domingo, 22 de setembro de 2024

O TRÁFICO DE MULHER [NOS SERINGAIS DO ACRE]

Araújo Lima (1884-1945)

 

A prolação das massas colonizadoras consumou-se, no Amazonas, à revelia dos preceitos da higiene e da ciência econômica, sem os aprestos que a previdência dos povos cultos dispõe nos domínios destinados a abrigar populações imigradas, civilizadas ou por civilizar.

Há, porém, alguma coisa ainda a registrar. Ao colono ignorante e desaparelhado, com as mais negativas qualidades de adaptação, faltou até mesmo a assistência moral, afetiva e fisiológica da mulher.

A etapa a vencer na transmigração penosa, dos arenais calcinados do Nordeste para os semipousos lacustres da famosa Hiléia do Norte, foi sempre dura, áspera, dispendiosa.

Debitada, como parcela agravante da conta do freguês, a soma das despesas de viagem desde os sertões nordestinos aos recôncavos amazônicos, aportava a seu destino o futuro extrator já comprometido por uma dívida correspondente ao seu valor econômico, pela qual respondia a sua liberdade.

O homem chegava hipotecado, comprometido; impraticável, portanto, quase sempre o transporte de uma companheira, que tornaria exorbitante o valor estimativo do colono – o seu preço.

Esboçava-se, assim, uma sociedade singularíssima, tendo como decalque o agrupamento masculino ao invés da família; e, com o fenômeno, definia-se um paradoxo demográfico, de que nos dá testemunho esta estatística anômala, traduzida numa desproporção censitária: mais homens do que mulheres.

Operou-se, conseguintemente, com a expressão dessa fórmula de censo aberrante, uma contingência antinatural, gerada pela unilateralidade decorrente para a função genésica, mutiladora da espécie e comprometedora da normalidade orgânica do indivíduo.

Porque foi essa uma sociedade que se formou contrariando as leis naturais, ao sabor da sorte – da má sorte, aliás, – através de regiões enigmáticas, inexploradas, trancadas ao homem, quanto mais à mulher!

De Honoré de Balzac a Paul Bourget, o realismo, na literatura francesa vem demonstrando que a família é a verdadeira célula social. E Henri Bordeaux, num livro que é um excelso ensinamento evangélico da mais santa das indulgências – a de perdoar e de esquecer; Bordeaux, que é um dos grandes, profundos investigadores da psicologia social contemporânea, transmite-nos esta lição magistral, por ele aprendida de um mísero sofredor, lá pelas ondulações escarpadas das montanhas da Savóia: Não há uma “casa”, não há um “lar” verdadeiro, onde não arde uma chama, onde não se acende um fogão, onde não assiste o gênio tutelar da mulher.

Só lentamente passou ela a influir naquele mundo novo, aberto penosamente a uma colonização tumultuária e anárquica, angariada à custa de meios-valores econômicos – homens sem saúde, sem cultura, sem recursos.

Por muito tempo o homem lutou quase só nos altos sertões amazônicos.

A moral é a mais relativa das leis sociais: varia geograficamente, através do tempo, por pressão mesológica, por contágio de costumes, por determinação histórica, por atuação do momento.

Os preconceitos são infiltrações hereditárias, preceituadas pelo convencionalismo da ética, artificial ou legal, aceita ou decretada pelas sociedades.

Há, entretanto, na formação e evolução dos núcleos sociais, alguma coisa mais fatal que o despotismo atávico e mais incoercível que o voluntarismo governante – é a tirania das contingências. E ali, naquelas paragens quase misteriosas do Acre lendário, por volta de menos de meio século, o absolutismo do instinto se havia de chocar de encontro à muralha das premências ambientes, para desse entrechoque surgir um novo costume, uma prática nova, e, com ela, uma nova moral.

