Certa vez fiz a provocadora sugestão de que Rio
Branco é para meu pai, o que Berlim um dia foi para o filósofo Walter Benjamin.
Não se trata apenas de uma cidade, de um amontoado de ruas e esquinas e rios
que compõe um espaço em um mapa, mas um acontecimento. Uma temporalidade que
nos escapa, uma ubiquidade que dissipa toda apreensão reificante, um
entre-lugar que demanda escavar nas mimeses da infância, na matéria mais bruta
da poesia que é o cotidiano e suas contradições urbanas - aquela entre o flaneur
e o flanelinha, o catraieiro e a catraca do ônibus - justamente para encontrar
neste labirinto, o raio do poema em sua densa luz, que revela as faíscas de uma
estética possível. Assim como é este livro. Pois o primeiro assombro que temos
ao manusear essa obra é justamente a experiência de que não se trata, tampouco,
de um mero objeto de rememoração nostálgica (a “infância rio branquense” e seus
becos, capoeiras e ruas sem saída), muito menos de um livro de poesia
concretista com colorações de um cronista (aquele que tem um olhar oblíquo
acerca da transformação estrutural das instituições de uma esfera publica e sua
circulação da arte, da cultura e da política).
Antes, nos vemos nessas páginas quase ou
mui torcicolares, um caleidoscópio (como
Gerson falou um dia da poesia dele) que nos permite atravessar toda
sensibilidade de um sujeito criativo e incomodado com os contornos de sua
experiência (de experimentação) do “particular”. E aqui digo particular com
toda cautela do mundo. Pois meu pai fica enfezado quando não compreendo que, na
realidade, a sua escrita que se insinua provinciana, relativa a um “lugar”,
apenas simula o que para ele é mais verdadeiro e paradoxal: o local, na
realidade, mais plástico do que aparenta, é a porta dos fundos que apresenta o
quintal do universal. Que nos apresenta o igarapé por onde circula a
resistência a toda tentativa arbitrária de verticalização da vida. A “istória
do lugar” é nada mais que a “nossa história”, com H, mesmo, que, perpassada por
uma ontologia das ladeiras, uma dialética dos barrancos e uma estética da
seringalidade (o conceito que rastreia o seu legado filosófico e que perpassa a
sua trilogia editorial ou trindade de livros, como diz Issac Melo), nos revela
a condição de periferia da periferia da periferia.
E é justamente essa condição, essa tempestade
que impele ao futuro, mas também que incendeia um passado simultâneo, que
emerge um ornitorrinco (ou um mapinguari), (moderno e atrasado) que sempre
motivou meu pai a escrever, compor, ler, cantar, tocar instrumentos, pintar,
fotografar, recortar e colar, produzir, se inquietar — desassossegar. E isso
que encantou e encanta a mim e a Nina (quando vemos ele imerso no canto dele,
quando observamos a tecla que bate retocando e atravessando o dia lá do seu
escritório — a terceira margem do rio dele, escrevendo no microsoft word como
se pichasse os muros dos bairros da cidade a cada verso) e que nos fez reunir
aqui hoje em torno desse não-livro, esse artefato que circulou entre as pessoas
que meu pai ama ( essa confraria e não academia peripatética de poetas e
poetisas), que nada mais é que a materialização de sua constelação de incômodos
e reverências (a homenagem mais genuína, pois os nomes dos e das personagens
que saltam na obra são, na realidade, o que ele consome diariamente — a arte
local) que me faz lembrar e admirar aqui de longe o infinito repertório
imaginativo de meu pai.
É assim que ele procura dar consistência para o
mundo, e nessa busca, e em especial, na sua contingência, ele pode criar outros
mundos, ou melhor, outros lugares que eternamente retornam (assim como o ônibus
circular de fuga do Acre, mas que a ele sempre retorna — e de forma mais
fortuita, na grandiosa e irradiante Nepan).
Portanto, mais do que as histórias oficiais, o
que lhe interessa são as genealogias bastardas. Mais do que os projetos de
governamentalidade, o que lhe motivou nesses rolês todos foram as linhas de
força de insubordinação, de emergência do novo. Mais do que a florestania, o
que lhe fez investigar analiticamente e poeticamente é a condição de condenados
da terra e as fugas inventivas desse povo. Desde os fanzines da sua graduação,
aos panfletos do movimento social, aos artigos de intervenção em jornais até o
Facebook e seu mural (esse canal insistente que ressoa como uma caixa de ecos).
Por esta razão, não é raro o descreverem como um cara inquietante. Arrisco
dizer que vem dessa perpétua desconfiança com os caminhos retos e divisões
estanques e pela preferência que ele adquiriu pelos entrecruzamentos, que, inevitavelmente,
o leva a teimosia (a palavra que mais define meu pai, especialmente depois de
seus 60 anos) em não sucumbir ao poder. Mas o que significa poder aqui?
Complicado. Difícil mapear na cartografia desse homem o que ele compreende por
poder, especialmente por ser aquilo que vira fonte de toda critica, de toda uma
vida, e principalmente, da inquietação que o mantem vivo.
Uma resposta provisória está próxima da
reiterada, insistente e pervasiva presença do adjetivo “colonial”, essa
manifestação (estrutura histórica e presentista) de poder que traduziu a saga
estética do meu pai — desde sua juventude, marcada por enaltecer a vida da
floresta até a audiência dos mortos, de denúncia da alienação local. Eu diria
que seria mais fácil falar o que poder não é para meu pai — que potência é essa
nos leva para a vida e não para a paralisia, para a aporia, o beco sem saída, a
morte-expoacre e etc. E a pista mais expressiva que posso indicar a vocês está
na foto de minha vó Mariazinha e de meu pai, ao final do livro, que revela onde
está todo o potencial de resistência: no amor e na arte. No carinho amoroso e
saudoso de um filho para sua mãe (e o enraizamento a terra que lhes acolheu) e
na experiência estética, no caso o cinema e a música, que mediou a sua memória
e o seu maior legado. (Além do flamengo, claro). Isso, nos ensinou Sérgio
Taboada, é o que importa. Amor e arte. Te amo pai. Vida longa à sua arte.
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