quinta-feira, 29 de maio de 2025

TRÊS POEMAS DE LUCIANE MORAIS

 

Quando criança

 

descia o barranco

e subia

com um vaso de água na cabeça

 

Quando criança

ia brincar no terreiro

de pega-pega

e brincadeira de roda

 

Quando criança

se balançava

no galho de árvore

cantando música sertaneja

 

Quando criança

ajudava os pais

a apanhar arroz

no roçado

 

Quando criança

ia para a casa de farinha

descascar macaxeira

 

Quando criança

ganhava o campo

à procura

de ovos de galinha

 

Quando criança

tomava banho no igarapé

Comia maracujá brabo

do mato

 

Quando criança

passava horas

olhando o gado

ruminando capim

 

Quando criança

brincava na praia

enquanto o pai

jogava a tarrafa

para pegar Bodó

 

Quando criança

tomava banho de chuva

enquanto colocava o bezerro

no curral

 

Quando criança

vi um galo-de-campina

sob os galhos

do pé de Tangerina

 

Quando criança

comeu Mudubim

que os indígenas

ofereciam

quando iam subindo o rio

 

quando criança

era feliz

e hoje mais ainda

de lembrar

o passado

de quando era

ainda uma criança p. 44-47

 

֍

 

Vivência nos campos do Seringal

 

Na janela

da cozinha

ela quase tocava

com suas mãos pequeninas

as folhas da laranjeira

Pela brecha do Jirau

observava o gado colhendo capim

Sob o trapiche

a galinha caipira

em panela de alumínio

Águas vermelho colorau

no fogareiro

Descia o barranco

até a Cacimba

Uma vertente

águas borbulhavam

entre areias

Subia o trapiche

com balde de água

para tratar os peixes

O pai trazia do lago

"Mandi, Mocinha, Surubim"

Ela nunca imaginará

deixar

aquela

vida no campo

do Seringal p. 80-81

 

֍

 

O rio

 

se fez

se fez

como cobra

o rio

adentrou

a mata escura

e se fez

O rio

transportou

sonhos de liberdade

O rio

cuspiu a cidade

e se desfez p. 92

 

MORAIS, Luciane. Dos galhos de uma Árvore Teci Versos Acreanos. Maringá: Viseu, 2025.

domingo, 11 de maio de 2025

RETRATO DE MÃE


Jorge Tufic (1930-2018)

 

I

 

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios

 

II

 

Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.

 

III

 

Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?

 

IV

 

Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.

 

V

 

Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados – tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?

 

VI

 

Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos frequente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.

 

VII

 

Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.

 

VIII

 

Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?

 

IX

 

Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.

 

X

 

Que restara de ti, dos teus pertences?
Um vestido de linho desbotado,
um sapato comum, chinelo torto,
e nada mais, ó nuvem, se restara.
Tudo posto num saco humilde e roto.
Eu quis, então, medir esse legado,
mas limites não vi para a tristeza.
Davas a sensação de que o tesouro
se enterrara contigo. E era tão leve
quanto um sopro lilás, cantiga doce,
mansidão perdulária, água de fonte.
Como dizer-te verdadeiramente
numa sílaba só? Que eternidade
pode igualar-se à voz desta saudade?

 

XI

 

Extravaso em rugidos carcerários
minha raiva de ser todo impotente,
barro de horas fantásticas, mas barro
solancado de escamas, quilhas, peito,
maremoto pulsar, refugo e tábua,
sobras, talvez, calungas e malárias
de um canto mais diuturno, menos frágil,
mais perene ou barroco, mais você
na inventação das ilhas, regelado
marujo, testemunha das nascentes,
dos dilúvios, da Cóchida e Gomorra;
em ti, Jorge de Lima, eu busco a vaca
resoluta dos pântanos enormes,
e louvo a minha mãe, enquanto dormes.

 

XII

 

Ampulheta de ignotas ressonâncias,
me contas do teu mar, do teu navio;
mar e portos lavados pelo brilho
dos teus olhos cativos ao marulho
de outros mares guardados bem no fundo
das arcas de teu pai: este luarense
das tascas litorâneas e do vinho.
Que são lucandas, mãe? Que são topázios?
E a Tour d’ Eifel, que nuvens ela toca
ao se erguer entre os pássaros do orgulho?
E, te ouvindo contar destas viagens,
teu filho adormecia, tatuado,
ora pelo rigor de tua costura,
ora pelos encantos da aventura.

