sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

POEMAS DE ANTONIO TAVERNARD

PANTEÍSMO

 

O poente é um mirífico Calvário

onde as nuvens vão crucificar

um louco sonhador, visionário

que pelos céus, andou a predicar

o evangelho singular

da paz, da luz, do brilho, do calor...

 

As Horas – Fariseus o condenaram

no Sinédrio da Tarde, e o açoitaram

com o azourrague do Vento,

sob o horror

de um bando de andorinhas assustadas...

 

Eis o cortejo das descabeladas

Nuvens escuras, feias, arrastando

o Mártir ensanguentado,

semi-nú, coroado

de cirrus, na Via Sacra da Amplidão!...

atrás da turba má, covarde

– piedosa, soluçando, mas serena –

segue a Maria Madalena

da Estrela da Tarde...

 

Há, no infinito, ecos de maldição!...

Está de pé a Cruz,

e, nela o Sol – que louco padecente! –

pregado foi com os cravos de luz

das primeiras estrelas... de repente,

a multidão de Nuvens; aterrada,

recuou, ouvindo a trovoada

surda, e vendo se rasgar

o Santo Véu do Templo da Neblina,

escondeu-se por trás de uma colina...

 

De vagar,

o José de Arimatéia do Luar

despregou o corpo esmaecido

do Profeta da paz e do calor

e o foi levando, com fervor,

pálido, compungido,

até deitá-lo no Sepulcro Imenso

do Oceano, amortalhado em fúnebre silêncio...

 

E o céu, depois, aurilavrou-se

de mil constelações,

como se o estelário apenas fosse

um epitáfio de cintilações... p. 62-63

 

LIAMBA

 

Ópio verdoengo

que Jurupari semeou na Amazônia

para acabar com os ex-homens...

Anódino a princípio, narcóticos depois, entorpecente...

Sucuri de fumaça a se enrolar na gente...

 

O filho enfermo, a mulher desnuda, caindo a barraca,

o paneiro de mandioca vazio, a roça sem maniva,

o próprio desespero concentrado,

tudo se esbate, tudo se esfuma, tudo se esvai

nas pardas espirais do veneno adorado...

E o caboco fuma... E o caboco sonha...

 

Sonha que é feliz... E sorri... um sorriso

de pupilas estagnadas como lagos podres

de boca murcha como flor de lama...

um sorriso de múmia julgando viver...

 

Liamba,

demônio bom, anjo cruel,

Erva que a besta evita e que o homem procura...

Liamba,

plantio do esquecimento,

alfobre da loucura...

 

E o caboco fuma... E o caboco sonha...

(A mata ficou mais verde, mais brilhante,

uma esmeralda só...

 

E o céu, baixinho, é o manto da Nossa Senhora

de Soure, que cresceu, que cresceu

e ficou mais azul...

A vida é um domingo de Espírito Santo...

O filho sarou, a mulher sorri...

Choveu marreca, farinha, açaí...)

 

Liamba, liamba,

por que, dando o sonho,

não matas também?

 

O caboco desperta.

A floresta, com a noite, empreteceu,

o céu está longe,

a mulher fugiu, o filho morreu...

 

Não sente o caboco...

Tem o cérebro oco

e a perna tão bamba!...

tropeça,

se estende no chão...

 

Liamba,

depressa!...

Vai dar-lhe a mentira

da consolação! p. 69-71

 

 

ENTRE O ÉTER E O LODO

 

Estrelas só, o céu; sapos só, o brejal...

Nunca se viu assim astros tão baixos,

nem nunca se escutou tantos coaxos

na noite tropical...

As trevas são de luto aliviado,

de olhos de cego que começa a ver...

Passa um vento fraquíssimo, gelado,

sopro de alguém que está para morrer...

 

As noites da Amazônia são profundas,

mais noturnas que as outras! Nelas há

sensações abismais, madres fecundas

de emoções de terror. Quem nelas vá

procurar a suave poesia

de lagos láteos e de rouxinóis

apenas ouvirá essa protofonia

– ronquidos de corós,

risadas de urutaus –

que vem de quando efervesciam sóis,

que é eco do caos!...

