terça-feira, 24 de agosto de 2010

O RIO COMANDA A VIDA - Uma Interpretação da Amazônia

Isaac Melo


Do ensaísta Leandro Tocantins é lícito esperar-se que venha escrever sobre a Amazônia obra que alcance a eminência da obra-prima. Essas palavras do proeminente sociólogo Gilberto Freyre vêm confirmar o que é o livro O Rio Comanda a Vida, uma obra-prima das letras amazônicas.

O Rio Comanda a Vida veio a público em 1952 pelas mãos de Cassiano Ricardo, então diretor da extinta Editora A Noite, com o subtítulo “Panoramas da Amazônia”. Em edições posteriores a obra ganharia novos capítulos-ensaios e permutaria o subtítulo para “Uma Interpretação da Amazônia”.

É seu autor aquele que é considerado um dos mais importantes intérpretes da Amazônia, Leandro Tocantins, com toda uma vida de estudos e dedicação à cultura amazônica. Tendo nascido em Belém (PA), aos nove meses de idade viajou para o Acre onde seus pais, Van Dyck Amanajás Tocantins e Iraídes Góes, se estabeleceram, mais precisamente no rio Tarauacá, seringal Foz do Muru, de onde administravam seringais, herança da liquidação da Casa Aviadora Barbosa & Tocantins, da praça de Belém, afetada pela crise econômica da borracha. Tocantins publicou inúmeros livros, desde ensaios a poesias, e tornou-se uma referência importante para todos aqueles que se debruçam em estudar, acuradamente, a Amazônia e seus complexos.

Os 28 capítulos-ensaios (edição de 1972) que compõem O Rio Comanda a Vida podem ser lidos aleatoriariamente, sem prejuízos de compreensão para o leitor, uma vez que cada ensaio possui temáticas diferentes e independentes, embora, seja necessário ressaltar que o livro forma um todo coerente, sob o prisma de dois ângulos: o do seu substrato sociológico e histórico em quadro livro, e o da sua projeção para o futuro. O primeiro capítulo denomina-se “A água doce que entra no mar” e trata basicamente dos descobridores do caudaloso e imponente Rio Amazonas. E finaliza o livro o texto “O rio comanda a vida” que aborda a dinâmica dos rios na vida dos povos amazônicos. Em edições posteriores à primeira, o autor achou por bem incluir alguns apensos, isto é, conferências por ele pronunciadas.

O livro pretendeu ser, na época em que foi escrito, uma evocação e um testemunho de alguém que conheceu tradições, lendas, viu panoramas, observou fatos sociais. E como ressalta o próprio autor, no primeiro momento, a obra nasceu a partir de “impressões pessoais, pesquisas históricas e geopolíticas, trajetórias humanas, idéias e fatos, a que procurei dar forma e vibração, sem me afastar do real, da verdade, no intuito de fazer conhecida honestamente a Amazônia e chamar a atenção dos poderes governamentais para os problemas do vale e as necessidades de seu povo”. Nesse sentido, o livro nasceu de um sentimento brasileiro de integração da Amazônia no processo social e econômico do país.

Nas palavras do escritor, a unidade do livro se justifica na ideia de que a natureza absorve e prende o homem em suas malhas, apesar do lento e continuado esforço para humanizá-la. Daí o rio – uma das mais poderosas forças do meio – dominar a vida, que ainda é, nesta época de revolução técnica, marcada profundamente pelos fatores geográficos.

O que O Rio Comanda a Vida se pretende é interpretar algumas partes integrantes da área cultural luso-cristã, área que se distingue no extremo norte pela marca da exploração humana ditada pelo extrativismo e profundamente influída, no seu processo sócio-econômico, pela água e pela floresta. Interpreta alguns aspectos regionais, apresentando um conjunto de sugestões para a caracterização da vida amazônica.

Muitos dos anseios projetados por Tocantins em seu livro, hoje, são uma realidade. Sua obra abriu novas perspectivas para Amazônia ao chamar a atenção para a importância da integração amazônica conciliando desenvolvimento e preservação, numa conquista ampliada pelo desenvolvimento social e econômico da região, alertando as autoridades para a cobiça internacional pelo qual vinha sofrendo a Amazônia e colocando-a não só na pauta nacional, mas em discussão a nível internacional.

O Rio Comanda a Vida une a virtude literária de expressão clara e atraente ao honesto saber histórico, à acuidade na interpretação sociológica. O autor de Casa Grande e Senzala não diria essas palavras ao acaso. Portanto, ressoa mais como convite do que como testemunho, pois penetrar em estudos profundos e sérios acerca da Amazônia é semelhante a penetrar em sua própria selva.

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TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana, 1972.

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O RIO COMANDA A VIDA
Leandro Tocantins
(último ensaio da obra de mesmo nome)


O primado social dos rios, trazendo a marca da geografia singular, revela-se nos múltiplos aspectos da vida amazônica, alguns dos quais foram retratados em capítulos precedentes. Diante disso, entrevê-se uns laivos de determinismo, quase a confirmar os exageros da doutrina defendida por Taine, Buckle e Huntington. Porque o homem, diante do cenário grande demais para a sua pequenez, sente-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no meio em proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias tirânicas que os rios ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna rendido, senão à terra mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais.

