Franco Cispeira
Sim ! Foi na Terra-Firme-Geral, na matta bruta,
im-
pe-
ne-
tra-
vel !
( Não fosse eu magro e audaz como um
seringueiro flagellado,
Chegado ao Barracão depois de quarenta duas de
viagem,
A bordo da lancha “Soberana”,
Sentindo no estomago uma grande, enormíssima
Saudade da Carne de Sol! Não fosse eu
esguio
como um fio
de agua de gente
quente,
combatendo
a desgraça frente a frente!
– Lá
não teria entrado! )
“A casa de Flora era um sonho confuso,
A trama de um Averno de arvores enormes,
Ataviadas de Timbó-assú,
Timbótitica,
Tiririca,
Unha-de-gato
Espera-ahy,
Pente-de-macaco,
Muratinga,
Bico-de-tucano,
Tudo
balouçando,
E se entrelaçando,
Homenagem a Mario Andrade na passagem por Manaos |
Como se fosse os grandes fios
do cabelo verde
da Yara de olhos amarelos,
Que carregou
para o fundo do Rio Negro
o guerreiro Jaguarary...
“Sim! Creiam,
almas envenenadas de malicia !
Eu vi
O bicho Mapinguary...
“Os meus olhos
sahiram três quilômetros
Além das orbitas sangrentes !
E os meus cabelos, wagnerianamente agitados e
rebeldes
Ao pente,
Subiram,
Subiram,
Subiram,
A três mil e quinhentos metros de altura,
Batendo o record da ascendência do
Pavor!...
“Hon ! Hon ! Hon ! Hon-Rhiiiiiiu ! Hiu ! Hiu !
! !”
Era ele! Um bicho assim do
Tamanho do
Mario
Andrade
E da grossura do constitucionalissimamente
senador
Lopes
Gon-
çalves...
Com um olho só, muito redondo e perquirente
No meio
da
testa!
Feio ! Feio ! Feio !
Horripilantemente tremebundo,
Grunhindo, guturalmente,
Saxofonicamente :
Hon
!
Hon
!
Hon
!
“Era ele! (Sem duvida!) O terror dos
Seringueiros do Paiz das Amazonas!
Cabeludo, de pernas curtas, bracilongo... (Até
parece
Um urso; mas, segundo opiniões abalizadas, há de
ser algum
Raro exemplar do Dinothério ou Megathério, com
a idade
– mais ou menos –
Do meretissimo senhor desembargador Ataulpho de
Paiva,
Servindo-se do aplomb do Firmissimo
Senhor deputado Dorval Porto ).
“O Mapinguary! (Senhor Deus recei a Alma do vosso
Servo !
“A seu lado – as carcaças de uns trinta jacarés
do tamanho de um bond
grande da Ligth,
Minutos antes devorados!
E mais oito onças
Bem creadas,
Espostejados,
talvez, para a merenda do Bruto...
( Afora as embiraras arquejantes... )
E o animal comia
comia
comia
Com tanta gana engulia,
Que parecia
Ter no estomago de Moloch todas as grandes fomes
que assolaram o Ceará
Nestes quatro séculos! (Vide as obras do Barão
de Studart
E “Seccas contra as Seccas”, do desembargador
Britto
Guerra)
“Pois bem: – apezar de manjares tão fartos, o
Mapinguary, quando me vio
Abriu um boccão
– Deste tamanho ! –
Hon ! Hon ! Hon ! E
deu um pulo
Pra riba de muá, como quem diz:
“Eu te engulo,
Chico !”
“Considerei a gravidade do momento. ( E
Quasi sou victima de um parto prematuro – eu que
tenho no prelo
Um livro de versos! )
Num milesimo de segundo,
Comprehendi toda a grandeza, toda a magnitude
do Viver!...
A vida!... Oh! A Vida... A Vida é bella!...
E a Perfeição
Deve
Ser leve
Como a neve
Breve!...
“Diante do bicharoco, eu senti a
Agrada-
Bilissima
Im-
Pressão
De ser flú...
flú...
flúido...
( Na verdade, eu não me apercebia do pezo da materia,
Nem tinha a noção do que fosse
A ossatura
Humana...
