Luis Satie
O conhecimento do mundo vivido do poeta e o
conhecimento do poeta ele mesmo, a partir de sua mundividência particular, não
necessariamente nessa ordem. Conhecimento de becos, travessas e travessuras de
menino. Conhecimento do próprio jeito do poeta – umas vezes delicado, triste,
revoltado, cidadão, nostálgico, outras vezes irônico, amargo, ríspido e
iracundo – de testemunhar o trágico e de (des)crever gestos e tipos humanos que
lhe cruzaram o caminho. Esse é o conhecimento disso que é o Isto. O
conhecimento disso que é o Isto é uma Ist(ó)ria: o inominável Isto que nos
emaranha e se fixa em algum lugar da memória recalcada ou do inconsciente,
involuntariamente, e passa a fazer parte de nossa istoridade.
A Ist(ó)ria então se revela como o estoque
não-conceitual do mundo visto pelo poeta. Para dar conta desse estoque
ist(ó)rico, o poeta precisa de palavras, mas o trabalho de palavrear a
ist(ó)ria do isto – isto é, de isto(riar) –, é arriscado. O poeta parece
bambear no meio do abismo, entre o trabalho de busca paciente e criativa de
imagens e a preguiça da pressa de dizer logo o que suas retinas enxergam ou o
que seu corpo sentiu na aventura do momento vivido. Entre a arte da mediação e
a pressa do registro, o poeta sofre para não sucumbir na (h)istória ou na
(e)stória, aquela como arquivo científico, esta como arquivo do discurso
ordinário comum, do imaginário compartilhado de não-poetas.
Ora, essa pre(ocupação) do espírito do poeta de
não cair nas águas comuns do arquivo histórico/estórico e o anseio de buscar
traduzir artisticamente a ist(ó)ria da (isto)ridade que experienciou ao longo
da vida é angustiante, a ponto de transbordar para além do verso, como meio
inconsciente de garantir uma reserva de imagens e efeitos que pudesse
salvaguardar a penosa tarefa de dizer o indizível no miolo do artefato livro. “Istória
do Povo do Lugar” é, pois, um livro angustiado.
E essa angústia se apoderou do formato da obra,
da numeração das páginas, da configuração de margens e entradas de textos, da
disposição espacial das capas e contracapas e da apresentação gráfica da
própria matéria escrita. É que “Istória do Povo do Lugar” não é a istória do
Povo do Lugar, dois substantivos abstratos: é a ist(ó)ria dos momentos ísticos
de um indivíduo situado agonicamente (n)um determinado lugar, lugar esse que
também é um isto, um algures ou alhures que demarcou sua istoridade pessoal. Um
lugar ubíquo, útero de um indivíduo atormentado, de um lado, por afirmar seu
pertencimento a uma comunidade de nascimento, e, de outro, por não conseguir
escapar das malhas da história oficial de Rio Branco, nem dos universais da
política, da economia e da cultura, entranhados em sua alma e em seu corpo.
Sim, “Istória do Povo do Lugar”, é uma obra conseguida,
não só pelo formato físico que a faz entrar para a história do artefato-livro
no Acre, não só pela sinceridade do dizer ou pela generosidade do
compartilhamento público do dito, mas por ser um ato de li(ciência) poética, a
saber, de des(encobrimento) estético do que até então eram só fantasmas e
lembranças amareladas pelo tempo existencial de um singular habitante da cidade
de Rio Branco, observador atento do abandono social que aflige a maioria das
pessoas que sobrevivem no ocidente da Amazônia brasileira, cujo destino parece
ser a subserviência ou a sorte.
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