Lembro quando, em 1959, E Deus Criou a
Mulher (Et Dieu Créa la Femme, 56, de Roger Vadim) estreou em
Manaus. Eu tinha doze anos. Não se falava de outra coisa na cidade. Um amigo do
meu pai havia visto o filme no Rio de Janeiro e sua esposa retornara horrorizada:
Ela fica nua sem pudor! É nojenta! – este foi bem o termo que usava para
se referir à Brigitte Bardot. Eu e meus irmãos velhos, Gualter e Gilma, loucos
para ver aquele “escândalo”, pedimos auxílio ao nosso mon ocle tio
Cazuza. Prontamente chegamos ao Cine Polytheama, respeitosamente acompanhados,
inclusive, pela nossa tia Nícea. O porteiro do cinema logo reconheceu a gente,
frequentadores assíduos, e avisou: “Esses meninos não podem entrar, eles não
cumprem a censura”. “Como não? Eles têm quinze anos!”, respondeu meu tio,
achando que a idade mínima era de quatorze. Mas o filme é proibido para
menores de dezoito anos!, rebateu o porteiro. Meu tio, sempre cúmplice, não
titubeou: “Então eles têm dezenove!”. E vimos o filme.
...E Deus criou o cinema!
Mais do que ilustrar a minha paixão desde
criança pelo cinema, esta anedota explica muito da família que me criou e da
Manaus em que cresci. A cidade ignorava a censura federal e os oito cinemas
locais, quatro de cada cadeia, permaneciam sempre de portas abertas para todos
– uma das vantagens de se morar numa cidadezinha de 150 mil habitantes, cercada
pela selva amazônica por todos os lados, sob um sol e calor infernais.
O “ciclo da borracha” já havia se extinguido,
deixando como herança os casarões portugueses. Manaus era quase uma aldeia,
estagnada no tempo e isolada no espaço – sem estradas que não fossem os grandes
rios, sem luz elétrica nas casas, sem televisão. Apenas os aviões, que pousavam
lá duas ou três vezes por semana, traziam sinais do mundo exterior, como os
enormes rolos de filmes que estreavam todo dia. A literatura era, para nós, a
chave do mundo. Mas o cinema era as portas do século XX.
O primeiro filme que vi, me contam, foi Aviso
aos Navegantes (Brasil, 1950, de Watson Macedo). Diziam que eu chorava
muito. Mas o primeiro do qual tenho memória, talvez por ser colorido, talvez
por ser desenho animado, foi Bambi, de Disney. De qualquer maneira,
sempre tive o hábito de ir ao cinema desde muito cedo. Minha avó materna –
Filomena Demasi Limongi – pertencente a uma das quatro famílias italianas que
migraram da Basilicata, na Itália, para Manaus – sempre nos levava às matinês.
Com ela, mesmo sem saber, assisti a todo o neorrealismo italiano. Ela adorava.
Meu pai, Djalma da Cunha Batista, um médico muito popular e querido na cidade,
verdadeiro visionário, um ecologista antes mesmo de se inventar o termo, também
amava o cinema. Muitas vezes contratava um projecionista para passar filmes lá
em casa mesmo, com lotação esgotada de primos, amigos, vizinhos.
Seus oito filhos herdaram essa paixão, mas
nenhum tanto quanto eu e Gualter. Ele era o mais velho dos homens, batizado
como meu avô. Sou o segundo e recebi o mesmo nome do meu pai (até hoje tenho
amigos que visitam Manaus e acham que a principal avenida da cidade é uma
homenagem a mim!). Quase viro “Júnior”, mas fui salvo a tempo por meu rigoroso
e temido avô Gualter, que impôs que eu fosse registrado com o Limongi de minha
mãe, Gilda Limongi Batista. Depois vieram José Roberto e Cláudio. Entre as
meninas, Gilma, Marilena, Edith e Francisca. Todos – como bons nortistas – com
seus respectivos apelidos, muitos apelidos pelos quais nos tratávamos no
cotidiano. O meu sempre foi Nani. Não preciso dizer que morava numa casa, no
mínimo, animadíssima.
Foi o cinema que uniu Gualter e eu, mais que os
outros irmãos. Íamos praticamente todo dia ao cinema, às vezes matando aula de
datilografia para pegarmos duas ou três sessões seguidas. Quanto bem crianças,
eram as empregadas domésticas que nos levavam para assistir aos musicais da
Atlântida, que nós adorávamos. Para horror do meu pai, que não admitia que os
atores falassem português errado ou, pior ainda, que Oscarito e Grande Otelo
aparecessem vestidos de mulher.