“Homem-Sonho ! homem-Volatização!...
Que bom !
Eu – Poeira Impalpavel, ourejando ao Sol de um
Medo Heroico !
Eu – Lembrança Vaga de mim mesmo !
Eu – Desejo Incontido de Não Ser !
– O Homem-Renuncia que perdeu as pernas,
atravessando as Nuvens,
Seguindo a Cavalgada das Walkyrias !...
“E decido-me a defender a Vida-Boa!
... Oh! Nunca!... Nunca!
Ser comigo, assim, na matta; assim,
Bestialmente, por um animal que veio ao Mundo
Antes do Diluvio ! (Coragem! Coragem!
– Dizia uma voz enérgica, escondida no meu abdômen:
–
Banca o Valente que ele acaba dando
– o fora –)
“Falei: – Mapinguary! Está escripto: – o
morrerás!
Prrrááá!
Prrrááá!
Prrrááá!
– Trez
Tiros
De
Rifle
Calibre
44!
Bala na agulha novamente...
O bicho guincha, pula, abre o bocão...
Tremem
As arvores e a Terra...
Pela espinha dorsal dos paranás, das
aguas-paradas, passa um calafrio...
O rifle engasga.
E o Mapinguary
ri,
ri,
como um palhaço sentimental,
comendo fogo
num circo de cavalinhos.
E avança, feio e forte, na minha direcção.
Jogo-lhe o rifle á cara.
...E o monstro engole a Winchester, como se a arma
fosse
– um pirolito !
“Que me restava, então? Morrer !
Morrer!... “quando
este Mundo é um Paraizo!...”
E resolvi morrer de pé. Fiquei firme, o olhar duro,
o coração
Tuco-tuco!
Tuco-tuco!
Tuco-tuco!
“O Mapinguary, estacando a dez passos, olhou-me
alto
a
baixo,
Formaliza-se,
Perfila-se,
Como faz um recruta no exercício, em frente do
sargento-instructor,
Commissionado no posto de
2.º Tenente,
Por serviços relevantes prestados á Legalidade...
E marcha esticadíssimo,
Marcialissimo,
Na minha direção...
Fiz o Tom-Mix da Indifferença que espia de
soslaio...
E á proporção que o bicho avança,
No seu passo-de-ganço ameaçador,
Eu berro, lembrando
“O Alto”
Um-dois! Um-dois!
Um-dois! Um...
“O Terror dos Seringueiros das Mattas do Rio
das Amazonas,
Ouve a extranha voz, assusta-se e estaca,
intrigando...
Um-dois!...
Um!...
E baixando o longo pêllo negro da pupila sobre
o olho único,
Redondíssimo, que
Possue no
meio
da
testa,
Fica sem saber em que terra nasceu. Encabula !
Gloria ao Homem ! A melhor obra de cerâmica
Da Creação !...
Um-dois!
Um-dois!
Mapinguary inquieta!
Um...
Dois-tres-quatro-cinco-seis...
Mapinguary tremendo...
Dois
Um-dois ! Um-dois !
Mapinguary rodando
nos pés redondos...
Um-dois-um-dous ! Um
Mapinguary entrando,
com todos os diabos
Pela matta a dentro, derrubando as sumaumeiras,
as castanheiras
os taxizeiros
os mulateiros,
Fazendo um estrepido de Fim de Mundo !
Um-dois ! Uuum !
Dôôôôôôis !
Oh ! vivam os meus suores frios da Alegria da
Ressurreição !
Uuuumm-Dôôôôôôis
!
Conheceu, papudo ?
“Eu vi... Eu vi
o Mapinguary
Hon ! Hon ! Hi ! Hi !”
... E o homem do tapery solitário mordeu o
pedaço
De Lua que estava pendurado no Céu Amarello
Da Terra-Verde...
Franco Cispeira
CISPEIRA, Franco in CLOS, Daioneta; SILVEIRA, Oldovar. O Homem que engoliu o próprio sonho. Manaus: Typographia da papelaria velho Lino Local, 1927. p. 13-18
Nota: o contexto do folheto é a passagem do escritor modernista Mário de Andrade, que esteve no Amazonas em 1927, na sua famosa viagem etnográfica pelo Brasil.
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