segunda-feira, 16 de setembro de 2024

REENCONTRO

Violeta Branca (1915-2000)

 

Na curva da lua nova perdi os meus sapatos.

Percorri tantos caminhos...

Nas cordilheiras geladas procurei a rosa branca

– todo sonho é uma rosa nascida entre os espinhos –

fiz as milhas submersas que o mar me convidou

segui o rumo das águias em busca de liberdade

no chão áspero criei raízes de amor profundo

de manso teci a renda feita de sol e neblina

fui estrela refletida no limo dos igapós.

Bebi o vinho das noites

afundei nas madrugadas

fui água de cachoeira

vento malsão nas marés

cavalguei nuvens escuras

abri as portas à chuva

conheci homens e feras unidos na mesma essência

cantei canções às abelhas

dei meu rosto ao sereno

meu gesto dei ao perdão

meu pranto regou os campos

os peixes me namoraram

fui concha no fundo d'água.

Criei um deus sem complexos

fiz milagres de ternura

ganhei troféus e palavras

contornei ilhas e portos

equilibrei-me em abismos

deslizei em sonhos mortos

renunciei à beleza

pintei a clara alegria

fui amante do pecado

noviça pura e fremente

rasguei silêncios e veias

preguei no deserto imenso

desembainhei a espada e degolei a ignorância

ofereci aos humildes a verdade do que penso.

Agora quero outra vez recompor a minha forma

recolher os meus pedaços

novamente ser mulher

– sou figura geométrica em busca de solução –

mas onde encontrar minha presença

minha fala, meu suor,

a ideia apregoada de todo o amor maior

na curva da lua nova ou na amarga solidão?


BRANCA, Violenta. Reencontro. In Revista da Academia Amazonense de Letras. Manaus: AAL, n.13, ano XLVIII, dezembro de 1968. p. 166-167

sábado, 14 de setembro de 2024

QUATRO SONETOS DE ROMEU JOBIM

Árvore Morta

 

Já não balanças, ao sabor do vento,

enchendo-nos de efêmera alegria,

nem és a confidente do tormento

humano, ou da ventura fugidia.

 

Já não te expandes para o firmamento

nem ouço, à tua fronde, a melodia

de alígero cantor que busca alento;

o lavrador em ti não vê magia...

 

Jaz, na campina, teu corpo estirado,

qual enorme gigante que deitasse,

após renhida luta, fatigado.

 

Mas berço, esquife, casa ou lenha pura

(em teu lugar já outra árvore nasce),

embora morta, o teu valor perdura. p. 14

 

Manaus, 11.5.1942.

 

֎

 

Paisagem rústica

 

Como a vida é risonha, assim distante

da bulha interminável das cidades!

Aqui frondeja um cumaru gigante,

que se ergue, altivo, em meio às tempestades;

 

ali se espanta uma inhambu, errante,

a fugir das insídias e maldades;

além suspira a juriti, arfante,

como a embalar as dores e as saudades.

 

E quando o sol descamba, ao fim do dia,

a alma da gente, leve, se inebria,

num clima bom de encantamento e festa.

 

Desce a noite. No espaço o luar flutua

e, no alto, branca, muito branca, a lua

semelha um coração sobre a floresta. p. 17

 

Abunã, 1.1943.

 

֎

 

A Vazante

 

Arrogante, soberbo, cheio, o rio,

transpondo as altas margens, imponente,

qual serpe de satânico assobio,

cobria as terras, ao fragor da enchente.

 

Com a vazante, porém, humilde, esguio,

vencido leão, sem garras, impotente,

chegado o tempo abrasador do estio,

deslizando ele vai, calmo e silente.

 

Também, no coração, as águas crescem

dos rios da Ilusão e da Esperança,

e tudo é sonho, força, alacridade.

 

Em seguida, no entanto, elas decrescem

e o coração, secando, é só lembrança

da enchente que passou, – a mocidade. p. 19

 

Rio Branco, Acre, 1943.

 

֎

 

Cromo

 

A tarde morre. No poente,

todo em chama, o sol se esvai.

E as árvores, brandamente,

Sussurram um lânguido ai.

 

Hora de sonho, esta! A gente

em pensamentos se abstrai.

Sopra brisa. De repente,

o crepe da noite cai.

 

A natureza esmaece

e, fatigada, adormece,

envolta no espesso véu.

 

Surgem as estrelas, bando

de criancinhas circundando

pelo terreiro do céu. p.27

 

Rio Branco, Acre, 1945.

 

JOBIM, Romeu. Cantos do caminho. Brasília: Trianas, 2003.