PANTEÍSMO
O poente é um mirífico Calvário
onde as nuvens vão crucificar
um louco sonhador, visionário
que pelos céus, andou a predicar
o evangelho singular
da paz, da luz, do brilho, do calor...
As Horas – Fariseus o condenaram
no Sinédrio da Tarde, e o açoitaram
com o azourrague do Vento,
sob o horror
de um bando de andorinhas assustadas...
Eis o cortejo das descabeladas
Nuvens escuras, feias, arrastando
o Mártir ensanguentado,
semi-nú, coroado
de cirrus, na Via Sacra da Amplidão!...
atrás da turba má, covarde
– piedosa, soluçando, mas serena –
segue a Maria Madalena
da Estrela da Tarde...
Há, no infinito, ecos de maldição!...
Está de pé a Cruz,
e, nela o Sol – que louco padecente! –
pregado foi com os cravos de luz
das primeiras estrelas... de repente,
a multidão de Nuvens; aterrada,
recuou, ouvindo a trovoada
surda, e vendo se rasgar
o Santo Véu do Templo da Neblina,
escondeu-se por trás de uma colina...
De vagar,
o José de Arimatéia do Luar
despregou o corpo esmaecido
do Profeta da paz e do calor
e o foi levando, com fervor,
pálido, compungido,
até deitá-lo no Sepulcro Imenso
do Oceano, amortalhado em fúnebre silêncio...
E o céu, depois, aurilavrou-se
de mil constelações,
como se o estelário apenas fosse
um epitáfio de cintilações... p. 62-63
LIAMBA
Ópio verdoengo
que Jurupari semeou na Amazônia
para acabar com os ex-homens...
Anódino a princípio, narcóticos depois, entorpecente...
Sucuri de fumaça a se enrolar na gente...
O filho enfermo, a mulher desnuda, caindo a
barraca,
o paneiro de mandioca vazio, a roça sem maniva,
o próprio desespero concentrado,
tudo se esbate, tudo se esfuma, tudo se esvai
nas pardas espirais do veneno adorado...
E o caboco fuma... E o caboco sonha...
Sonha que é feliz... E sorri... um sorriso
de pupilas estagnadas como lagos podres
de boca murcha como flor de lama...
um sorriso de múmia julgando viver...
Liamba,
demônio bom, anjo cruel,
Erva que a besta evita e que o homem procura...
Liamba,
plantio do esquecimento,
alfobre da loucura...
E o caboco fuma... E o caboco sonha...
(A mata ficou mais verde, mais brilhante,
uma esmeralda só...
E o céu, baixinho, é o manto da Nossa Senhora
de Soure, que cresceu, que cresceu
e ficou mais azul...
A vida é um domingo de Espírito Santo...
O filho sarou, a mulher sorri...
Choveu marreca, farinha, açaí...)
Liamba, liamba,
por que, dando o sonho,
não matas também?
O caboco desperta.
A floresta, com a noite, empreteceu,
o céu está longe,
a mulher fugiu, o filho morreu...
Não sente o caboco...
Tem o cérebro oco
e a perna tão bamba!...
tropeça,
se estende no chão...
Liamba,
depressa!...
Vai dar-lhe a mentira
da consolação! p. 69-71
ENTRE O ÉTER E O LODO
Estrelas só, o céu; sapos só, o brejal...
Nunca se viu assim astros tão baixos,
nem nunca se escutou tantos coaxos
na noite tropical...
As trevas são de luto aliviado,
de olhos de cego que começa a ver...
Passa um vento fraquíssimo, gelado,
sopro de alguém que está para morrer...
As noites da Amazônia são profundas,
mais noturnas que as outras! Nelas há
sensações abismais, madres fecundas
de emoções de terror. Quem nelas vá
procurar a suave poesia
de lagos láteos e de rouxinóis
apenas ouvirá essa protofonia
– ronquidos de corós,
risadas de urutaus –
que vem de quando efervesciam sóis,
que é eco do caos!...
Um mundo em vibrião aqui lateja
como feto num ventre colossal,
e uma seara de titãs broteja...
