Benedicto Monteiro (1924-2008), numa
intertextualidade com fragmentos dos romances de Dalcídio Jurandir (1909-1979),
compõe o seu “O Cancioneiro do Dalcídio”. Um livro cheio de delicadezas e
encantos.
Tenta recordar noites, serões, em que a mãe,
com ele no colo, costurava à luz da lamparina. Não via senão a mãe, à janela,
com o farol sobre a enchente, a apanhar da água com a zagaia a toalha da mesa. Ou
naquela noite em que Merência paria no curral, ao pé do atoleiro e quando a Felicia,
no chalé sabrecada, levantou o rosto, ou a aflição do mundo?
Dalcídio Jurandir,
Primeira Manhã, p. 131
RECORDAÇÃO
Ao recordar noites
vê a mãe
com ele no colo
costurando
à luz da lamparina.
Vê só a mãe à janela
com o farol sobre a enchente
a apanhar da água
com a zagaia
a toalha caída.
Enquanto no curral
pare uma vaca
ao pé do atoleiro
Felícia
a meretriz
levanta o rosto
com toda a aflição do mundo. p. 37
Andou pela beirada do rio, saltando nos barcos
podres, trapiches velhos, espiou o estaleiro do mestre Afonso. Arqueado no
mangue, o navio morto varava a noite com um chaminé de aflição e ferrugem.
[...]
Lá no fundo, a lamparina clareia-não-clareia o joguinho
de cartas, gente ou meios fantasmas? e as coisas, tão nenhumas, ao som de um
pássaro-preto na gaiola debatendo-se.
Dalcídio Jurandir,
Primeira Manhã, p. 135/136
CEMITÉRIO DE NAVIOS
Arqueando no mangue
encharcado de lama
o navio morto
varava a noite
com uma chaminé de aflição
e ferrugem.
Vomitava escuridão.
E inchava tudo
de silêncio.
havia gentes
ou meios fantasmas?
As coisas
tão nenhumas
ao som de um pássaro-preto
na gaiola
de – ba – ten – do – se p. 39
A montaria avançava sobre a lua agora solta e
alva como uma garça.
Dalcídio Jurandir, Três
Casas e Um Rio, p. 36
NOTURNO DO RIO Nº 1
A montaria avançava
sobre a lua
agora solta e alva
como uma garça
A linha dágua
era um horizonte reflexo
tanto a lua navegasse
como a montaria voasse
a garça iluminava
o voo da noite
na curva do rio. p. 65
A água se arrepiava de sardinhas e matupiris
que catavam o farelo do pão e dos beijus de tapioca.
Dalcídio Jurandir, Três
Casas e Um Rio, p. 43
A ÁGUA E O MENINO
A água se arrepiava
de sardinhas
matupiris e maparás
quando se jogava farelo de pão
e beijús de tapioca.
Se arrepiava
por alguns instantes
um peixe talvez
um sopro de vento
um vago reflexo
ou tremeluzir das estrelas
no espelho tranquilo
ao pé do menino. p. 67
Que delícia ver a terra desalagada, se enxugando.
Dalcídio Jurandir, Três
Casas e Um Rio, p. 78
VÁRZEA
Que delícia
ver a terra desalagada
se enxugando.
Colhe-se barro
como se fossem flores
a terra brota também
do seio das águas
como se fossem plantas
desabrochando
em gretas e raízes. p. 73
Num luar, surpreendeu o rosto do chalé com os
seus quatro olhos fechados sem aquele ar um tanto carrancudo. Estava adormecido,
porém satisfeito com os seus habitantes. De ordinário, era aquela cara cheia de
reflexões, as quatro janelas olhavam o rio com visível desdém. Havia, com
efeito, uma espécie de conflito entre o rio e o chalé.
[..]
A água descia vagarosamente sobre a lama,
arrastando resíduos misteriosos, uma pena de pássaro, uma asa, pequenos
náufragos como formigas, sapinhos, mosquitos acompanhando o curso, folhas,
reflexos e vozes de outros países diluídas naquele murmúrio leve, por vezes
indistinto.
Dalcídio Jurandir, Três
Casas e Um Rio, p. 149/150
NOTURNO DO RIO Nº 2
Numa noite de lua
surpreendeu o rosto do chalé
com seus quatro olhos
fechados.
É que havia
uma espécie de conflito
entre ele e o rio.
Mas mesmo assim
a água descia vagarosamente
sobre a lama
arrastando resíduos misteriosos
uma pena de pássaro
às vezes até uma asa
pequenos náufragos
como espinhos
mosquitos e formigas
e reflexos e vozes
de outros países
diluídas em murmúrios
que corriam e escorriam. p. 79
No faz de conta de Alfredo, eram ondas, vagalhões
do mar nunca visto. Ali estavam muitos mares e muitas matas submersas.
Transatlânticos e boiunas circulavam nas profundidades e correntezas daquela
água rasa, quieta e transparente. Quando banhava o rosto suado, sentia o sal do
mar que nunca provara. [...] Uma e outra vez passava, lá pelo fundo ou rente do
degrau, um jeju lento. E aí então voltava a água às suas proporções reais. [...]
Ali estava um habitante típico da inundação, vejam o olhar, o rabo, como volteia
amorosamente entre os morurés, como espia para cima e boia e desce e vem,
circula e some, sutilmente, sem um borbulho, no seu silêncio de peixe, com um
tênue movimento da água menos que um estremecimento. Alfredo ficava, depois,
mirando-se naquele espelho, sentia-se um outro naquela sombra sua movendo-se, a
dissolver-se na extensão e intimidades da enchente.
Dalcídio Jurandir, Três
Casas e Um Rio, p. 27
CAROÇO DE TUCUMÃ Nº 2
No-faz-de-conta
do mar nunca visto
estavam muitos mares
e muitas matas submersas.
Na correnteza
daquela água rasa
quieta e transparente
transatlânticos e boiunas
circulavam
Mas um jeju
lento e arisco
dava à água a proporção de água
e o seu silêncio
o silêncio de peixe
trazia à tona
a intimidade da enchente. p. 81
Mas ao guardar a medalha entre as roupas
deixadas pela irmã na mala grande, estremeceu: deveria ter dito a Mariinha que
o que enterrara, naquela tarde, era uma borboleta e tinha sido malvado, traindo
ao mesmo tempo um juramento. Dissera-lhe que plantava uma semente. Que semente?
perguntara-lhe Mariinha. Ele respondeu: Mistério.
Estaria ela sabendo agora o mistério?
Dalcídio Jurandir, Três
Casas e Um Rio, p. 215
O ENTERRO DA BORBOLETA
Era uma louca ideia
enterrar no chão a borboleta
as cores
as asas
e todo o movimento.
Cavou o buraco
jogou dentro o inseto
mas na hora de responder
à sua mãe
disse que tinha enterrado
no chão
uma semente.
Que semente ?
Não, mamãe
não foi uma semente
foi um mistério. p. 87
MONTEIRO, Benedicto. O Cancioneiro do Dalcídio.
Belém: Falangola; Rio de Janeiro: PLG Comunicação, 1985.
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