AS DUAS METADES DO ACRE
O último capítulo da Epopeia Bandeirante –
Conquista e incorporação do Acre – Uma história dividida ao meio como a região
em que processou – O combate de Nuevo Iquitos – Plácido de Castro e Taumaturgo
de Azevedo.
Por Gustavo Barroso
(Da Academia Brasileira de Letras – Diretor do
Museu Histórico)
Ainda está para ser
feita devidamente a história da conquista do Acre, última página da nossa
epopeia bandeirante, capítulo final da nossa Marcha para o Oeste, escrita com
letras de sangue pelos filhos do Nordeste, muito especialmente do Ceará. Em
geral, quando se fala da entrada do Acre na História do Brasil, traça-se este
esquema: Acre, Bolívia, Plácido de Castro e Rio Branco. Plácido de Castro é o
herói epônimo da região, o polarizado da resistência armada ao boliviano, a
quem a argúcia do Barão no Tratado de Petrópolis arranca definitivamente o
território. Mas este é um mundo de águas, terras e florestas, tal a sua
extensão, de maneira que, sem o auxílio da geofísica dessa região, não
poderemos compreender os sucessos históricos que a integraram para sempre no
todo brasileiro. E, em consequência, a sua geopolítica nos levará ao traçado
complementar de outro esquema: Acre, Peru, Taumaturgo de Azevedo, Rio Branco.
Vejamos agora o porquê:
O ilustre Dr. Manuel
Onofre de Andrade, atualmente Promotor em Goiás, profundo conhecedor do
assunto, em trabalho inédito de definição da verdade histórica, escreveu-me:
“Não se trata de demolir um dos ídolos do Acre, Plácido de Castro; mas é justo
de início ponderar o seguinte: o nosso mais antigo território se divide em duas
metades incomunicáveis, a bacia do Purus-Acre, onde hoje se situa a
capital, e a do Juruá-Tarauacá. É claro que que a vitória de Plácido de Castro
apenas assegurou a posse do Brasil em uma dessas metades. Note-se ainda que a
zona acreana tomada por suas armas se limita com a Bolívia, enquanto a região
do Juruá tem por vizinhança o Peru, Departamento de Loreto. Logo, ficará
exposta a seus próprios recursos tão extensa faixa de terras. Por um erro de
chancelaria, anterior ao inexcedido Barão do Rio Branco, chegara ele a ser
entregue oficialmente à República Peruana. Para que se tenha exata ideia do que
é o Acre, bastará o depoimento da competente Comissão de Engenheiros,
investigadores da possibilidade de depósitos de petróleo no Rio Moa, da mesma
Bacia Juruaense, em relatório que prende a atenção do mais culto leitor, em
edição de 1938: “O Território do Acre é a única unidade da Federação que tem
cem por cento de matas cobrindo a sua superfície. Acha-se todo ele localizado
na Planície Amazônica, drenado por duas importantes correntes: Rios Juruá
Purus, suas únicas vias de acesso. Fica, assim, o Território naturalmente
dividido em duas regiões distintas, cada qual com sua vida própria, tendo seus
problemas ligados aos das vias naturais de escoamento, portanto é absoluta e
fatal a falta de comunicações terrestres entre as duas bacias.” E
acrescenta o douto relatório: “Para se ir de sua sede – Rio Branco a Cruzeiro
do Sul, no Alto Juruá, deve-se descer o Rio Acre, alcançar o Purus, chegar a
Manaus e aí aguardar transporte para subir o Juruá e alcançar enfim o ponto de
destino numa viagem de cerca de dois meses.” Ora, se essa foi a rota dos
ilustres engenheiros patrícios para atingir o Rio Moa acima da cidade de Cruzeiro
do Sul, é evidente que os brasileiros situados na outra metade acreana jamais
poderiam socorrer tão grande trecho no ano de 1904 a luta e a vitória foram dos
responsáveis militares e de seus voluntários pela bacia adentro do Rio Juruá e
seus afluentes.”
As palavras do Dr.
Manuel Onofre de Andrade e a exposição da Comissão de Engenheiros, com uma
claridade verdadeiramente cartesiana na sua argumentação, nos mostram a
imensidade acreana dividida em dias partes estanques, de vez que a penetração
realizada pelos seringueiros sempre se fizera subindo os rios e se ramificando
pelos seus afluentes, de modo que o recesso das terras entre as grandes bacias
fluviais permanecia indevassado. Fui contemporâneo, na minha adolescência,
passada no Ceará, das grandes migrações de sertanejos para os igarapés
amazônicos. Lembro-me bem, quando ainda menino de colégio, da seca de 1898, que
quase despovoa o Estado para estaquear de ossadas de heróis anônimos os
pântanos do Amazonas e do Acre. Em 1899, o Grande Rodolfo Teófilo, hoje tão
esquecido, publicava em Fortaleza o seu formidável romance “O Paroara”, no qual
descreve com as tintas da verdade a triste e silenciosa epopeia dos seringais.
