sábado, 21 de abril de 2018

ERASMO E A BESTA

Henry Evaristo (1975-2010)

Erasmo fechou o pesado livro de capas vermelhas emboloradas às três da manhã. O tom amarelado das antigas folhas da obra obscura ainda insistia em dançar por trás de seus olhos quando ergueu a cabeça depois de ficar muito tempo refletindo sobre o saber ancestral e oculto com o qual havia acabado de ter contato.

O ar estava abafado na velha biblioteca. Era uma noite de verão, quente e estagnada, onde a umidade sufocante parecia querer estourar os pulmões dos habitantes da velha cidade e das turbas de forasteiros andarilhos que ela insistentemente atraía; e que vagavam como hordas pelas esquinas dos bairros mal iluminados, vindos de lugares ignorados; quiçá exóticos quiçá sórdidos.

Uma tênue luminosidade se filtrava pelos vitrais das janelas altas e gradeadas banhando o ambiente com um tom azul violáceo com se ali fosse o lugar de um fantástico aportar de estranhos mundos oníricos que se desprendessem do subconsciente em meio à mixórdia do universo da vigília. A pequena lâmpada fluorescente do teto não era páreo para as sombras dos cantos escuros que queriam se propagar para todos os lugares.

Erasmo, os olhos ardendo devido à leitura forçada sob tão adversas condições de iluminação, recostou-se na poltrona de veludo e passou a mão esquerda na chave da porta principal lembrando-se do que dissera, mais cedo, o segurança do estabelecimento, seu vizinho Baaurus. As advertências sobre não abrir a porta para ninguém, por mais que implorasse, e de que não ficasse andando por ai sozinho para não correr risco de se perder, faziam agora um sentido que, às seis da tarde não haviam feito. O ambiente sombrio, mas aconchegante, que encontrara ao chegar na imensa biblioteca parecia ter transmutado para algo a ser temido durante o tempo em que esteve compenetrado em sua leitura. Uma opressão no ar parecia insistir em gritar que a anormalidade pairava por ali. "Depois feche tudo com atenção!" Repetira mais cedo o vizinho vigilante. "Se não perco o emprego e você vai se ver comigo!".

Perdido em pensamentos desordenados e misturados, Erasmo viu claramente quando de uma das prateleiras de livros mais próximas, cuja parte posterior estava mergulhada nas sombras espessas da biblioteca, vários volumes foram atirados ao chão com extrema violência. O ruído, espalhando-se e reverberando pelas paredes do recinto vazio, era como uma algazarra medonha de coisas indizíveis a lutar entre si.

De um salto ele se ergueu a fitar a direção do ocorrido com olhos arregalados. No entanto ficou parado, inerte, em silêncio. O coração dava pontadas finas em seu peito e o ar começava a querer lhe faltar. A asma de repente o ameaçava de novo, depois de tantos anos de trégua.

Do escuro, por trás das prateleiras com milhares de volumes, como a responder às indagações silenciosas de Erasmo, veio uma série de terríveis ruídos semelhantes ao trote lento e circular de algum animal equino que se esforçasse para não cair na superfície do piso encerado e escorregadio. Depois, mais volumes foram atirados de prateleiras distantes como se alguma coisa grande esbarrasse nelas aos encontrões.

Parado, imóvel, Erasmo tinha os cabelos em pé. Suas mãos suadas, que antes descansavam sobre a superfície vermelha e carcomida do livro ancestral que estivera lendo, agora evitavam a todo custo ter qualquer outro contato com o volume estranho e obscuro cujo nome do autor fora extirpado de seus devidos lugares; lugares onde restavam apenas manchas escuras de um borrão feio cuja visão prolongada causava asco e torpor inexplicáveis.

Num ímpeto, o curioso voltou-se para a porta de saída apalpando de novo as chaves e certificando-se de agarrar logo a que servia especificamente para a fechadura que tão ansiosamente queria abrir. Antes, porém, superando a duras penas o terrível mal-estar que sentia, apropriou-se do estranho livro para levá-lo consigo.

Ao dar o primeiro passo, no entanto, imediatamente algo de enorme massa corporal postou-se às suas costas.

Erasmo parou no meio da biblioteca azulada decidido a não se virar por nada que ouvisse ou sentisse subsequentemente. Primeiro veio uma lufada de vento quente em seu pescoço e seus cabelos se tornaram úmidos com algum líquido espesso que brotava da escuridão. Algo de indescritível sensação pegajosa e fétida encharcou suas roupas.