 

Um mundo em vibrião aqui lateja

como feto num ventre colossal,

e uma seara de titãs broteja...

Germinal!...

De horrores e belezas...

de todas as misérias e grandezas...

Germinal!...

 

A Amazônia,

proteiforme, medonha,

é um estúdio de assombros singular!

Nela, sente-se, à noite, DEUS a trabalhar.

 

E, entre o charco e o céu, há um drama que não finda.

Um sapo acorda e acha uma estrelinha linda,

e quer ser luz ou ser, ao menos, asa

para voar, subir, roçar aquela brasa

de alabastro, num beijo de noivado,

e salta, e cai na lama, a coaxar... Coitado!...

 

Simbolismo

de ilógica atração

que exerce a imensidão

sobre o abismo!

 

Imensidão, o amor... Abismo, os corações...

E o poeta, sentindo a angústia e a dor dos pegos

sonhando com amplidões,

pede à Razão de Tudo – pra contê-las –

que todos os batráquios fiquem cegos,

ou que se apaguem todas as estrelas!... p. 76-77

 

 

OS TRÊS MAS DE UM DRAMA TAPUIO

 

Tinha um filho, perdeu.... Foi à mata e o plantou

bem debaixo de um pé feliz de sumaúma,

que estava todo flor, que estava todo pluma...

Depois, no tijupar nunca mais se cantou.

 

Mas como, quase sempre, uma dor não consuma

a desgraça de alguém, sua Teresa pecou,

numa tarde partiu, se perdeu, não voltou...

Numa tarde sem sol, numa tarde de bruma...

 

Ficou só... Só com DEUS...  Mas a saudade veio

lembrar como era morno e moreno esse seio

que outra boca levou, que seu beijo perdeu...

 

E seu peito estalou, como estala, potente,

o cerne do pau-ferro a tombar, de repente,

ferido pelo céu... Não vergou, mas morreu... p. 81

 

 

SIMILITUDES

 

Nasci em frente ao mar.

Meu primeiro vagido

misturou-se ao fragor do seu bramido.

 

Tenho a vida do mar!

Tenho a alma do mar!

 

A mesma inquietude indefinível,

que nele é onda, e é em mim anseio,

faz-nos tremer, faz-nos fremir, faz-nos vibrar.

Às vezes, creio

que da minha loucura do impossível

sofre também o mar.

Tenho a sua amplidão iluminada

– o meu amor; e seu velário de brumas

– minha mágoa.

 

Ruge a tormenta... e o que ele faz com a frágoa:

embates colossais,

faço com a minha fé petrificada...

té que tudo se extingue em turbilhões de espumas

e de lágrimas... Destinos abismais!...

 

Guarda em si tempestades que estraçoam,

cóleras formidáveis em mim guardo...

sobre o meu pensamento, ideias voam,

voam alciões sobre o seu dorso pardo...

 

Meu gigantesco irmão,

senhor do cataclismo,

se tens, por coração, um negro abismo,

eu tenho, por abismo, um coração.

Dentro de ti, quantos naufrágios, quantos,

de naves rotas pelos vendavais?!...

E, dentro em mim, sob aguaçais de prantos,

quantos naufrágios, quantos, quantos,

de sonhos, de ilusões e de ideais?!

 

Faço trovas a alguém que não posso beijar

tal como tu, na angústia de querê-las

sem as poder tocar,

fazes, nas noites brancas de luar,

serenatas inúteis às estrelas...

 

Sou bem fraco, porém, e tu és forte...

Nada te vencerá, há de vencer-me a morte...

Embora!... Mar morto, água dormida

que por mais nada nem de leve ondeia,

hei de deixar meus versos pela vida,

como tu deixas âmbar pela areia!... p. 83-84

 

 

ECOS SELVAGENS

 

Batuque mazombo,

paródia de bombo,

enquanto a pretada,

luzindo suada,

prepara a macumba.

 

– “Minha santa donzela”...

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

...”di roupa amarela...”

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

“qui bela tu é!...

