SONETO
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, este esquisito,
este invisível vulto, apenas visto
quando o vento, de leve açoita as folhas.
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, apenas visto
quando um raio de sol morre na lágrima
que se despede de uma folha verde.
eu serei sempre assim, apenas sombra,
apenas visto quando a voz de um gesto
colher no bosque alguma flor azul.
apenas visto quando em fundo azul
voar a garça (o meu adeus ao mundo?),
enquanto a lua for calada e branca. p. 33
DO POETA E SEUS ELEMENTOS
O poeta é um território
em permanente degredo.
o poeta, por incrível,
sente frio e sente medo.
o poeta é um promontório,
além da mão como um dedo.
(sendo a mão somente a palma
o dedo é um prolongamento
como é do corpo sua alma.)
o poeta é um território
limitado por si mesmo.
se às vezes, por ilusório,
parece que anda a esmo,
é exatamente o inverso:
o poeta é um promontório
procurando mais um verso
para urdir o seu poema,
(que absurda tessitura!)
instaurando no universo
a nação que anda a procura. p. 42
SONETO DO RELÓGIO DE PULSO
no pulso o relógio pousa
como ave descansando.
por sutil ele não ousa
dizer que está trabalhando.
se nos ares voejasse,
como a imagem presumida,
quem sabe não atrasasse
tanta coisa nesta vida?
o importante é muito pouco,
pelo menos para ele,
este meu violão rouco,
que de cordas não canoras,
faz-se meu e eu ser dele
pelo infinito das horas. p. 48
SONETO DO OBJETIVO MAIOR
tudo está por fazer e já cansada
te encontras neste início de aventura.
tudo está por ser feito e sossegada
te fincas sobre gestos de impostura.
tudo está por cumprir nesta jornada
que agora nos propomos, e amargura
tu mostras antes mesmo a caminhada
que nos há de levar a essa futura
vida que nos aguarda em seus segredos.
por que deténs-me então por entre os dedos
que, antes, teceram tudo o que hoje somos?
não podemos ficar. partir é tudo.
e o que temos de bom sobre o chão nudo.
vamos, seremos mais do que já fomos. p. 50
SONETO DO AZUL IRREAL
o irreal azul engole o mundo, enquanto
da árvore magra polipartem galhos
e o vento os faz dançar. a leve dança
confunde-se à das aves, negras aves
que além das folhas verdes se entreveem
em voos circunféricos (ao bote
a postos?). Já um canto ocupa o quadro
e o vento, esse abstrato, como à chuva,
borrifa as notas pelo incerto azul.
e permanece o azul, incerto e calmo.
sob sua pele semelhante a um lago,
em cujo fundo um mundo se agitasse,
existe o nosso (o que foi e é, será?)
agora, vê-se o azul sangrando nuvens. p. 54
SONETO DO MURO AZUL
na tarde já passada ainda presente
está o vulto do amor inacabado.
uma lembrança de asa que pressente
um voo de garça atravessar, molhando,
o olhar horizontal do poeta ausente
ao momento em que estava ali fincado.
era de fato amor. irreverente,
foi o seu gesto triste e tão lembrado.
ambos se olharam. desse olhar cruzado,
ergueu-se o muro azul e transparente
que pelos dois jamais fora pensado.
a música é a culpada? e o olhar turvado?
na tarde já passada ainda presente
está o vulto do amor inacabado. p. 56
PENAFORT, Ernesto. Azul geral. 2ª edição.
Manaus: Editora Valer / Governo do Estado do Amazonas / Edua / UniNorte, 2005.
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Ernesto Penafort, poeta e contista, nasceu em
Manaus-AM, no dia 27 de março de 1936. Morreu na mesma cidade em 3 de junho de
1992. Publicou: Azul geral (1973), A medida do azul (1982), Os limites do azul
(1985) e Do verbo azul (1988).
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