João Veras, 12.10.23
“E o tal ditado, como é? Festa acabada, músicos a pé, músicos a pé,
músicos a pé, músicos a pé!” (Cantando no toró, de Chico Buarque)
QUANDO O SERGIO SOMOS NÓS - Na foto acima estamos em primeiro plano Chico Chagas, na sanfona;
Sergio Taboada, no violão; Césio Medeiros, na percussão, e eu na flauta só
pensando. Era um dos tantos shows que fazíamos na década de 80, quando a música
acreana urbana emergia como uma invenção social, estética e política de força
potente, expressiva e singular. Chico, exímio instrumentista, teve que sair do
Acre para poder viver de música. Sergio, que sempre viveu a música sem precisar
viver dela, faleceu precocemente ano passado em São Paulo onde morava. Césio
desistiu cedo, foi cuidar da vida. E eu aqui ainda insistindo em existir me
expressando com a escrita e outros instrumentos do meu pensamento musical.
Conheci Sergio nesse
período da foto. Os dois com seus vinte e poucos anos. Ali vivíamos um período
de intensa criação artística e luta política em Rio Branco. Era tudo junto. Foi
a partir daí que construímos parcerias artísticas, políticas e de afetos. Nossa
luta no campo da música, como tem sido a luta de cada compositor local, sempre
foi a de tocar/cantar, ser tocado, ser ouvido, portanto, de existir. Ninguém
deseja cantar para ouvidos moucos. Principalmente aquela geração filha de
festivais tão compromissada com questões e temas locais, cuja audição/atenção
desejada ia/vai muito além da função e objetivo estéticos musicais.
Venho já há algum
tempo observando, pensando e espalhando que - a depender das políticas de
educação e cultura, do mercado cultural e da sociedade que disso tudo se
alimenta - continuamos na lida a cantar e tocar para ouvidos moucos. É por isso
que não duramos como um valor próprio para essa estrutura de existência social
colonial/colonizada em que vivemos. Tem sido assim, mas não sem a nossa
resistência, que é a resistência da criação!
A LEI SERGIO TABOADA - E eis que uma notícia alvissareira veio ao mundo local na semana
passada. A da promulgação de uma lei estadual que se propõe a alterar essa
realidade. Coloquei a minha fiel pulga de estimação atrás da orelha e corri
para ver se é isso mesmo.
A Lei é a de nº
4.176, de 5 de outubro de 2023. Ela foi batizada de Lei Sergio Taboada. Projeto
de autoria do deputado Edvaldo Magalhães, a norma institui a Semana da Música
Acreana, a ser comemorada por ocasião da primeira semana do mês de agosto,
cabendo à Fundação Estadual de Cultura, em parceria com a Associação dos
Músicos do Acre, promover, durante os sete primeiros dias de agosto, atividades
culturais como shows, saraus e workshops.
Pelo seu conteúdo, a
lei intenta fortalecer a música autoral acreana no Estado. De forma pragmática,
diz como isso pode se dar: pela obrigação de que a apresentação dos trabalhos
dos artistas participantes nos eventos da semana deverá ter no mínimo 80% de
autoria própria. A pulga atrás da orelha não se segurou e gritou no meu ouvido:
Vão adotar sempre o mínimo! Esse povo não vive sem querer ser o outro! Por que
não logo os 100%? É só uma semaninha anual... Tá escrito que os outros vão
levar os 20%. Eu só pedi calma, por enquanto.
DE BOAS INTENÇÕES... - A homenagem ao Sergio é justa e merecida. Ele de fato simboliza o(a)
compositor(a) acreano(a) urbano(a) padrão, aquele(a) célebre desconhecido(a)
que não circula em lugar nenhum no território acreano, tampouco fora dele.
Taboada, apesar de ignorado, não reconhecido, nunca deixou de resistir como
criador. Fato que o fez deixar um legado artístico, cujo registro se deve
tão-somente à sua iniciativa, às suas próprias custas, prazer e dor. Eu poderia
citar mais nomes que estiveram e estão na mesma condição. Mas Sergio, nisso a
lei acerta, os representa muito bem no sentido que estou aqui a tratar.
A ideia da lei
parece ser bem intencionada e necessária por razões óbvias. Já falei. É que a
música acreana tem sido tratada como um fenômeno cultural que quase ninguém
sabe que existe, justamente no lugar de sua criação. Não toca no rádio, na
televisão, nas casas de shows, bares, teatros, nos supermercados, nas redes
sociais... Não frequenta as escolas, não é referência, não tem passado,
presente, futuro. Já reclamei, tentando salvá-la pelo menos do futuro, um Museu
da Imagem e Som. De nada valeu aos ouvidos moucos das sucessivas gestões
culturais desse eterno presente.
