A história do
teatro acreano – o mesmo que a história do teatro no Acre – é muito recente.
Sou de uma geração que assistiu e viveu um de seus capítulos mais significativos
nas décadas de 70/80/90. A exemplo das outras manifestações artísticas - como a
música, a literatura, as artes plásticas e o cinema - a dramaturgia acreana
nasce e caminha como uma possibilidade outra de nos manifestarmos sobre o
entorno e o interior de nossos desassossegos no aqui agora do viver social e
cultural locais. Uns mais engajados com questões sociais, outros menos, mas, de
qualquer modo, é possível afirmar que, como regra, muito dessa produção
artística não ignora – pelo contrário enfrenta – as questões de interesse
locais que buscam desassociar falseadamente a cultura da política -
especialmente as que dizem respeito a relação do poder institucional, de
caracteres colonizadora, exploradora, racializadora – com os grupos sociais –
nomeados como minorias.
Sempre quando penso
no que assisti e vivi nesse passado recente do teatro acreano me vem à mente
duas de suas vertentes, estabelecidas ao longo desta jovem história, que a mim
parecem significativamente simbólicas dessa dramaturgia que aqui vou adjetivar
de decolonial (na frente explico o que isto significa e o porquê): a do Grupo
De Olho na Coisa, de Matias, e a do grupo Adsabá, de Betho Rocha, ambos
falecidos no mesmo ano de 1997.
Estes grupos
dirigidos/concebidos por estes dois artistas acreanos carregam posturas
estéticas e temáticas aparentemente diversas entre si. O De olho na Coisa se
finca na questão social em volta da relação floresta/cidade, tanto no que diz
respeito aos seus efeitos sociológicos quanto ecológicos. Ambos postos de modo
a denunciar as condições colonizada/racializada dos sujeitos seringueiros e
indígenas e de seus territórios tidos, pelo olhar colonizador, como
periféricos, tradicionais e, por isso, atrasados, antieconômicos e inferiores
em relação à chamada modernidade sustentável dos centros. Por seu turno, o
Adsabá, na fase em que Betho se volta para uma dramaturgia dita antropológica
(especialmente com as peças Histórias de Quirá e Lendas de Contato, baseadas na
cultura e narrativa indígenas dos Madija, da bacia dos rios Purus e Juruá),
ocupa um vazio temático até então contido nas expressões artísticas, não só
dramatúrgicas, em razão da então – mantida historicamente - invisibilidade
social, política e cultural dos indígenas “acreanos”. Betho, para além disso -
assim como Matias faz em relação aos seringueiros - chama atenção para os
valores culturais, políticos e sociais dos povos indígenas locais.
Todavia, é no campo
da linguagem estética que ambos parecem caminhar de modos um tanto diversos. O
De Olho na Coisa busca uma dramaturgia de comunicação direta para a fácil
compreensão de todos (para tanto se vale da oralidade e de outros elementos da
chamada cultura popular) – o que não arranha seu valor artístico – posto que,
na voz de Matias, o seu teatro é uma forma de manifesto político-estético ante
a realidade em que se encontram inseridos seus fazedores e expectadores. Não é
à toa que o De Olho na Coisa preferia a rua – de livre e imediato acesso a
todos - ao espaço da caixa cênica, esta, de certo modo, ainda seletiva e, por isso,
muito pouco acessível ao grande público.
O Adsabá, por sua
vez, pautado em montagens no escuro da caixa cênica, propõe uma estética da
experimentação de caráter dramaturgicamente original, de forte influência da
linguagem fílmica, especialmente quanto à luz, e inovadora no aspecto teatral
quando a dança – o corpo em movimento/música – supera a palavra. Os seus
personagens pouco ou nunca falam. Quase um teatro mudo, sonora, cromática e
imageticamente.
O fato é que, ambos
os grupos, mantiveram-se resistentes frente a tudo que representa o poder
moderno-colonizador no campo da estética e da política. Matias por defender a
vida da floresta e seus habitantes seringueiros contra a frente de
desenvolvimento e progresso que a destrói, periferiza/subordina os seringueiros
e coloca em seu lugar o boi e a exploração madeireira. Betho por tratar nos
palcos a dimensão cultural indígena com respeito e sem a instrumentalização
folclórica, contra todos os preconceitos/racismos étnicos em face dos índios.
O mundo de Betho
parece movimentar-se da cidade para a floresta. O de Matias no sentido inverso.
Ambos fazendo tais movimentos às avessas e vice-versa. Betho era forma estética
numa estética de pleno conteúdo político. Matias era substância política num
conteúdo de plena forma estética. Na prática (e na teoria) tudo se embaralha e
vira teatro de cada um em particular próprio.
Por estes dois
grupos, dois criadores, o teatro acreano – e no Acre – se manifesta, na forma e
conteúdo, uma expressão estética de caráter decolonial, isto é, uma arte não
conformada - mas insurgente - tanto em relação ao status quo político, quanto
em relação ao sentido artístico dominante de seu tempo. Talvez esta seja a
maior razão que me mova à lembrança e, principalmente, ao reconhecimento deles
como expressões definidoras de uma dramaturgia marcadamente própria na cena
artística acreana - e não cópia, como aos costumes coloniais se espera sejamos
em relação aos cânones dos centros de produção e difusão cultural nacional e
mundial.
Ambos faziam teatro
apesar do teatro, ou melhor da concepção de teatro a que deviam seguir. Ambos
faziam um teatro “desacademizado” – isto é, sem a obediência – o que não quer
dizer desconsideração - aos padrões das técnicas e cânones teóricos. Ambos
faziam teatro apesar da condição hierárquica a que estavam postos – como um
teatro inferior, posto que amador... – pela visão cultural colonizadora. Ambos
tematizavam o local, ou melhor, partiam dele, seu lugar de enunciação. Ambos
traziam nos seus corpos as marcas do racismo da colonização dita modernizadora.
Matias era negro, ex-seringueiro, pobre, artista “amador” e morador da
periferia. Betho, poeta, homossexual e artista sobre-vivente do teatro amador
no Acre. Eles lutavam contra a condição histórica de todo considerado não-ser
que a visão colonizadora lhes impingia. Suas obras/eles – em corpo/alma - eram
formas de resistência a tais condições. Eles (e seus teatros) foram
desobedientes à condição colonial, daí decoloniais.
Dito assim, não
estou desconsiderando tudo que na época, depois dela e agora, se fez e se tem
feito no teatro local, muito do que se comunica com – e é determinado - por
estas duas vertentes, o que as legitima como referência de pesos político e
estético neste campo.
Este reconhecimento pontual o faço para considerar que o espetáculo
Kanarô, do grupo Vivarte (em sua qualificada experiência de 20 anos de teatro
de rua, de floresta e também de caixa cênica), é declaradamente um produto
direto da influência destes dois projetos/referências da dramaturgia local.
Nessa linha, Kanarô, ao seu modo e no tempo de agora, se propõe muito
humildemente a ser um manifesto político-estético da força de um De Olho na
Coisa e também um manifesto estético-político pautado nas experimentações
cênicas e respeito antropológico de um Adsabá. Se acaso este desejo/desafio não
se realizar – pela percepção atenta de cada um dos que o expectarem no arena do
Sesc - Kanarô não perderá viagem se for aceito como uma homenagem ao teatro
acreano, por estas suas duas expressivas vertentes. Quem assistir verá.
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