Germinal!...
De horrores e belezas...
de todas as misérias e grandezas...
Germinal!...
A Amazônia,
proteiforme, medonha,
é um estúdio de assombros singular!
Nela, sente-se, à noite, DEUS a trabalhar.
E, entre o charco e o céu, há um drama que não
finda.
Um sapo acorda e acha uma estrelinha linda,
e quer ser luz ou ser, ao menos, asa
para voar, subir, roçar aquela brasa
de alabastro, num beijo de noivado,
e salta, e cai na lama, a coaxar... Coitado!...
Simbolismo
de ilógica atração
que exerce a imensidão
sobre o abismo!
Imensidão, o amor... Abismo, os corações...
E o poeta, sentindo a angústia e a dor dos
pegos
sonhando com amplidões,
pede à Razão de Tudo – pra contê-las –
que todos os batráquios fiquem cegos,
ou que se apaguem todas as estrelas!... p.
76-77
OS TRÊS MAS DE UM DRAMA TAPUIO
Tinha um filho, perdeu.... Foi à mata e o
plantou
bem debaixo de um pé feliz de sumaúma,
que estava todo flor, que estava todo pluma...
Depois, no tijupar nunca mais se cantou.
Mas como, quase sempre, uma dor não consuma
a desgraça de alguém, sua Teresa pecou,
numa tarde partiu, se perdeu, não voltou...
Numa tarde sem sol, numa tarde de bruma...
Ficou só... Só com DEUS... Mas a saudade veio
lembrar como era morno e moreno esse seio
que outra boca levou, que seu beijo perdeu...
E seu peito estalou, como estala, potente,
o cerne do pau-ferro a tombar, de repente,
ferido pelo céu... Não vergou, mas morreu... p.
81
SIMILITUDES
Nasci em frente ao mar.
Meu primeiro vagido
misturou-se ao fragor do seu bramido.
Tenho a vida do mar!
Tenho a alma do mar!
A mesma inquietude indefinível,
que nele é onda, e é em mim anseio,
faz-nos tremer, faz-nos fremir, faz-nos vibrar.
Às vezes, creio
que da minha loucura do impossível
sofre também o mar.
Tenho a sua amplidão iluminada
– o meu amor; e seu velário de brumas
– minha mágoa.
Ruge a tormenta... e o que ele faz com a frágoa:
embates colossais,
faço com a minha fé petrificada...
té que tudo se extingue em turbilhões de espumas
e de lágrimas... Destinos abismais!...
Guarda em si tempestades que estraçoam,
cóleras formidáveis em mim guardo...
sobre o meu pensamento, ideias voam,
voam alciões sobre o seu dorso pardo...
Meu gigantesco irmão,
senhor do cataclismo,
se tens, por coração, um negro abismo,
eu tenho, por abismo, um coração.
Dentro de ti, quantos naufrágios, quantos,
de naves rotas pelos vendavais?!...
E, dentro em mim, sob aguaçais de prantos,
quantos naufrágios, quantos, quantos,
de sonhos, de ilusões e de ideais?!
Faço trovas a alguém que não posso beijar
tal como tu, na angústia de querê-las
sem as poder tocar,
fazes, nas noites brancas de luar,
serenatas inúteis às estrelas...
Sou bem fraco, porém, e tu és forte...
Nada te vencerá, há de vencer-me a morte...
Embora!... Mar morto, água dormida
que por mais nada nem de leve ondeia,
hei de deixar meus versos pela vida,
como tu deixas âmbar pela areia!... p. 83-84
ECOS SELVAGENS
Batuque mazombo,
paródia de bombo,
enquanto a pretada,
luzindo suada,
prepara a macumba.
– “Minha santa donzela”...
(Pum-pum! Pum-pum-pum!)
...”di roupa amarela...”
(Pum-pum! Pum-pum-pum!)
“qui bela tu é!...
Ti apressa, ti achega,
tem pena da nêga,
qui tanto ti qué!...
E estruge o batuque
à força de muque
batido a vigor...
