Deixo-te uma pátria livre do colonialismo
Escuta o grito de todos os teus ancestrais:
Amamos-te muito antes de nasceres, ó África de
hoje
Por ti renovamos a esperança mesmo depois de
mortos
Envolvemo-nos em batalhas, quebramos correntes
Para te deixarmos uma pátria livre como herança
Ao sol os novos invasores vestirão a mais fina
pele de cordeiro
Lobos que são, uivarão nas alcateias em todas
as noites de lua
Piratas destemidos, tentarão derrubar até o
marulhar das ondas
E quererão substituir Deus na criação de África
Os invasores em fuga deixam línguas, armas e
saberes
Usa-os na construção da união e fortaleza, ó
nova África
Devolve ao teu povo a história e a dignidade
usurpadas
Porque o futuro, esse espaço intangível, ideal,
perfeito
Espera de ti esse gesto de nobreza
Segura as estrelas que te roubam das mãos
Coloca o arco-íris no centro de tua mente.
Sustenta a esperança acima de todas as coisas
Tu não estás só, estás com Deus e com a memória
Dos teus antepassados e dos mártires de África p.
20
Amor e ódio
I
Preciso de um lugar para aliviar este
desconforto
Tenho diarreia, não tenho latrina nem penico
Perdoem-me, irmãos, mas é a condição que nos
deram
Vou fazer tudo aqui aos olhos das mulheres e
crianças
Somos animais neste curral trancado por fora
Se tentar abrir esta porta levo uma bala no
peito
Levam-me às chicotadas no tronco, meu Deus!
Só me resta chorar e dormir por cima dos meus
dejetos
Cheira a dor e náuseas neste barracão
Cheira a escravo, cheira a catinga de homem
negro
Transformado em animal pelos seus semelhantes
Cheiro da podridão da alma dos poderosos
Mas que espécie de gente é esta, que celebra
O massacre e a sangria dos seus semelhantes?
Como conseguem eles se alegrar, festejar,
sorrir
Perante o desespero e sal das nossas lágrimas?
II
De fuzil nos ombros seguem todos os nossos
passos
Vigiam-nos os gestos e espremem o suor dos
nossos poros
A boa colheita se avizinha, os cafezeiros estão
a florir
Os campos de milho gordo se estendem até o
horizonte
Empurram-nos com chicote para o mais absoluto
inferno
E gritam-nos incessantemente palavras más
Sentem vitória em atormentar os filhos de Deus
E sugam o nosso sangue que lhes sabe a néctar
dos deuses
III
Agora que a escravatura acabou, minha África
Repousa e medita na sombra da árvore sagrada
Por que todos te odeiam, te matam e te
saqueiam?
Por que te desprezam e sempre te procuram?
Só se cobiça o que tem valor e brilho
Só sei inveja aquilo que não se tem
Só se procura o que se deseja
E só se mata a quem se teme p. 54-55
Prece do escravizado
Ao alto dos céus chegarei
E iluminarei o mundo em toda a sua imensidão
Sereia eterno como o sol
E ganharei todas as formas de liberdade
Amanhã serei a luz do mundo
Serei o amor, a paz, a certeza
E o meu sangue ressurgirá do pó
Com a vitória das almas martirizadas
Serei o sol nascente
Vanguardeiro na revolução do amor
Apagarei todas as marcas de ódio
Que imprimiram sobre a minha raça
Serei o consolo e o porto seguro
De todos os sofredores do mundo
Que assim seja! p. 87
Liberta-te
I
Desperta! Lava os olhos no banho da liberdade
Busca as tuas pegadas nas frias cinzas da História
Regressar às raízes é isto: percorrer caminhos
sinuosos
Até descobrir o teu brilho no espelho do mundo
As campanhas coloniais colocaram-te uma venda
nos olhos
Resiste. Não te deixes apagar e luta com o que
te ofusca
Reconhece-te. Estás presente em todas as maravilhas
do mundo.
A maior intenção da escravatura era esta
Reduzir-te. Animalizar-te. Diabolizar-te
O interesse do colonialismo, racismo, era este
Apagar-te para que nunca te levantes do chão
Reconheça-te, africano, nas religiões que
dominam o mundo
Na riqueza do mundo. Nas matérias-primas de
todas as tecnologias
Mata os fantasmas e anula o estigma com que te
descrevem
Que determinava a raça de Deus e o espaço
geográfico da sabedoria.
II
Regressa às raízes e descobre-te. estuda-te
Quantos escravos foram vendidos e para onde
foram?
Não sabes? E por que não procuras saber?
Espera que os agressores te deem informação?
E como te darão se não lhes convém?
Procura-te
À tua música chamam folclore e à arte,
artesanato
Ao teu religioso, superstição e ao teu sagrado,
diabólico
Tira as mordaças com que te animalizam. Conhece-te
III
Os colonos já foram mas deixaram capangas
Fiéis guardiões dos fantasmas do passado
Alguns capangas, negros sábios, sentados nas
cátedras
Cortam as asas da alma ei abortam o voo da liberdade.
Identifica-os. Educa-os. Liberta-os p. 124-125
CHIZIANE, Paulina. O canto dos escravizados. Belo Horizonte: Nandyala, 2018.
Um comentário:
UM GRANDE DESABAFO DE PAULINA CHIZIANE NOS SEUS POEMAS, LINDOS POEMAS UM GRITO DE LIBERDADE DA NOSSA AFRICA SOFRIDA
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