Erasmo fechou o
pesado livro de capas vermelhas emboloradas às três da manhã. O tom amarelado
das antigas folhas da obra obscura ainda insistia em dançar por trás de seus
olhos quando ergueu a cabeça depois de ficar muito tempo refletindo sobre o
saber ancestral e oculto com o qual havia acabado de ter contato.
O ar estava abafado
na velha biblioteca. Era uma noite de verão, quente e estagnada, onde a umidade
sufocante parecia querer estourar os pulmões dos habitantes da velha cidade e
das turbas de forasteiros andarilhos que ela insistentemente atraía; e que
vagavam como hordas pelas esquinas dos bairros mal iluminados, vindos de
lugares ignorados; quiçá exóticos quiçá sórdidos.
Uma tênue
luminosidade se filtrava pelos vitrais das janelas altas e gradeadas banhando o
ambiente com um tom azul violáceo com se ali fosse o lugar de um fantástico
aportar de estranhos mundos oníricos que se desprendessem do subconsciente em
meio à mixórdia do universo da vigília. A pequena lâmpada fluorescente do teto
não era páreo para as sombras dos cantos escuros que queriam se propagar para
todos os lugares.
Erasmo, os olhos
ardendo devido à leitura forçada sob tão adversas condições de iluminação,
recostou-se na poltrona de veludo e passou a mão esquerda na chave da porta
principal lembrando-se do que dissera, mais cedo, o segurança do
estabelecimento, seu vizinho Baaurus. As advertências sobre não abrir a porta
para ninguém, por mais que implorasse, e de que não ficasse andando por ai
sozinho para não correr risco de se perder, faziam agora um sentido que, às
seis da tarde não haviam feito. O ambiente sombrio, mas aconchegante, que
encontrara ao chegar na imensa biblioteca parecia ter transmutado para algo a
ser temido durante o tempo em que esteve compenetrado em sua leitura. Uma
opressão no ar parecia insistir em gritar que a anormalidade pairava por ali.
"Depois feche tudo com atenção!" Repetira mais cedo o vizinho
vigilante. "Se não perco o emprego e você vai se ver comigo!".
Perdido em
pensamentos desordenados e misturados, Erasmo viu claramente quando de uma das
prateleiras de livros mais próximas, cuja parte posterior estava mergulhada nas
sombras espessas da biblioteca, vários volumes foram atirados ao chão com
extrema violência. O ruído, espalhando-se e reverberando pelas paredes do
recinto vazio, era como uma algazarra medonha de coisas indizíveis a lutar
entre si.
De um salto ele se
ergueu a fitar a direção do ocorrido com olhos arregalados. No entanto ficou
parado, inerte, em silêncio. O coração dava pontadas finas em seu peito e o ar
começava a querer lhe faltar. A asma de repente o ameaçava de novo, depois de
tantos anos de trégua.
Do escuro, por trás
das prateleiras com milhares de volumes, como a responder às indagações
silenciosas de Erasmo, veio uma série de terríveis ruídos semelhantes ao trote
lento e circular de algum animal equino que se esforçasse para não cair na
superfície do piso encerado e escorregadio. Depois, mais volumes foram atirados
de prateleiras distantes como se alguma coisa grande esbarrasse nelas aos
encontrões.
Parado, imóvel,
Erasmo tinha os cabelos em pé. Suas mãos suadas, que antes descansavam sobre a
superfície vermelha e carcomida do livro ancestral que estivera lendo, agora
evitavam a todo custo ter qualquer outro contato com o volume estranho e
obscuro cujo nome do autor fora extirpado de seus devidos lugares; lugares onde
restavam apenas manchas escuras de um borrão feio cuja visão prolongada causava
asco e torpor inexplicáveis.
Num ímpeto, o
curioso voltou-se para a porta de saída apalpando de novo as chaves e
certificando-se de agarrar logo a que servia especificamente para a fechadura
que tão ansiosamente queria abrir. Antes, porém, superando a duras penas o
terrível mal-estar que sentia, apropriou-se do estranho livro para levá-lo
consigo.
Ao dar o primeiro
passo, no entanto, imediatamente algo de enorme massa corporal postou-se às
suas costas.
Erasmo parou no
meio da biblioteca azulada decidido a não se virar por nada que ouvisse ou
sentisse subsequentemente. Primeiro veio uma lufada de vento quente em seu
pescoço e seus cabelos se tornaram úmidos com algum líquido espesso que brotava
da escuridão. Algo de indescritível sensação pegajosa e fétida encharcou suas
roupas.
Não ouviu palavras
articuladas em seu idioma, mas sentiu quando o calor de uma nefanda proximidade
orgânica se abateu sobre sua nuca e ouvido. Parecia sussurrar palavras em
alguma língua profana e imunda que misturava fonemas com cusparadas e onomatopeias.
