segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Poesia no abismo: entre a subserviência e a sorte

Luis Satie

 

Disse um conhecido filósofo alemão que após o holocausto, fazer poesia é um ato de cinismo. Um – não menos consagrado – poeta brasileiro completou que mundo até poderia ser uma boa rima para raimundo, mas não seria uma solução. O fato é que, após as barbáries do século XX, o ofício do poeta ficou cada mais difícil. Não obstante, continuamos a escrever versos. Pois bem! E agora? Como escrever um livro de poesias sem ser cínico ou ser acusado de cinismo? Prefiro pensar que poesia não é entretenimento e que não é poético fazer rimas mecânicas e combinações meramente diletantes para atrair audiências e inflar egos de poetas e poetisas, diante da miséria do mundo que bate à nossa porta. Em vez disso, arte é um meio avançado de conhecimento do mundo, de suas misérias e de suas virtudes. Então, que tipo de saber “Istória do Povo do Lugar” (Veras, 2022) me traz? 

O conhecimento do mundo vivido do poeta e o conhecimento do poeta ele mesmo, a partir de sua mundividência particular, não necessariamente nessa ordem. Conhecimento de becos, travessas e travessuras de menino. Conhecimento do próprio jeito do poeta – umas vezes delicado, triste, revoltado, cidadão, nostálgico, outras vezes irônico, amargo, ríspido e iracundo – de testemunhar o trágico e de (des)crever gestos e tipos humanos que lhe cruzaram o caminho. Esse é o conhecimento disso que é o Isto. O conhecimento disso que é o Isto é uma Ist(ó)ria: o inominável Isto que nos emaranha e se fixa em algum lugar da memória recalcada ou do inconsciente, involuntariamente, e passa a fazer parte de nossa istoridade.

A Ist(ó)ria então se revela como o estoque não-conceitual do mundo visto pelo poeta. Para dar conta desse estoque ist(ó)rico, o poeta precisa de palavras, mas o trabalho de palavrear a ist(ó)ria do isto – isto é, de isto(riar) –, é arriscado. O poeta parece bambear no meio do abismo, entre o trabalho de busca paciente e criativa de imagens e a preguiça da pressa de dizer logo o que suas retinas enxergam ou o que seu corpo sentiu na aventura do momento vivido. Entre a arte da mediação e a pressa do registro, o poeta sofre para não sucumbir na (h)istória ou na (e)stória, aquela como arquivo científico, esta como arquivo do discurso ordinário comum, do imaginário compartilhado de não-poetas.

Ora, essa pre(ocupação) do espírito do poeta de não cair nas águas comuns do arquivo histórico/estórico e o anseio de buscar traduzir artisticamente a ist(ó)ria da (isto)ridade que experienciou ao longo da vida é angustiante, a ponto de transbordar para além do verso, como meio inconsciente de garantir uma reserva de imagens e efeitos que pudesse salvaguardar a penosa tarefa de dizer o indizível no miolo do artefato livro. “Istória do Povo do Lugar” é, pois, um livro angustiado. 

E essa angústia se apoderou do formato da obra, da numeração das páginas, da configuração de margens e entradas de textos, da disposição espacial das capas e contracapas e da apresentação gráfica da própria matéria escrita. É que “Istória do Povo do Lugar” não é a istória do Povo do Lugar, dois substantivos abstratos: é a ist(ó)ria dos momentos ísticos de um indivíduo situado agonicamente (n)um determinado lugar, lugar esse que também é um isto, um algures ou alhures que demarcou sua istoridade pessoal. Um lugar ubíquo, útero de um indivíduo atormentado, de um lado, por afirmar seu pertencimento a uma comunidade de nascimento, e, de outro, por não conseguir escapar das malhas da história oficial de Rio Branco, nem dos universais da política, da economia e da cultura, entranhados em sua alma e em seu corpo.

Sim, “Istória do Povo do Lugar”, é uma obra conseguida, não só pelo formato físico que a faz entrar para a história do artefato-livro no Acre, não só pela sinceridade do dizer ou pela generosidade do compartilhamento público do dito, mas por ser um ato de li(ciência) poética, a saber, de des(encobrimento) estético do que até então eram só fantasmas e lembranças amareladas pelo tempo existencial de um singular habitante da cidade de Rio Branco, observador atento do abandono social que aflige a maioria das pessoas que sobrevivem no ocidente da Amazônia brasileira, cujo destino parece ser a subserviência ou a sorte.

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