 

XIII

 

Volta comigo o trágico cenário,
e algo de inumerável me angustia.
Um cântico, talvez, de olhos miúdos,
cardume de fantasmas, trastes velhos.
Soma de nossos dias, ponte amarga
entre os bichos e a terra; pedras soltas,
navegantes do caos: roupas no tanque
onde o limo se avilta e se devora.
E o teu sangue, mãezinha? Que algazarra
no espaço vesperal de um plenilúnio
feito de nossas urzes cotidianas!
Deve ser esta a voz que me chamava,
o rosto que me quer. E a luz que fica
neste pátio me açoita e crucifica.

 

XIV

 

Nem maior nem menor do que ninguém,
me banho deste sol, bebo esta água
e sorvo a taça azul dessa manhã
num canto de quintal feito por ti.
Entre gato e cachorro as folhas verdes
de um jovem pé de frutas: me debruço
lendo as coisas e os seres pequeninos,
umas de tempo findo, outros em luta.
Em luta por um talo ou por um nada,
e na luta maior e mais profunda
dos monturos calados chão adentro.
Vou pedindo licença e vou entrando
nos buracos, nas fendas, neste cheiro
que um dia será rosa em meu canteiro

 

XV

 

Foi lendo-te, Chalita, que no breve
mapa do nosso Líbano deparo
a infância de minha mãe: ouro e neve,
o monte, a vida, o sol e o clima raro.
Chat-il-baher, Batrun. Que tinta escreve
o som, a voz, a luz e este disparo
de asas que me escravizam? Tanto deve
ter sido ela feliz e o tempo claro.
Mas o fado, Chalita, esse outro mapa
que em suas mãos eu lia, é tão diverso
daquele em que se nasce e nos escapa.
Brisa mediterrânea, fêmea austera,
seu martírio, depois, lento e perverso,
ainda assim nos trazia a primavera.

 

TUFIC, Jorge in: SAMUEL, Rogel. Fios de luz, aromas vivos: leitura de "Retrato de Mãe" de Jorge Tufic. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2012. p. 7-14

segunda-feira, 5 de maio de 2025

O RIO COMANDA A VIDA

 

Leandro Tocantins

 

... e o meio põe no homem a sua marca

ALEXIS CARREL,

O homem, esse desconhecido

 

NÃO HÁ NO MUNDO uma região onde melhor se ajuste a imagem dos "caminhos em marcha e que levam aonde queremos ir", do que a Amazónia. As suas baías, os seus golfos, rios, paranás, lagos, furos e igarapés, consagram esta frase de Pascal, sob o aspecto da geografia dinâmica e o das manifestações de vida do homem, cujo destino está entregue aos caminhos que andam.

Na planície, filha das águas, corre pelas águas, como o sangue nas veias, o impulso da civilização, o protoplasma sedimentário que vitaliza o solo, a força geradora que tece com mil aluviões a terra alteada dia a dia do nível baixo dos igapós, das várzeas, em firmes e colinas, que volve ilhas em penínsulas, que também traga, na sua função de desagregar aqui para construir acolá, a terra frouxa solapada pela corrente.

Os cursos fluviais que retalham o vale, à semelhança de filamentos numa folha descomunal, guardam, em seu dorso, além do líquido brotado nos frígidos picos andinos, fluindo das fontes nas serranias, descendo das estâncias do planalto, o caráter eminentemente social do sistema hidrográfico do Amazonas, a vocação de governo sobre a existência humana, ampla e imperiosa.

A carta geográfica apresenta no espaço amazônico os tortuosos riscos azuis dos afluentes, confluentes e defluentes do Rio-Mar, infundindo, a quem lhes relanceie a vista, compenetrado da índole social dos rios, a grande verdade da natureza, cuja contemplação, repetindo Goethe, deve a parte sempre ser considerada como um todo, porque nada é interior, nada é exterior, e o que está dentro está fora, para se chegar a entender de modo mais claro certos segredos aparentemente invioláveis.

Talvez, por falta dessa acuidade é que o viajante, ao ver a Amazônia pela primeira vez, tenha uma decepção, vendo-a "inferior à imagem subjetiva há longo tempo prefigurada", segundo confessa a pena mais brilhante e emotiva que se molhou nas águas do Amazonas. Mas, é o próprio Euclides da Cunha quem retifica as primeiras manifestações de espírito desavisado em seu discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras. Depois de ler uma pequena monografia científica, na qual a luz do Equador parece ter refletido os raios da verdade da terra e da água em sua inteligência, o viajante de ontem, surdo aos clamores da natureza, volveu-se, de comoção em comoção, no impressionista e expressionista que sentiu o drama da vida, que pressentiu os segredos da terra, antes vista nos "horizontes vazios e indefinidos como o dos mares", e como um "bracejo angustioso". E no seu ímpeto verbal viu "a gestação de um mundo, um arranco do triunfo".