Não ouviu palavras articuladas em seu idioma, mas sentiu quando o calor de uma nefanda proximidade orgânica se abateu sobre sua nuca e ouvido. Parecia sussurrar palavras em alguma língua profana e imunda que misturava fonemas com cusparadas e onomatopeias. Não queria aceitar o fato de que aquilo que achava se tratar de uma espécie sem sentido de ruído anasalado que ouvia em meio à miscelânea de sons que provinham de suas costas, fosse, na verdade, o balir de algum animal caprino.

De repente tudo parou. Os sons, o mau cheiro, o calor em seu pescoço, tudo desapareceu e a biblioteca mergulhou novamente em extrema calma e solidão. Erasmo ofegava na penumbra violácea do recinto e lagrimas lhe escorriam dos olhos. Seus músculos retesados não conseguiam se mover.

A porta principal estava a poucos metros a sua frente, mas chegar lá parecia tarefa impossível. Lentamente deu alguns passos tímidos para frente e, ao tentar agarrar a chave no bolso, deixou cair o livro que segurava com tanto pavor. O compêndio foi estatelar-se no chão onde inexplicavelmente rolou como se atirado com extrema força indo restar, de páginas abertas, perto da tão almejada porta de saída. Num último esforço, Erasmo correu em sua direção e, neste momento, ouviu de novo a movimentação sobrenatural às suas costas.

Algo avançava através do salão chocando um trotar de patas cascudas contra o soalho encerado de madeiras nobres.

"Maldito!", Pensou Erasmo agarrando a chave com toda sua força e desesperadamente inserindo-a na fechadura. A imensa porta cedeu com facilidade e o ar externo entrou levando luz ao salão escuro.

A coisa vinha das trevas correndo e relinchando como um cavalo; berrando e cabeceando como um carneiro negro gigantesco; escorregando e caindo no chão liso. Assim Erasmo a viu antes de chutar o livro para o lado de fora onde foi parar próximo ao meio fio. Depois bateu a porta com estrépito, trancou-a rapidamente, e se afastou, andando de costas, para o meio da rua deserta.

Tudo ficou quieto outra vez. Ao longe um táxi dobrou a esquina e veio em direção ao homem parado no meio do caminho. Erasmo fez sinal para que ele se aproximasse e parasse.

Ao embarcar foi interpelado pelo motorista que apontava o lado de fora. "Seu livro senhor!". "Ahn?", disse o passageiro com os olhos fitos na fechadura da porta da biblioteca. "Aquele livro é seu?", indagou novamente o pequeno homem ao volante. "Veja aquilo!", foi o que obteve como resposta.

Erasmo apontava para a imensa porta de ébano do prédio de onde acabara de sair. O motorista olhou para a mesma direção e viu a madeira cedendo sob golpes furiosos desferidos pelo lado de dentro. "Senhor?", disse atônito. "O que é isso?".

"Não sei", respondeu o jovem com franqueza; muito embora sua inocência já estivesse comprometida pelos segredos pervertidos que desvendara nas passagens que lera do terrível volume e sendo suas suspeitas meros subterfúgios para tentar obscurecer a verdade incontestável.

"Está tentando sair". Disse, em fim, depois de respirar fundo. "Quer ficar solta no mundo! Vamos embora, vamos!" Gritou.

O motorista, diante da ordem imperiosa daquele estranho passageiro exacerbado, acelerou o mais que pôde se dando por satisfeito em sair de perto daquele lugar.

***

O estranho livro ficou jogado no meio-fio até a chegada do segurança Baaurus às cinco da manhã como havia ficado acertado com seu amigo na noite anterior. O velho guarda aproveitara a presença do outro (fazendo às vezes de vigia em seu lugar) para ir visitar as casas de facilidades de um decrépito bairro próximo. Encontrou o volume aberto e umedecido pela garoa da noite e nenhum sinal de seu amigo com quem ficou decidido a ter uma conversinha de reprimenda por ter falhado tão miseravelmente na sua parte do acordo que era cuidar bem do recinto em troca de poder ficar a vontade para ler o que quisesse. Agora justamente aquele volume raríssimo se encontrava com a integridade posta em risco pelas mãos de um irresponsável.

Ele estava aberto em duas páginas com ilustrações que logo chamaram a atenção do guarda boêmio. Eram imagens de um antigo deus cultuado pelos templários em Jerusalém na idade média. Mas o guarda de nada disso entendia assim como também não sabia latim a exemplo de seu negligente e culto amigo. Se soubesse poderia ter lido o que ele não teve tempo de ler:

“Do Caos ele vem, arrastando consigo a perdição do verbo; da ação de Deus. Ele próprio é Deus e de seu reino brotam os negrumes nos corações dos homens. Seu nome é Deus-barbudo, sua vontade é imperiosa e fará sua residência a alma humana. Olhai este compêndio, ó filhos do homem, pois ele é o portal para o Nosso Senhor dos Abismos, o Pastor dos Rebanhos de Chacais da Mesopotâmia. Ó, Sagrado Behemot, que chafurda nas águas malignas no Nilo! Cadela dos grotões das matas, Diabo dos poços sem fundo!”