A música acreana
passou a ser uma daquelas expressões cada vez mais raras, para poucos. Quase
feita para não permanecer. E assim vai sumindo. Noutros tempos tinha ao menos
um festival anual, o FAMP- Festival Acreano de Música Popular, que levava o seu
nome e lhe dava status de uma certa existência. Hoje nem isso. Minto. Agora
teremos uma semana anual com direito a se chamar de sua. Mas só em 80%, grita a
pulga lá atrás!
AS VELHAS ARMADILHAS - Diante deste quadro histórico, não se pode afirmar que esta lei não
pareça ter importância e não seja oportuna. Já disse. É. O problema é que porta
um importante problema. É que ela não só cai na armadilha do evento como a
justifica e a reforça. Nesse quadro, vira instrumento a serviço do encobrimento
e desvio de uma questão de fundo determinante. É sobre isto que quero tocar por
aqui na sequência.
Falo de evento no
sentido de algo episódico, passageiro. Uma brisa que passa. O contrário das
ideias de estrutura, sistemático, permanente. Porque, nesse sentido, o que essa
Lei diz é que antes e depois da Semana da Música Acreana tudo se manterá como
sempre se manteve nesse campo. O legislador sem ter consciência disso (ou
tendo) pode estar querendo dizer e diz que nos outros 358 dias do ano continua
liberado que se continue ignorando a expressão musical local.
O QUE SERIA UMA POLITICA DE CULTURA NÃO EVENTUAL - Penso que uma lei que busque de fato fortalecer a música acreana, ao invés de obrigar a Fundação de Cultura a realizar evento de uma semana, deveria impor ao órgão de cultura que cumpra a sua obrigação constitucional e legal, que faça o que nunca fez que é adotar políticas programáticas permanentes de fomento, de valorização, de difusão, de registro e de guarda da cultura musical acreana e do seu produtor.
Que sejam políticas
programáticas que não se reduzam aos editais e realização de eventos tão-só,
mas que enfrentem a raiz da questão. Para tanto, que envolvam as redes de
ensino estadual e municipais, a Escola de Música do Acre e o curso de Música da
UFAC, todos núcleos fundamentais para a formação, a pesquisa, a difusão, o
registro e guarda, portanto, para a valorização da música local. Instituições
estas, algumas das quais que atuam como centros de culto e difusão da técnica
(especialmente da reprodução), que passem a atuar também como centros de
difusão, valorização, proteção e criação, jamais desconsiderando este território
geocultural Acre.
Nesse mesmo sentido,
a lei deveria envolver o sistema de comunicação do Estado como núcleos
fundamentais de divulgação das expressões culturais locais em todo o território
acreano.
Envolvimentos esses
que possibilitem que as escolas adotem em seus currículos disciplinas e
programas sobre a música acreana, suas estéticas, seus compositores e suas
histórias. E que possibilitem que as redes de comunicação estatais e privadas
adotem cotas de difusão diária da música acreana.
Estou apontando onde
se encontram, no território geocultural do Acre, os eixos centrais da formação,
manutenção e valorização do gosto estético musical. O gosto que ignora o que
fazemos é o mesmo gosto que consome e endeusa o que os outros fazem. São os
dois lados da mesma moeda colonial.
Sabemos que as
demais áreas artísticas passam pela mesmíssima situação. A diferença a partir
de agora é que só a música tem a sua semana. A pulga exclama: E daí??
Não se trata de
obrigar a gostar do que fazemos, tampouco não gostar dos que os outros fazem.
Nem de longe é isso. Trata-se de alterar essa política que nos impede de
existir. É uma questão de escolha política. De política pública de cultura, de
política pública de educação, de política pública de comunicação. Uma semana
resolve? Óbvio que não!
Por uma política
cultural nos moldes aqui propostos, não tem como não alterar o status em que se
encontra a expressão musical local.
Não estou a tratar
de uma política de cultura que faças vistas grossas à força do mercado
cultural, com seus produtos de massa produzidos no sudeste do país a ocupar os
ouvidos locais como a referência da qualidade não só mercadológica, mas também
estética-musical. Estou falando – não de evento – mas de uma ação que busque
frear a sanha colonizadora pela qual institui a falsa crença de que o que é bom
é sempre obra do mercado e do que as mídias e academias eurocêntricas e
brasilcêntricas dizem ser, lugares em que a música acreana tem sido
sistematicamente barrada e aos quais ela deva se pautar, se reduzir, se dobrar
como cópia do padrão, digo de novo, sob pena de não existir.
PRECISAMOS ENXERGAR OS SIMULACROS NOS SILÊNCIOS DAS NOTAS - Que efetiva eficácia social
terá uma lei se não significar fazer do seu sujeito/objeto uma realidade no
mundo social e cultural para a qual foi criada? Para que serve uma homenagem
(pela homenagem) se não – este é o caso em questão - significar tirar o
homenageado, sua obra e sua história, da condição nada gloriosa de ignorado
justamente dentro do próprio território cultural de criação? Que valorização é
essa, a da letra da Lei, senão um evento chamado simulacro!
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