domingo, 1 de janeiro de 2023

POEMAS DE PAULINA CHIZIANE

 

Deixo-te uma pátria livre do colonialismo

 

Escuta o grito de todos os teus ancestrais:

Amamos-te muito antes de nasceres, ó África de hoje

Por ti renovamos a esperança mesmo depois de mortos

Envolvemo-nos em batalhas, quebramos correntes

Para te deixarmos uma pátria livre como herança

 

Ao sol os novos invasores vestirão a mais fina pele de cordeiro

Lobos que são, uivarão nas alcateias em todas as noites de lua

Piratas destemidos, tentarão derrubar até o marulhar das ondas

E quererão substituir Deus na criação de África

 

Os invasores em fuga deixam línguas, armas e saberes

Usa-os na construção da união e fortaleza, ó nova África

Devolve ao teu povo a história e a dignidade usurpadas

Porque o futuro, esse espaço intangível, ideal, perfeito

Espera de ti esse gesto de nobreza

 

Segura as estrelas que te roubam das mãos

Coloca o arco-íris no centro de tua mente.

Sustenta a esperança acima de todas as coisas

Tu não estás só, estás com Deus e com a memória

Dos teus antepassados e dos mártires de África p. 20

 

 

Amor e ódio

 

I

 

Preciso de um lugar para aliviar este desconforto

Tenho diarreia, não tenho latrina nem penico

Perdoem-me, irmãos, mas é a condição que nos deram

Vou fazer tudo aqui aos olhos das mulheres e crianças

 

Somos animais neste curral trancado por fora

Se tentar abrir esta porta levo uma bala no peito

Levam-me às chicotadas no tronco, meu Deus!

Só me resta chorar e dormir por cima dos meus dejetos

 

Cheira a dor e náuseas neste barracão

Cheira a escravo, cheira a catinga de homem negro

Transformado em animal pelos seus semelhantes

Cheiro da podridão da alma dos poderosos

 

Mas que espécie de gente é esta, que celebra

O massacre e a sangria dos seus semelhantes?

Como conseguem eles se alegrar, festejar, sorrir

Perante o desespero e sal das nossas lágrimas?

 

II

 

De fuzil nos ombros seguem todos os nossos passos

Vigiam-nos os gestos e espremem o suor dos nossos poros

A boa colheita se avizinha, os cafezeiros estão a florir

Os campos de milho gordo se estendem até o horizonte

 

Empurram-nos com chicote para o mais absoluto inferno

E gritam-nos incessantemente palavras más

Sentem vitória em atormentar os filhos de Deus

E sugam o nosso sangue que lhes sabe a néctar dos deuses

 

III

 

Agora que a escravatura acabou, minha África

Repousa e medita na sombra da árvore sagrada

Por que todos te odeiam, te matam e te saqueiam?

Por que te desprezam e sempre te procuram?

 

Só se cobiça o que tem valor e brilho

Só sei inveja aquilo que não se tem

Só se procura o que se deseja

E só se mata a quem se teme p. 54-55

 

 

Prece do escravizado

 

Ao alto dos céus chegarei

E iluminarei o mundo em toda a sua imensidão

Sereia eterno como o sol

E ganharei todas as formas de liberdade

 

Amanhã serei a luz do mundo

Serei o amor, a paz, a certeza

E o meu sangue ressurgirá do pó

Com a vitória das almas martirizadas

 

Serei o sol nascente

Vanguardeiro na revolução do amor

Apagarei todas as marcas de ódio

Que imprimiram sobre a minha raça

 

Serei o consolo e o porto seguro

De todos os sofredores do mundo

Que assim seja! p. 87

 

 

Liberta-te

 

I

 

Desperta! Lava os olhos no banho da liberdade

Busca as tuas pegadas nas frias cinzas da História

Regressar às raízes é isto: percorrer caminhos sinuosos

Até descobrir o teu brilho no espelho do mundo

 

As campanhas coloniais colocaram-te uma venda nos olhos

Resiste. Não te deixes apagar e luta com o que te ofusca

Reconhece-te. Estás presente em todas as maravilhas do mundo.

 

A maior intenção da escravatura era esta

Reduzir-te. Animalizar-te. Diabolizar-te

O interesse do colonialismo, racismo, era este

Apagar-te para que nunca te levantes do chão

Reconheça-te, africano, nas religiões que dominam o mundo

 

Na riqueza do mundo. Nas matérias-primas de todas as tecnologias

Mata os fantasmas e anula o estigma com que te descrevem

Que determinava a raça de Deus e o espaço geográfico da sabedoria.

 

II

 

Regressa às raízes e descobre-te. estuda-te

Quantos escravos foram vendidos e para onde foram?

Não sabes? E por que não procuras saber?

Espera que os agressores te deem informação?

E como te darão se não lhes convém?

 

Procura-te

À tua música chamam folclore e à arte, artesanato

Ao teu religioso, superstição e ao teu sagrado, diabólico

Tira as mordaças com que te animalizam. Conhece-te

 

III

 

Os colonos já foram mas deixaram capangas

Fiéis guardiões dos fantasmas do passado

Alguns capangas, negros sábios, sentados nas cátedras

Cortam as asas da alma ei abortam o voo da liberdade.

Identifica-os. Educa-os. Liberta-os p. 124-125

 

 

CHIZIANE, Paulina. O canto dos escravizados. Belo Horizonte: Nandyala, 2018. 

Um comentário:

Matias Pinheiro disse...

UM GRANDE DESABAFO DE PAULINA CHIZIANE NOS SEUS POEMAS, LINDOS POEMAS UM GRITO DE LIBERDADE DA NOSSA AFRICA SOFRIDA