sexta-feira, 20 de abril de 2018

MÚSICA DE CÂMARA de James Joyce

Música de Câmara é o primeiro livro do irlandês James Joyce (1882-1941), publicado em Londres em 1907. Os versos, raras vezes irônicos, falam da arte da poesia, de amor e traição, amor e solidão. Na época em que escreveu os versos, Joyce dizia que ele “era um rapaz estranho e distante dos outros, andando sozinho à noite e pensando que algum dia uma moça me amaria”.
VI

Quem dera o doce peito eu habitasse
(Tão belo ele é, tão doce e vero!)
E o vento rude nunca me rondasse...
Por causa do árido ar severo
Quem dera o doce peito eu habitasse.

Tivesse nesse coração morada
(De leve, bato, imploro à moça!)
E nele a paz me fosse partilhada...
Esse ar severo fora doce
Tivesse nesse coração morada. p.61


VII

Amor, vestes leves, passeia
Entre as macieiras – via
Por onde o vento alegre anseia
Correr em companhia.

Lá, onde o vento alegre para
E corteja a jovem rama,
Amor vai lento, a se inclinar à
Sombra sobre a grama,

E o céu pálido e azul é a taça
Por sobre a terra gaia,
Amor vai leve, a mão com graça
A segurar a saia. p.63


IX

Ventos de maio, em dança mar afora,
Dançando lá numa giranda em glória,
De sulco em sulco, a espuma esvoaçando
Ao alto, até tornar-se uma guirlanda
De arcos prateados que atravessam o ar –
Não viram meu amor nalgum lugar?
Malandança, malandança!
Ah ventos de maio em dança!
Amor é triste se amor está a distância! p.67


XXII

Do doce cárcere a prender-me,
Disso carece, amor, meu ser –
Ternos braços que põem-me inerme
E que também me impõe deter.
Eu fira alegre por lograr
Ser encerrado nesse cárcere!

Na teia de braços que o amor,
Minha querida, deixou trêmulos,
Tal noite atrai-me, onde o temor
Não possa nunca perturbar-nos;
Só um sono-em-sonhos vá se unir a
Um sono, a alma e a alma prisioneira. p.93


XXIII

Junto ao meu peito vibra um peito
Que é todo o bem, toda a esperança;
Num beijo e noutro, satisfeito;
Insatisfeito, se a distância.
É todo o bem que me foi dado – é! –
Minha única felicidade.

Pois lá (o musgo onde a corruíra
Aninha vários bens num canto)
Guardei os meus, antes de vir a
Descobrir o que era o pranto.
Teremos tal sabedoria
Se bem o amor dure um só dia? p.95


XXIV

Em silêncio, ela penteia,
Penteia os longos cabelos,
Em silêncio, com graça
E com uns gestos tão belos.

O sol está no salgueiro
E nos matizes sobre a erva:
Ela ainda se penteia,
Diante do espelho se observa.

Peço, não penteies mais,
Não penteies o cabelo,
Pois sei de certa magia
Sob aspecto o mais belo,

Que torna indistinto ao amante
Estar vivo ou se finar
Por ela, ó tu que és tão bela
E de um descaso sem par. p.97


XXVII

Mesmo que eu fosse um Mitridates
Imune à seta com veneno,
Me envolverias sem cautela
Até o teu êxtase mais pleno
E eu me render e confessar-me
Essa malícia do teu charme.

Para uma frase bela e antiga,
Querida, a boca é bem esperta;
Não sei de amor que se bendiga
Com o flautear de nossos poetas,
Nem de um amor onde não há de
Haver alguma falsidade. p.103


XXVIII

Gentil senhora, não me cante
Canções tristes, de amor que acaba;
Deixe pra a tristeza; cante
Como esse amor tão breve basta.

Cante o longo torpor de amor
De amantes mortos, lado a lado,
E como, em sua cova, o amor
Vai repousar. Está cansado. p.105


XXXVI

Escuto um exército em carga pela terra,
E estrondo de cavalos se arrojando, a espuma nos joelhos:
Arrogantes, com armadura negra, atrás deles se erguem,
Desdenhando as rédeas, com chicotes flutuantes, os cocheiros.

Eles bradam para a noite os seus nomes de guerra:
Choro dormindo e ouvindo ao longe o vórtice da gargalhada.
Eles cindem o escuro onírico, fulgor que cega,
E martelam, martelam meu peito como a uma bigorna.