Ti apressa, ti achega,

tem pena da nêga,

qui tanto ti qué!...

 

E estruge o batuque

à força de muque

batido a vigor...

E a roda se torce,

Contorce, retorce

jiboia de horror...

 

“Façai cum qui ele...”

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

...si cóce, se pele...

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

“somente por eu!”...

E tudo qui tenha

di mim só qui venha,

qui sêgi só meu!...”

 

E ao vento de açoite

repassam morcegos

que vão e que vêm,

tal como se a noite

mais negra que os negros,

sambasse também. p. 101-102

 

 

A VOZ DA AMAZÔNIA

 

Música lá de cima, do Norte abandonado

como alguém que ficou sem seu amor...

Música que tem langores de pecado,

e a angústia, a tortura, a agonia da dor.

 

Quaios de rios roçando por barrancos,

tais beijos de amante lascivo cingindo

o corpo da amada na curva das ancas...

Frufrulho de palmas festivas aflando...

Suspiro de virgem morena dormindo...

Cicio de pajé, puçangueiro rezando...

Soluço de “Terra-caída” caindo...

Suor de taperís perdidos na floresta,

paraíso infernal, onde o céu é uma festa,

onde a morte é um bem porque a vida é um mal...

Ressoo de gumes ferindo os arbustos,

de nostalgias lembrando os adustos

rincões nordestinos da gleba natal...

Trocano longínquo do último índio,

sem caça, sem roça, sem puba, sem taba,

carpindo a desgraça de ser ameríndio,

escravo vencido do novo ameraba...

Violões, violões, violões, violões,

ninhos de boêmios corações

que flamam,

que chamam,

que gemem,

que tremem,

que oram,

que choram,

que falam,

que correm,

que param,

que morrem

de amor, com amor, ao amor, por amor...

E sinos plangendo em ocasos da cor

de violetas, de equimoses, de olheiras

– sinos de ermida

perdida,

esquecida,

a cuja voz, porém, como se fossem freiras,

árvores em redor, cruzando galhos,

começam a murmurar, entre farfalhos,

o Ângelus das tardes brasileiras...

Gritos roufenhos de centauros broncos,

na cola do Touro, largados ao ar...

uivos e guinchos e silvos e roncos

de toda uma fauna noivando ao luar...

Resmungos de velhas, goirando nos ninhos...

Responsos soturnos de cem ladainhas...

 

Risadas sarcastas de mil acauãs...

Batuques de pés pilando mandingas,

enquanto, na água, por entre as aningas,

os botos solertes espiam as cunhãs...

– esses e muitos mais sons bárbaros, selvagens

formam a voz natural da Amazônia ignota,

vindo em elos de ecos, margem a margem,

de rechã em rechã, grota por grota,

transfundida em harmonia proteiforme,

ecoar no peito do Brasil enorme.

 

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Música lá de cima, do Norte abandonado

como alguém que ficou sem seu amor...

ouvi: vai cantar para vós o seu pecado!

Ouvi: vai chorar para vós a sua dor! p. 114-116

 

TAVERNARD, Antonio. Obras reunidas de Antonio Tavernard (Volume I - Poesia). Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1986.

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ANTONIO TAVERNARD nasceu no dia 10 de outubro de 1908, na antiga vila de de S. João do Pinheiro, hoje Icoaraci, a 18 km de Belém-PA; e faleceu em 02 de maio de 1936, aos 28 anos. Em vida publicou apenas um livro, "Fêmea" (1930, contos). No entanto, teve uma vida literária intensa em jornais e revistas. Também escreveu peças de teatro. Deixou inéditos um volume de contos - Almas Tropicais e um romance - Os Sacrificados. Em 1953, foi publicado uma seleta de suas poesias com título "Místicos e Bárbaros". Um livro, simplesmente, fascinante. Em 1986, o Conselho Estadual de Cultura do Pará, reuniu a obra de Tavernard, por ocasião "do Cinquentenário de morte do saudoso escritor conterrâneo", em dois volumes, intitulados "Obras Reunidas de Antonio Tavernard" (Volume I Poesia e Volume II Prosa).

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