Devorávamos todo estilo e gênero de filme, e
logo a família começou a perceber que havia ali dois irrecuperáveis monstrinhos
cinematográficos... Acordávamos a casa toda, em plena sesta (naquela época,
havia sesta obrigatória no norte), discutindo quem sabia mais sobre filmes,
diretores, atores – com nossos caderninhos de perguntas e respostas e nossos
recortes das revistas Cinelândia e Cinemascope (guardo alguns
encadernados até hoje). Até a vovó Filomena, que alimentara aquele nosso hábito
desde cedo, uma vez me viu encenar uma morte super dramática em uma brincadeira
de “mocinho e bandido” e vaticinou: “Excesso de cinema!”.
Gualter e eu éramos muito parecidos. Gildowisky
(gozação carinhosa a nossa mãe, como se ela comandasse a família como uma
inabalável camarada russa) nos vestia igual e todo mundo perguntava se éramos
gêmeos. Só depois, na adolescência, meu irmão ficou pequeno e eu espichei como varapau
para meus 1,90 m de altura. Fui amorenando e ele continuou branquinho, lindo,
bem italianinho. Mas, no cinema, logo tivemos gostos diferentes. Ele era fã nº
1 de Jeanne Moreau; eu gostava mesmo era da Marilyn Monroe aí. Eu me
concentrava nas tramas; ele sempre foi muito visual, viajava nas cores e nos
detalhes do cenário, na fotografia.
Em pleno filme, muitas vezes até se esquecia da
história, cutucava minhas irmãs e perguntava: “O que está acontecendo?”. Elas
caíam na gargalhada.
E assim ele cresceu para se tornar um grande
artista plástico e o diretor de fotografia de nossos filmes. Foi meu maior
parceiro e amigo, toda a vida. E a nossa cumplicidade surgiu aí: adorando os “filmes
de suspense”, comédias e musicais de Hollywood; Cleópatra e todos os “péplons”
(fitas de halterofilistas/gladiadores) da Cinecittà (deste só eu gostava!) e
descobrindo a Nouvelle Vague com Quem Matou Leda? (À Double
Tour, 59, de Claude Chabrol); vendo Antonioni, Fellini, Visconti;
acompanhando a formação do cinema brasileiro pela Vera Cruz de O Cangaceiro
(Brasil, 53, de Lima Barreto), até surgir A Grande Feira (Brasil, 61, de
Roberto Pires) do ciclo baiano, depois o Cinema Novo... Eu só nunca tive saco
para filme de bangue-bangue.
DJALMA LIMONGI BATISTA in NADALE, Marcel. Djalma
Limongi Batista: livre pensador/por Marcel Nadale. São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2005. p. 11-17
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DJALMA LIMONGI BATISTA nasceu em Manaus-AM, em 9 de outubro de 1947, e faleceu, nesta terça-feira, 14 de fevereiro de 2023, em São Paulo. Filho de Djalma da Cunha Batista e Gilda Limongi Batista. Consagrado diretor de cinema, iniciou sua carreira em 1968, com o curta-metragem “Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora”. Em seguida vieram os também curtas “Retorna, Vencedor” (1968), “O Mito da Competição do Sul” (1969), “Hang-five” (1969), “Puxando Massa” (1972), “Porta do Céu” (1973) e “Rasga Coração – O Teatro Brasileiro de Anchieta ao Oficina” (1973), até estrear o seu primeiro longa-metragem, “Asa Branca, um Sonho Brasileiro” (1981), premiado como Melhor Direção nos Festivais de Brasília, Gramado, no Prêmio Air France de Cinema e como Melhor Filme no Prêmio Air France de Cinema e no Festival des Trois Continents, além dos prêmios para as atuações de Walmor Chagas e Edson Celulari. A seguir, dirigiu no cinema “Brasa Adormecida” (1986), “Bocage, o Triunfo do Amor” (1998) e “Autovideografia” (2003), além de “Um homem indignado” (2005), no teatro, estrelado por Walmor Chagas. Publicou, em 2008, pela imprensa Oficial do Estado de São Paulo, o livro “Walmor Chagas: ensaio aberto para Um Homem Indignado”.
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