Transplantado para este solo cheio de antagonismos, sofre o homem, refletindo o contraste do meio cósmico no seu próprio senso psicológico, a subversão, a mutação de um sentimento inato, congênito, secular. Lutando com a falta da mulher, aceita-a como objeto de transação comercial, concorrendo para a implantação desse tráfico, senão generalizado ao menos adotado naqueles tempos remotos, cuja memória se vai já apagando sem que ao menos registrada fique a sua história.

A carência da mulher, dentro do seio de um organismo social que teve por gênese uma calamidade, ainda sem a prostituição a ulcerar-lhe a intimidade dos tecidos, criou, – na época de ebulição da vida acreana, na idade trepidante do contagioso delírio de grandezas no far-west amazônico, – um novo gênero de comércio, de “camelotage”, de “ciganagem” (esta a expressão perfeitamente ajustada à gíria local), que consistia no tráfico de mulheres decaídas, transformadas em objeto de negócio de certos agenciadores ou regatões. Praticavam tal comércio menos por falta de escrúpulo do que pelo desejo de bem servir a freguesia do alto; consignavam as “vênus” mercenárias, mediante fatura especificada em gastos e comissões, ao pessoal mais abonado dos seringais, contra resgate em borracha ou carta de ordem.

A resultante daquela aberração censitária, em função do amálgama de uma sociedade de originalidades chocantes, forneceu à crônica daqueles tempos incipientes, já hoje lendários, episódios impressionantes, com a tônica alternativamente dramática ou cômica, dos quais trasladamos dois específicos, desdobrados naqueles cenários selvagens, há por aí cerca de quatro decênios.

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A. B., guarda-livros de importante seringal do Alto Acre, exercendo aí a atividade de “faz-tudo”, exercício que lhe era facultado por uma cuidada educação de família ilustre, de cujo seio no Rio de Janeiro se desprendera ao impulso quase alucinado de uma aventura amorosa; mentalidade instável de estroina e sentimental, boêmio e misantropo, aventureiro e tímido, A. B. regressava ao “barracão”, do qual se ausentara por oito dias, em incursão pelo seringal adentro, até o “centro” distante ermo, através de varadouros inóspitos e igapós sombrios, em busca de uma borracha arrancada a fregueses mais negligentes, quando ao chegar foi acolhido com uma expressão dúbia, entre maliciosa e alvissareira, do “gerente”, que lhe anunciava, além da nova da passagem do “gaiola” X, ansiosamente esperada desde longos dias, o recebimento de um pacote de jornais, um volume de correspondência e... – enfeitando a narração das novidades com um ar comicamente misterioso – a “encomenda” que fizera ao comandante E. G. A cena fora movimentada pela concorrência de todos os habituês da loja do barracão: os demais empregados; os fregueses atraídos do centro pelo acontecimento da chegada de um navio, que há cerca de seis meses ali não aportava; alguns convalescentes, que em procura de pílulas ou cafés-panacéias se haviam ali homiziado, acossados pelas tremedeiras de sezões inveteradas; finalmente os “brabos” aparvalhados que haviam desembarcado recentemente do “gaiola”, pasmados numa alvar e meio atordoada curiosidade.

A. B., num instantâneo fenômeno de desagregação da personalidade, sente-se desfeito, sacudido por estremecimento estranho, tolhido por uma inibição brusca na audácia aventureira, caso inédito em sua acidentada história passional. O seu arquivo de conquistas mais ou menos fáceis recolhera, através de uma vida boémia e aventurosa no sul, lances mais ou menos emotivos, mais ou menos ousados; mas aquele aviso imprevisto despertou-lhe uma sensação nova, estranha, inexplicável, em que trepidava a sua emotividade, numa crispação histérica, paroxística, intimamente convulsiva, para se lhe derramar a alma logo após, como aniquilada, num delíquio sincopal.