E até mesmo conheci um desses grandes bandeirantes da penetração naquele
Inferno Verde, que, certa vez, entrara pelo Rio Amonea com 800 cearenses, dos
quais sobraram unicamente dez, contando com ele próprio. Era o famoso Alexandre
de Oliveira Lima, popularmente chamado Lixandre Liveira Lima, que, por isso,
marcada sua borracha com três LLL, e apelidado o Barão da Boca do Amonea, tal
seu poderio naquelas paragens.
Desta sorte,
compreendendo o Acre nas suas duas metades, incomunicáveis pelo interior das
terras, compreender-se-á que o processo histórico da luta por sua incorporação
ao todo nacional, tanto quanto o da penetração seringueira, teve de ser
condicionado a essa diferenciação. Do que se conclui que temos sempre, em
jornais e livros, referido e glorificado a conquista da bacia Purus-Acre,
esquecendo quase completamente a do Juruá-Tarauacá. Torna-se necessário, pois,
uma síntese que nos dê de fato a visão panorâmica total.
Esta é a tese pela qual
se bate o Dr. Manuel Onofre de Andrade, colhendo o depoimento de sobreviventes
idôneos daqueles acontecimentos. Diz, por exemplo, o farmacêutico Mário de
Oliveira Lobão, que chegara a Cruzeiro do Sul, no Juruá, em 24 de outubro de 1904,
sendo testemunha da luta em prol da incorporação ao Brasil daquela metade do
Acre:
De ordem do Coronel
Gregório Taumaturgo de Azevedo, sendo Comandante do 15.º Batalhão de Infantaria
o Coronel maranhense, Cipriano Alcides dos Santos, foi confiada a direção da
avançada pelo rio Amonea ao Capitão sergipano Francisco de Ávila e Silva. Para
isso, a 25 ou 26 de outubro de 1904, partiram da localidade já denominada
Invencível os gaiolas ou navios fluviais “Moa”, da firma Melo &
Cia., comandado por Alexandre Sussuarana e tendo como prático Heitor Bentes de
Sousa e “Contreiras”, da propriedade de Hermínio Contreiras de Oliveira, tendo
como Capitão, Luís Martins e como prático, Benvindo Luís e Romão Solimões,
ambos levando 50 soldados do Exército sob as ordens do Capitão Francisco de
Ávila e Silva, acompanhado pelo Delegado de Polícia, Tenente Guapindaia.
Participava da expedição o jornalista português Fran Pacheco, nomeado pelo
Coronel Taumaturgo, Secretário da Prefeitura do Alto Juruá. A finalidade da
expedição era expulsar ou prender na região do Amonea os cobradores de impostos
do Peru, que apoiados num destacamento do Exército, arrecadava dinheiro dos
nossos seringalistas ali localizados e até se tinham estabelecido num lugarejo
a que chamaram Nuevo Iquitos, atual Vila Taumaturgo.
A 2 de novembro de
1904, de acordo com a testemunha já nomeada, os vapores chegaram à Praia do
Feijó, onde o “Contreiras” passou a navegar na frente do “Moa”, reforçado com
mais 10 homens. Assim chegaram no dia 4 ao Seringal Minas Gerais, de Luís de
Melo, fronteiro a Nuevo Iquitos. Ali, o Tenente peruano D. Severo Ramirez
exigiu os impostos do Comandante do “Contreiras”, sendo aprisionado com as 4
praças que o acompanhavam. E, logo, o “gaiola” rumou para o Rio Tejo sob a
fuzilaria do destacamento inimigo que ocupava a barranca marginal. Não houve
vítimas a lamentar e os expedicionários alcançaram à tarde o seringal de
Francisco Bonifácio da Costa, na foz do Tejo.