E a roda se torce,
Contorce, retorce
jiboia de horror...
“Façai cum qui ele...”
(Pum-pum! Pum-pum-pum!)
...si cóce, se pele...
(Pum-pum! Pum-pum-pum!)
“somente por eu!”...
E tudo qui tenha
di mim só qui venha,
qui sêgi só meu!...”
E ao vento de açoite
repassam morcegos
que vão e que vêm,
tal como se a noite
mais negra que os negros,
sambasse também. p. 101-102
A VOZ DA AMAZÔNIA
Música lá de cima, do Norte abandonado
como alguém que ficou sem seu amor...
Música que tem langores de pecado,
e a angústia, a tortura, a agonia da dor.
Quaios de rios roçando por barrancos,
tais beijos de amante lascivo cingindo
o corpo da amada na curva das ancas...
Frufrulho de palmas festivas aflando...
Suspiro de virgem morena dormindo...
Cicio de pajé, puçangueiro rezando...
Soluço de “Terra-caída” caindo...
Suor de taperís perdidos na floresta,
paraíso infernal, onde o céu é uma festa,
onde a morte é um bem porque a vida é um mal...
Ressoo de gumes ferindo os arbustos,
de nostalgias lembrando os adustos
rincões nordestinos da gleba natal...
Trocano longínquo do último índio,
sem caça, sem roça, sem puba, sem taba,
carpindo a desgraça de ser ameríndio,
escravo vencido do novo ameraba...
Violões, violões, violões, violões,
ninhos de boêmios corações
que flamam,
que chamam,
que gemem,
que tremem,
que oram,
que choram,
que falam,
que correm,
que param,
que morrem
de amor, com amor, ao amor, por amor...
E sinos plangendo em ocasos da cor
de violetas, de equimoses, de olheiras
– sinos de ermida
perdida,
esquecida,
a cuja voz, porém, como se fossem freiras,
árvores em redor, cruzando galhos,
começam a murmurar, entre farfalhos,
o Ângelus das tardes brasileiras...
Gritos roufenhos de centauros broncos,
na cola do Touro, largados ao ar...
uivos e guinchos e silvos e roncos
de toda uma fauna noivando ao luar...
Resmungos de velhas, goirando nos ninhos...
Responsos soturnos de cem ladainhas...
Risadas sarcastas de mil acauãs...
Batuques de pés pilando mandingas,
enquanto, na água, por entre as aningas,
os botos solertes espiam as cunhãs...
– esses e muitos mais sons bárbaros, selvagens
formam a voz natural da Amazônia ignota,
vindo em elos de ecos, margem a margem,
de rechã em rechã, grota por grota,
transfundida em harmonia proteiforme,
ecoar no peito do Brasil enorme.
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Música lá de cima, do Norte abandonado
como alguém que ficou sem seu amor...
ouvi: vai cantar para vós o seu pecado!
Ouvi: vai chorar para vós a sua dor! p. 114-116
TAVERNARD, Antonio. Obras reunidas de Antonio
Tavernard (Volume I - Poesia). Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1986.
____________________
ANTONIO TAVERNARD nasceu no dia 10 de outubro
de 1908, na antiga vila de de S. João do Pinheiro, hoje Icoaraci, a 18 km de
Belém-PA; e faleceu em 02 de maio de 1936, aos 28 anos. Em vida publicou apenas
um livro, "Fêmea" (1930, contos). No entanto, teve uma vida literária
intensa em jornais e revistas. Também escreveu peças de teatro. Deixou inéditos
um volume de contos - Almas Tropicais e um romance - Os Sacrificados. Em 1953,
foi publicado uma seleta de suas poesias com título "Místicos e
Bárbaros". Um livro, simplesmente, fascinante. Em 1986, o Conselho
Estadual de Cultura do Pará, reuniu a obra de Tavernard, por ocasião "do
Cinquentenário de morte do saudoso escritor conterrâneo", em dois volumes,
intitulados "Obras Reunidas de Antonio Tavernard" (Volume I Poesia e
Volume II Prosa).
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