Guiado por um gesto expressivo do “gerente”, que picarescamente lhe indicava a “encomenda”, depositada no quarto, para este se encaminhou sonambulicamente; mas, caminha e recua, quer e não quer, pretende ver de surpresa sem ser visto, surpreendê-la na atitude espontânea e natural... Banhado num estado emocional que não conhecia, agitado por uma ânsia que não sabia interpretar – uma espécie de desejo contraditório de ir e não ir, uma dúvida entre angustiosa e terna, consoladora e amedrontada, – segue, caminha vacilante, amortece as pisadas, retoma os passos, e assim, imperceptível, aproxima-se do local buscado. A emoção lhe hipertrofiara toda a vibração cardíaca e respiratória. Tremia e arfava. Mas não quer alcançá-la de chofre; queria vê-la sem ser visto. Foi-lhe fácil o intento, furando com o olhar voraz a fresta da “paxiúba” mal aparelhada; e abre-se-lhe então à pupila estreitada uma visão surpreendente que lhe compraz o espírito, enternecendo-o suavemente, com uma sedação instantânea. Era uma rapariga vistosa, de feições proporcionadas, morena clara, compungida na sua dor, numa atitude contrafeita, com uma expressão que dizia estar trabalhada por um pesar, que não conseguira lenir, e que se objetivava nas pálpebras entumescidas e conjuntivas avermelhadas, das quais corriam, de quando em quando, compassadas, si- lentes lágrimas. Embalava-se dolentemente numa rede e voltava os olhos, implorando, para uma oleografia suspensa à parede, com a imagem da Senhora do Perpétuo Socorro. Tudo nela refletia mágoa serena e digna.

A. B. perde a noção do tempo naquela contemplação. Dentro no seu ser, nos arcanos inacessíveis até aquele momento às reflexões do altruísmo, opera-se uma demonstração raciocinada: ali estava a mulher que seria sua por algumas “peles de borracha” e que, fascinada pelas mentirosas seduções daquele “inferno dourado” que a ele enganara tão torpemente, vinha arrebatada pela mesma ilusão enganadora, por essa miragem fatídica, e deixava talvez – e deixou certamente – uma afeição real, espontânea, gratuita. Estavam, em verdade, atingidos os dois pelo mesmo golpe do destino; eram dois mistificados por essa traidora tentação de um éden malogrado... Recua voluntariamente e reentra na “loja”, onde os circunstantes o recebem com estrepitosa ovação. Correspondeu de um modo vago, incompreensível de todos, que o julgavam tolhido de satisfação. E dentre os abraços a que ele automaticamente correspondia, um foi mais demorado, prolongou-se por mais tempo, enquanto o manifestante, um “freguês” abonado e com “saldo”, assim transmitia o seu entusiasmo: – É tão bonita que, se não a quisesse, com ela eu me casaria hoje mesmo. Desvencilhado do último abraço, A. B. chamou de parte o pretendente e interpelou-o: – Queres a moça para casar? Toma-a; é tua. É só pagares a fatura ao gerente.

E naquele mesmo dia, com as formalidades sumárias, perante o juiz distrital, realizou-se o casamento.

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Jazia sobre três tábuas, improvisadas em leito de morte, o corpo deformado de F. S., que um tronco de árvore gigantesca, ao ser por ele derrubada, às primeiras horas do dia, abatera inanimado e sem vida.

A triste nova correra, com a velocidade das “montarias” céleres, até onde as águas escassas daquela vazante extrema permitiam. E, depois de algumas horas, começaram a afluir os moradores das barracas daqueles arredores, após duas, três e até quatro horas de viagem. Já ao anoitecer chegava um dos mais retardatários, por de mais longe se ter movido. Cumprimenta os presentes, contempla o cadáver com desalento, e, aproximando-se da viúva, que chorosa velava à cabeceira do cadáver, aventurou: – Dona Isabel, a senhora quer se casar comigo? Ao que ela opôs, prontamente, a voz entrecortada por soluços: – Não posso, porque já estou comprometida com seu Serapião.

 

LIMA, Araújo. Amazônia, a terra e o homem. 4.ed. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília: INL, 1975. p. 147-151 (Coleção Brasiliana volume 104)

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