Não queria aceitar o fato de que aquilo que achava se tratar de uma espécie sem
sentido de ruído anasalado que ouvia em meio à miscelânea de sons que provinham
de suas costas, fosse, na verdade, o balir de algum animal caprino.
De repente tudo
parou. Os sons, o mau cheiro, o calor em seu pescoço, tudo desapareceu e a
biblioteca mergulhou novamente em extrema calma e solidão. Erasmo ofegava na
penumbra violácea do recinto e lagrimas lhe escorriam dos olhos. Seus músculos
retesados não conseguiam se mover.
A porta principal
estava a poucos metros a sua frente, mas chegar lá parecia tarefa impossível.
Lentamente deu alguns passos tímidos para frente e, ao tentar agarrar a chave
no bolso, deixou cair o livro que segurava com tanto pavor. O compêndio foi
estatelar-se no chão onde inexplicavelmente rolou como se atirado com extrema
força indo restar, de páginas abertas, perto da tão almejada porta de saída.
Num último esforço, Erasmo correu em sua direção e, neste momento, ouviu de
novo a movimentação sobrenatural às suas costas.
Algo avançava
através do salão chocando um trotar de patas cascudas contra o soalho encerado
de madeiras nobres.
"Maldito!",
Pensou Erasmo agarrando a chave com toda sua força e desesperadamente
inserindo-a na fechadura. A imensa porta cedeu com facilidade e o ar externo
entrou levando luz ao salão escuro.
A coisa vinha das
trevas correndo e relinchando como um cavalo; berrando e cabeceando como um
carneiro negro gigantesco; escorregando e caindo no chão liso. Assim Erasmo a
viu antes de chutar o livro para o lado de fora onde foi parar próximo ao meio
fio. Depois bateu a porta com estrépito, trancou-a rapidamente, e se afastou,
andando de costas, para o meio da rua deserta.
Tudo ficou quieto
outra vez. Ao longe um táxi dobrou a esquina e veio em direção ao homem parado
no meio do caminho. Erasmo fez sinal para que ele se aproximasse e parasse.
Ao embarcar foi
interpelado pelo motorista que apontava o lado de fora. "Seu livro
senhor!". "Ahn?", disse o passageiro com os olhos fitos na fechadura
da porta da biblioteca. "Aquele livro é seu?", indagou novamente o
pequeno homem ao volante. "Veja aquilo!", foi o que obteve como
resposta.
Erasmo apontava
para a imensa porta de ébano do prédio de onde acabara de sair. O motorista
olhou para a mesma direção e viu a madeira cedendo sob golpes furiosos
desferidos pelo lado de dentro. "Senhor?", disse atônito. "O que
é isso?".
"Não
sei", respondeu o jovem com franqueza; muito embora sua inocência já
estivesse comprometida pelos segredos pervertidos que desvendara nas passagens
que lera do terrível volume e sendo suas suspeitas meros subterfúgios para
tentar obscurecer a verdade incontestável.
"Está tentando
sair". Disse, em fim, depois de respirar fundo. "Quer ficar solta no
mundo! Vamos embora, vamos!" Gritou.
O motorista, diante
da ordem imperiosa daquele estranho passageiro exacerbado, acelerou o mais que
pôde se dando por satisfeito em sair de perto daquele lugar.
***
O estranho livro
ficou jogado no meio-fio até a chegada do segurança Baaurus às cinco da manhã
como havia ficado acertado com seu amigo na noite anterior. O velho guarda
aproveitara a presença do outro (fazendo às vezes de vigia em seu lugar) para
ir visitar as casas de facilidades de um decrépito bairro próximo. Encontrou o
volume aberto e umedecido pela garoa da noite e nenhum sinal de seu amigo com
quem ficou decidido a ter uma conversinha de reprimenda por ter falhado tão
miseravelmente na sua parte do acordo que era cuidar bem do recinto em troca de
poder ficar a vontade para ler o que quisesse. Agora justamente aquele volume
raríssimo se encontrava com a integridade posta em risco pelas mãos de um
irresponsável.
Ele estava aberto
em duas páginas com ilustrações que logo chamaram a atenção do guarda boêmio.
Eram imagens de um antigo deus cultuado pelos templários em Jerusalém na idade
média. Mas o guarda de nada disso entendia assim como também não sabia latim a
exemplo de seu negligente e culto amigo. Se soubesse poderia ter lido o que ele
não teve tempo de ler:
“Do Caos ele vem, arrastando consigo a perdição do verbo; da ação de
Deus. Ele próprio é Deus e de seu reino brotam os negrumes nos corações dos
homens. Seu nome é Deus-barbudo, sua vontade é imperiosa e fará sua residência
a alma humana. Olhai este compêndio, ó filhos do homem, pois ele é o portal
para o Nosso Senhor dos Abismos, o Pastor dos Rebanhos de Chacais da
Mesopotâmia. Ó, Sagrado Behemot, que chafurda nas águas malignas no Nilo!
Cadela dos grotões das matas, Diabo dos poços sem fundo!”
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