educados.
Nesse sentido,
Clenilson põe abaixo qualquer movimento que queira lhe colonizar. Não porque
ele deseja assim (como um condutor daquele desejo do tipo frágil, provisório,
precário, inconstante do “quero agora, mas amanhã não, ou não sei mais” – a
depender de quem dá mais), mas porque ele se fez assim orgânico no percurso de
vida/criação.
Sendo assim, nada do
que faça no campo da arte tem como fugir, senão reafirmar a atitude
combatente/insurgente de se afirmar como um sujeito cultural orgânico – não
monolítico, não sem contradições – que aqui nomeio de decolonial, resultando na
configuração de um sujeito artisticamente incomparável e culturalmente consciente
de sua localidade e de seu papel político-cultural.
Quis aqui começar este
texto relatando o meu encontro e convívio afetivo, político e artístico com
Clenilson Batista – num contexto de um lugar geocultural próprio – para dizer
que sou testemunha do processo de formação de um sujeito decolonial posto à
prova de todo tipo de ataque magneticamente sedutor, como só é aquele que
investe em nos fazer desejar ser o que não somos para relegarmos a si
intentando ser cópia de algum padrão industrial exógeno, com a promessa – que
só se faz a um condenado a ser o eterno coadjuvante (se muito) – de
personificação do gênio, do super astro, da celebridade, do ídolo dos consumos.
Pode crer?
João Veras em 28/12/21
Um comentário:
Parabéns. Excelente texto de identidade cultural.
Uma reca de informações muito importantes!
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