Eles vêm sacudindo em triunfo a verde e longa cabeleira:
Eles surgem do mar e aos berros correm pela praia.
Coração, não tens prudência nenhuma, com tal desespero?
Amor, amor, amor, por que me deixaste só? p.121


JOYCE, James. Música de câmara. Tradução de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Iluminuras, 1998.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

POEMAS DE PAULO BOMFIM

Foto: culturafm
AMO-TE ASSIM

Amo-te assim
Com o amor dos condenados,
O desespero dos náufragos,
A lucidez dos suicidas;
Moro em tua liberdade,
Sonho em teu mar selvagem,
Desperto em tua vida.
Amo-te assim
Com a tristeza dos cegos
E a doçura do crepúsculo
Na hora azul que se perde
Entre o que sou e o que fui.
Amo-te assim
Em cada último minuto
Que rola sobre as pétalas
De tua essência,
E morre em minha carne. p.36


TROVA

Longe de ti eu me sinto
Ave sem pouso e sem lar.
Longe de ti sou apenas
A praia longe do mar. p.39


AQUILO QUE NÃO FOMOS

Ninguém tem culpa
Daquilo que não fomos!
Não houve erros,
Nem cálculos falhados
Sobre a estepe de papel.
Apenas,
Não somos os calculistas
Porém os calculados,
Não somos os desenhistas
Mas os desenhados,
E muito menos escrevemos versos
E sim somos escritos.
Ninguém é culpado de nada
Neste estranhar constante.

Ao longe, uma chuva fina
Molha aquilo que não fomos. p.189


POEMA DO ADOLESCENTE TRANSVIADO

A vida oferece
A boca
Os seios
E um sexo desesperado

Buscamos paz
No atordoamento
Colhemos amor
Na vertigem
E a morte
Gruda-se à nossa cintura
Na garupa
Das motos
Que voam como
Anjos perdidos

No fundo de todos os corpos
No fim de todos os delírios
Estamos lúcidos e tristes
Com blusões de sangue
Cobrindo um luto de viver p.224


DAS ORIGENS

Das origens só restou
este jeito de sentir.
Arrogância disfarçada,
sesmarias de remorso,
glebas de tédio e de luto,
ponchos cobrindo de sono
o galope das varandas.
As demandas se perderam
na agonia dos avós,
e o tiro das emboscadas
é flor de chumbo crescendo
no pressentir de seus netos.
Há vetustos casarões
e espectros de cafezais
habitando nossos pousos;
– os mansos apartamentos,
as vivendas de aluguel
onde deuses clandestinos
tilintam suas esporas,
preiam índias, sangram ouro,
emprenham sol nas mucamas,
balanças cadeiras rústicas,
e tiram de seus alforjes
a palha para o cigarro,
a pólvora para a morte,
e a matéria para o sonho.
Das origens só restou
o sigilo das candeias. p.321


TÃO AZUL

Tão azul ver-te partir
Escoltada de silêncio!
Os alaúdes calados,
Os retratos pensativos,
Limo na voz das estátuas,
Cantares emurchecidos,
A seiva petrificada.
Longe navios parados
E moendas sem moer.
Perto uma ausência crescente,
Toda clareira de adeus,
Um soluço nos relógios,
Gota de sal sobre a mesa,
Fumaça intacta no espaço
E a palavra sem ser dita
Num estojo de veludo.
Tão azul ver-te partir
Entre capítulos brancos! p.325


DO POETA MORTO

Da vida esta aventura sem ventura,
Parte o cantor legando-nos seu canto,
E a morte surge como surge o pranto
Na face da paixão que inda perdura.

E do silêncio que se faz ternura,
E da alegria que se faz espanto,
A rua desmanchada no acalanto
E o verso-estrela numa noite escura.

Parte ficando em tudo quanto amou,
Nos gestos que sangrou de veia aberta
E na canção dos corpos que habitou.

E aquele que do amor fez sua vida,
Conquista na paixão que lhe desperta
A morte essa mulher desconhecida! p.367


DE TUDO QUANTO AMAMOS

De tudo quanto amamos o que resta,
O riso desbotado dos retratos,
A talagarça dos momentos gratos
Ou a tristeza desse fim de festa?

Ficou por certo a ruga em nossa testa
Inventariando feitos e relatos,
E vozes e perfis somando fatos,
E a desfocada imagem da seresta.

E tudo o fogo afaga em canto findo,
Este porque de coisas devolutas,
E o tempo nômade que foi partindo.

Ficou de quanto amamos nos escolhos
A restinga das horas dissolutas,
E o mar aprisionado em nossos olhos! p.372


BOMFIM, Paulo. 50 anos de poesia. São Paulo: Editora Green Forest do Brasil, 2000.