terça-feira, 26 de setembro de 2023

AZUL GERAL: poemas de Ernesto Penafort



SONETO

 

enquanto a lua for calada e branca

eu serei sempre o mesmo, este esquisito,

este invisível vulto, apenas visto

quando o vento, de leve açoita as folhas.

enquanto a lua for calada e branca

eu serei sempre o mesmo, apenas visto

quando um raio de sol morre na lágrima

que se despede de uma folha verde.

eu serei sempre assim, apenas sombra,

apenas visto quando a voz de um gesto

colher no bosque alguma flor azul.

apenas visto quando em fundo azul

voar a garça (o meu adeus ao mundo?),

enquanto a lua for calada e branca. p. 33

 

 

DO POETA E SEUS ELEMENTOS

 

O poeta é um território

em permanente degredo.

o poeta, por incrível,

sente frio e sente medo.

o poeta é um promontório,

além da mão como um dedo.

(sendo a mão somente a palma

o dedo é um prolongamento

como é do corpo sua alma.)

o poeta é um território

limitado por si mesmo.

se às vezes, por ilusório,

parece que anda a esmo,

é exatamente o inverso:

o poeta é um promontório

procurando mais um verso

para urdir o seu poema,

(que absurda tessitura!)

instaurando no universo

a nação que anda a procura. p. 42

 

 

SONETO DO RELÓGIO DE PULSO

 

no pulso o relógio pousa

como ave descansando.

por sutil ele não ousa

dizer que está trabalhando.

se nos ares voejasse,

como a imagem presumida,

quem sabe não atrasasse

tanta coisa nesta vida?

o importante é muito pouco,

pelo menos para ele,

este meu violão rouco,

que de cordas não canoras,

faz-se meu e eu ser dele

pelo infinito das horas. p. 48

 

 

SONETO DO OBJETIVO MAIOR

 

tudo está por fazer e já cansada

te encontras neste início de aventura.

tudo está por ser feito e sossegada

te fincas sobre gestos de impostura.

tudo está por cumprir nesta jornada

que agora nos propomos, e amargura

tu mostras antes mesmo a caminhada

que nos há de levar a essa futura

vida que nos aguarda em seus segredos.

por que deténs-me então por entre os dedos

que, antes, teceram tudo o que hoje somos?

não podemos ficar. partir é tudo.

e o que temos de bom sobre o chão nudo.

vamos, seremos mais do que já fomos. p. 50

 

 

SONETO DO AZUL IRREAL

 

o irreal azul engole o mundo, enquanto

da árvore magra polipartem galhos

e o vento os faz dançar. a leve dança

confunde-se à das aves, negras aves

que além das folhas verdes se entreveem

em voos circunféricos (ao bote

a postos?). Já um canto ocupa o quadro

e o vento, esse abstrato, como à chuva,

borrifa as notas pelo incerto azul.

e permanece o azul, incerto e calmo.

sob sua pele semelhante a um lago,

em cujo fundo um mundo se agitasse,

existe o nosso (o que foi e é, será?)

agora, vê-se o azul sangrando nuvens. p. 54

 

 

SONETO DO MURO AZUL

 

na tarde já passada ainda presente

está o vulto do amor inacabado.

uma lembrança de asa que pressente

um voo de garça atravessar, molhando,

o olhar horizontal do poeta ausente

ao momento em que estava ali fincado.

era de fato amor. irreverente,

foi o seu gesto triste e tão lembrado.

ambos se olharam. desse olhar cruzado,

ergueu-se o muro azul e transparente

que pelos dois jamais fora pensado.

a música é a culpada? e o olhar turvado?

na tarde já passada ainda presente

está o vulto do amor inacabado. p. 56

 

 

PENAFORT, Ernesto. Azul geral. 2ª edição. Manaus: Editora Valer / Governo do Estado do Amazonas / Edua / UniNorte, 2005.

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Ernesto Penafort, poeta e contista, nasceu em Manaus-AM, no dia 27 de março de 1936. Morreu na mesma cidade em 3 de junho de 1992. Publicou: Azul geral (1973), A medida do azul (1982), Os limites do azul (1985) e Do verbo azul (1988).

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