Texto de Eduardo Campos
Naquela rua do Pirambu, em Fortaleza, vivia um
homem simplesmente chamado “O Pintor”. Quando lhe faltava trabalho – pois
ocupava-se em consertar fogão e aspas de guarda-chuva – acocorava-se ao pé de
um muro branco e o enchia de caprichosos desenhos, colorindo-os depois. Jean
Pierre Chabloz, o extraordinário artista suíço, primeiro descobriu o muro,
depois esse fascinante pintor, que se chama Francisco Domingos da Silva,
analfabeto – como se diz no Norte – de pai e mãe.
Silva nasceu a 16 de março de 1922, no distrito
de Alto-Tejo, Acre. São seus pais, Luís Domingos da Silva e D. Minervina Félix
de Lima, gente de prendas domésticas e que jamais compreendeu “aquela doidice”
do filho em pintar bichos da floresta.
O primeiro quadro de Silva, pintado em 1937,
denominou-se “Um Dragão Comendo Arraia”. Em 1961, a 4 de abril, os “Diários
Associados, em Fortaleza, organizaram uma amostra de seus trabalhos. Doze ao
todo. Á inauguração compareceu o pintor, descalço, com o filho caçula no braço.
E assim pôs a ouvir a louvação que lhe fez o Governador do Estado, Dr. Parsifal
Barroso, a enaltecer-lhe a sua arte de artista espontâneo primitivo.
Francisco Domingos da Silva não sabe ler nem
escrever. A sua assinatura é curiosíssima. As letras toscas são como um sinal
de ferro de marcar gado. É exageradamente loquaz. Capaz também de fazer um
discurso. Com o dom de improvisar, é atilado em suas observações sobre a
política social do Pirambu, bairro onde habita. Tem frases saborosas para
expressar o seu pensamento. Nunca se sabe quando o nome, com quem batiza os
seus animais, corresponde à realidade. Gavião Vipino? Que será? Viperino? E peixe
Paragô? Significa mesmo um espécime ictiológico?
Sua imaginação é fértil, como são exuberantes
as cores de seus quadros. Seu professor foi Deus. Aprender o manejo da escala
cromática em contato com a natureza. A escola de arte que conheceu foi a floresta
amazônica, onde viveu mais de quinze anos.
Há quem o considere índio. Visto de frente,
assume caracteres étnicos tribais. Á interrogação franca, repele: “Tive índio
na família, mas isso foi “coisa” distante”.
É anárquico. Pode-se dizer que somente conhece
disciplina na pintura. Não possui um plano de vida. Dos seis filhos que tem,
apenas dois vivem em sua companhia. Não é econômico, mas gosta tanto de
dinheiro que ri quando vê uma cédula mil cruzeiros.
Pinta, geralmente, em cartolina. Preparado o trabalho
– geralmente aquarela –, enrola-o e leva-o à rua, onde consegue vendê-lo sem dificuldade.
À universidade do Ceará conseguiu reunir a
maior coleção de telas de sua autoria. Nesses quadros – mais de vinte – há
grandiosos momentos de concepção artística flagrados ali com o melhor do
talento do pintor. Os bichos são sua temática. Raramente pinta homem ou mulher.
Mas cada peixe que pinta, cada ave, salta de dentro de seu complexo selvagem.
Vincula-se ao mundo de fantasia, extraordinariamente belo, que cria para,
instintivamente, ausentar-se da extrema penúria em que vive.
É um autêntico e deslavado mentiroso, com tal
equilíbrio no contar as suas histórias que jamais oferece duas versões
diferentes para estas. Nota se que se esforça para não se deixar trair, no
intuito de que nós, seus admiradores, continuemos estonteados diante do comprometimento
irreal que o alia aos animais de seu mundo primitivo.
Nessa primorosa amostra de seu talento os
leitores de “O Cruzeiro” poderão sentir como o pintor popular, tão despido de
cultura, consegue vestir-se com tantos talentos. O desenho é secundário em suas
criações, porque o que vale realmente é a compreensão cromática que exibe. Em
alguns quadros, como no “Peixe Paragô, além da cor e do aprumado desenho, o
ritmo alcançado é decisivo. Todas as suas figuras repelem o comodismo da
estática. Os gaviões, as cobras, toda a toda a sua engenhosa fauna parece
querer saltar, precipitar-se. Os que estão deliciando, agora, ao folhear estas
páginas, com as belas reproduções em cores de seus quadros aqui insertos,
completarão, temos certeza, o elogio do pintor.
Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1963, edição 51, p. 108-111
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