O primado social dos rios, trazendo a marca da geografia singular, revela-se nos múltiplos aspectos da vida amazônica, alguns dos quais foram retratados em capítulos precedentes. Diante disso, entrevê-se uns laivos de determinismo, quase a confirmar os exageros da doutrina defendida por Taine, Buckle e Huntington. Porque o homem, diante do cenário grande demais para a sua pequenez, sente-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no meio em proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias tirânicas que os rios ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna rendido, senão à terra mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais.

Eis o Nilo, o mais extenso dos cursos fluviais, contido desde a era imemorial dos Faraós pelos sistemas de irrigação, oferecendo, submisso, o milagre de sua fertilidade, agora definitivamente subjugado nas represas construídas pela técnica moderna, a lembrar as palavras de Heródoto de que o Egito é uma dádiva sua.

Mas, quem poderá controlar as formidáveis e dispersas energias do Amazonas? O volume colossal das águas, o arremesso violento da corrente, a inconsistência do solo invalidam qualquer diligência de refreá-lo em benefício social, e ele continua selvagem, primitivo, entregue aos devaneios de sua geografia, aos caprichos de sua hidrografia. A obra seria uma luta entre gigantes e pigmeus, e é possível que o rio acabasse por vencer.

Os caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça. Quando nas cheias a navegação alcança os sítios mais longínquos, certas vezes as alegrias do feliz acontecimento são toldadas pelas inundações funestas, arrasando culturas agrícolas, tragando barrancos, removendo a pobreza franciscana das barracas, levando o desespero aos lares, e constituindo uma séria ameaça à economia.

Nos seis meses de seca o verão derrama sobre o vale o fulgor do sol em céu azul, descoberto, e o drama nos altos rios é a falta d'água no álveo empobrecido, a água contra a qual se blasfemara no desespero das alagações. Ficam retidos os gaiolas mais imprudentes que se aventuraram a subir o caminho fluvial no fim da estação invernosa, com o casco nu, em falsa postura na calha vazia, amparado pelas escoras de madeiros silvestres, mantidos em equilíde cabos de aço retesos das florestas. Os batelões, arrastando-se nos baixios, roçando nos paus perigosos, realizam milagres para levar aos vilórios, aos seringais, os mantimentos, as coisas essenciais da vida.

O seringueiro aproveita a quadra e corta a árvore do leite, o madeireiro abate os enormes lenhos e decepa-os em toros, jogando-os no leito desnudo dos igarapés. Quando chegam as chuvas, o primeiro fica na barraca, inativo, porque não poderá vencer nas estradas alagadas o duplo embate com a selva e a água, mas no segundo renascem esperanças de sua madeira vir do âmago da mata, boiando no repiquete, do igarapé ao rio, e daí ao mar, no porão dos navios.

A safra toda se escoa pelo caminho andante numa pressa de aproveitar aqueles breves dias de repiquetes, seguindo o mesmo ritmo de fuga das águas barrentas, à procura da foz libertadora.

As comunidades, as barracas, os barracões se desenvolvem à beira dos rios, junto aos barrancos, equilibrados nos esteios, prontos para locomoverem-se à ré se as terras caídas ameaçarem as palafitas, mas sempre junto da água, na atração máxima do caudal que é a vereda das energias vitais.

Nas paragens do baixo Amazonas, onde a largura e a profundidade dos cursos fluviais poupam menos dissabores ao homem, a trilha líquida continua a exercer sua implacável hegemonia nos transportes e também nas desolações das grandes enchentes, que demandam nas fazendas pastoris a construção das marombas, imensos palanques erguidos em pleno campo, nos quais as reses ficam cercadas pela água, recebendo o pastoreio diário dos vaqueiros, que lhes trazem de montaria a canarana alimentar.

O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da geografia humana da Amazônia. O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional.

A noção do jus soli parece que se priva de seu conteúdo sentimental em detrimento do rio. Quando alguém se refere à terra natal só costuma dizer: eu nasci no Juruá, eu nasci no Purus. Se fala da borracha, esta perde a sua qualidade de produto silvestre para ser do rio: borracha do Abunã, borracha do Xingu. Quando há ocasião de assinalar uma área produtiva, o rio é que absorve os elogios: o Yaco é bom de leite, o Antimari é grande produtor de borracha. As ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e não à terra: fui muito feliz no Tarauacá, fiquei noivo no Envira e casei no Muru.

O rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.

Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico. 

 

TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida: uma interpretação da Amazônia. 7ª ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Manaus: SUFRAMA, 1983. p. 231-234