Tinha os peruanos no
local 80 homens bem armados e municiados, dispondo de metralhadoras, sob as
ordens do General Suarez. Os dois “gaiolas” não puderam combinar um ataque à
posição inimiga, devido a ter o “Moa” encalhado e a dificuldades outras de
navegação, em virtude da baixa das águas. Mas o destacamento brasileiro em
batelões e canoas penetrou os igarapés, desembarcou e tomou posição para
atacá-la por três lados: no seringal fronteiro, Minas Gerais, na margem direita
do Juruá e por trás de Nuevo Iquitos. Muitos seringueiros armados reforçaram as
50 praças de infantaria. O capitão Ávila ficou no seringal, o Tenente Mateus na
barranca do Juruá e o ex-Cadete da Escola Militar de Fortaleza, Oséas Cardoso
na terceira face do ataque. Intimados a capitular, os peruanos recusaram e
começou o fogo de parte a parte, que durou até as 5 horas da manhã do dia 5 de
novembro. Então, cercado e maltratado pela fuzilaria certeira dos seringueiros,
o Coronel Ramirez rendeu-se com as honras da guerra, recolhendo-se ao
Departamento de Loreto. Os peruanos perderam 9 homens e tiveram muitos feridos.
Os brasileiros perderam somente um e tiveram poucos feridos. O farmacêutico
Lobão, que viajava no “Contreiras”, foi quem os socorreu com os medicamentos
que levava.
Ao Dr. Manuel Onofre de
Andrade, o Comandante Heitor Bentes de Sousa, que servira como prático num dos
“gaiolas” da expedição, corroborou nas linhas gerais o depoimento acima,
acrescentando que, na luta armada contra as tropas peruanas, o seringalista
Francisco Bonifácio da Costa armara e sustentara 100 voluntários, e nela
participaram com brilho o jornalista Carlos Chauvin e vários cadetes que tinha
sido expulsos por indisciplina da Escola Militar de Fortaleza, como esses:
Gastão Souto, Francisco Januário de Assis e Urbano Müller, irmão do Ministro
Lauro Müller, que faleceu como Tabelião no Rio de Janeiro.
O relatório sobre a
expulsão pelas armas dos soldados peruanos que transpuseram os limites do Rio
Breu e se adentraram em terras já brasileiras como as do Amonea, conquistadas
pelos cearenses de Lixandre Liveira Lima, Barão da Boca do Amonea, foi escrito
e apresentado ao Governo Federal pelo próprio Coronel Taumaturgo de Azevedo.
Ele conta a empresa realizada naquelas paragens e põe sobretudo em relevo os
serviços do Capitão Francisco de Ávila e Silva e do Tenente Fernando Guapindaia
de Sousa Brejense, no combate de Nuevo Iquitos, que durou até a capitulação de
Ramirez, 22 horas. No mesmo documento, declara ufanar-se, e com razão, de dois
acontecimentos: “O de ter sido o originador da Questão do Acre, em 1885, pela
qual me bati, despendi e sofri, e de haver cumprido o dever patriótico de
expulsar do Território, a 5 de novembro de 1904, os intrusos que nele campeavam
havia mais de dois anos”.
Eis as razões por que
se bate o Dr. Onofre de Andrade, a fim de que seja feita justiça histórica à
ação do General Taumaturgo de Azevedo na incorporação do Acre ao Brasil, sem
prejuízo da glória incomparável de Plácido de Castro, pois que diversas e
distantes são as regiões do Território em que ambos atuaram. Na verdade, como
engenheiro militar, na última década da Monarquia, Taumaturgo de Azevedo fora
demarcador oficial daquelas terras e com tal ardor protestara contra a entrega
das mesmas aos nossos vizinhos, que as disputavam, que, por isso, o submeteram
a Conselho de Guerra. Levara a questão à imprensa e publicara um livro, “O
Acre”, que chamou para o assunto a esclarecida atenção de Rui Barbosa e de Rio
Branco. O ilustre militar governou o Amazonas, o Piauí e a cidade do Rio de
Janeiro com honestidade e proficiência, presidiu a Comissão de Limites com o
Peru, traçou a planta da cidade de Cruzeiro do Sul de que foi Prefeito,
comandou a Brigada Policial do Distrito Federal e, nos últimos tempos de sua
vida, deu à Cruz Vermelha o melhor de seus esforços.
É essa figura que não
deve ficar esquecida na história da Conquista e Incorporação do Acre ao Brasil.
BARROSO, Gustavo. As duas metades do Acre. O
Cruzeiro (Revista), Rio de Janeiro, 13 setembro de 1952, ano 24, n. 48, p.
29-31; 82.
Nota: “As duas metades do Acre”, de Gustavo Barroso, também encontra-se, às páginas 21 à 28, transcrito no opúsculo “Amazônia: o papel decisivo do Mal. Taumaturgo de Azevedo na questão do Acre” (1968), de Manuel Onofre.
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