Eis o Nilo, o mais extenso dos cursos fluviais, contido desde a era imemorial dos faraós pelos sistemas de irrigação, oferecendo, submisso, o milagre de sua fertilidade, agora definitivamente subjugado nas represas construídas pela técnica moderna, a lembrar as palavras de Heródoto de que o Egito é uma dádiva sua.

Mas, quem poderá controlar as formidáveis e dispersas energias do Amazonas? O volume colossal das águas, o arremesso violento da corrente, a inconsistência do solo invalidam qualquer diligência de refreá-lo em benefício social, e ele continua selvagem, primitivo, entregue aos devaneios de sua geografia, aos caprichos de sua hidrografia. A obra seria uma luta entre gigantes e pigmeus, e é possível que o rio acabasse por vencer.

Os caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça. Quando nas cheias a navegação alcança os sítios mais longínquos, certas vezes as alegrias do feliz acontecimento são toldadas pelas inundações funestas, arrasando culturas agrícolas, tragando barrancos, removendo a pobreza franciscana das barracas, levando desespero aos lares, e constituindo uma séria ameaça à economia.

Nos seis meses de seca o verão derrama sobre o vale o fulgor do sol em céu azul, descoberto, e o drama nos altos rios é a falta d’água no álveo empobrecido, a água contra a qual se blasfemara no desespero das alagações. Ficam retidos os gaiolas mais imprudentes que se aventuram a subir o caminho fluvial no fim da estação invernosa, com o casco nu, em falsa postura na calha vazia, amparada pelas âncoras de madeiros silvestres, mantidos em equilíbrio por meio de cabos de aço retesos entre os mastros e as árvores das florestas. Os batelões, arrastando-se nos baixios, roçando nos paus perigosos, realizam milagres para levar aos vilórios, aos seringais, os mantimentos, as coisas essenciais da vida.

O seringueiro aproveita a quadra e corta a árvore de leite, o madeiro abate os enormes lenhos e decepa-os em toros, jogando-os ao leito desnudo dos igarapés. Quando chegam as chuvas, o primeiro fica na barraca, inativo, porque não poderá vencer nas estradas alagadas o duplo embate com a selva e a água, mas no segundo renascem esperanças de sua madeira vir do âmago da mata, boiando no repiquete, do igarapé ao rio, e daí ao mar, no porão dos navios.

A safra toda se escoa pelo caminho andante numa pressa de aproveitar aqueles breves dias de repiquetes, seguindo mesmo ritmo de fuga das águas barrentas, à procura da foz libertadora.

As comunidades, as barracas, os barracões, se desenvolvem à beira dos rios, junto aos barrancos, trepados nos esteios, prontos para locomoverem-se à ré se as terras caídas ameaçarem as palafitas, mas sempre junto da água, na atração máxima do caudal que é a vereda das energias vitais.

Nas paragens do Baixo Amazonas, onde a largura e a profundidade dos cursos fluviais poupam menos dissabores ao homem, a trilha líquida continua a exercer sua implacável hegemonia nos transportes e também nas desolações das grandes enchentes, que demandam nas fazendas pastoris a construção das marombas, imensos palanques erguidos em pleno campo, nos quais as reses ficam cercadas pela água, recebendo o pastoreio diário dos vaqueiros, que lhes trazem de montaria a canarana alimentar.

O homem e o rio são os dois mais ativos agentes da Geografia humana da Amazônia. O rio enchendo a vida do homem de motivações psicológicas, o rio imprimindo à sociedade rumos e tendências, criando tipos característicos na vida regional.

A noção do ius soli parece que se priva de seu conteúdo sentimental em detrimento do rio. Quando alguém se refere à terra natal, só costuma dizer: eu nasci no Juruá, eu nasci no Purus. Se fala da borracha, esta perde a sua qualidade de produto silvestre para ser do rio: borracha do Abunã, borracha do Xingu. Quando há ocasião de assinalar uma área produtiva, o rio é que absorve os elogios: o Yaco é bom de leite, o Antimari é grande produtor de borracha. As ocorrências da vida de cada um estão ligadas ao rio e não à terra: fui muito feliz no Tarauacá, fiquei noivo no Envira e casei no Muru.

O rio, sempre o rio, unido ao homem. Em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.

Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do pobre e do rico, determinantes das temperaturas e dos fenômenos atmosféricos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos desertos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e asseguraram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização – comandam a vida no anfiteatro amazônico.
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TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida. Uma interpretação da Amazônia.  Biblioteca do Exército editora: Rio de Janeiro, 1973.

Entrevista em que Leandro Tocantins conta um pouco da história de como escreveu o livro "O rio comanda a vida".

5 comentários:

Wanderley Elian Lima disse...

Olá Isaac
Quando fiz vestibular (a muito tempo atrás rsrsrsrs), o tema da redação foi: Amazonas, Rio e Avenida. Aqui em BH uma das principais avenidas chama-se Amazonas. A intenção do título era traçar um paralelo da importância de um e outro, para o povo da região. Me dei bem.
Abração

literatura e pensamento disse...

ola!caro isaac,cara ler seu blog é navegar ,no tempo e ter a oportunidade de conhecer um sabio como você é previlegio de poucos..
vc é um verdadeiro socrates...

Redação e Vestibulares disse...

Olá Isaac - tomei a liberdade de postar seu artigo no meu blog para leitura de meus alunos que terão como um dos livros a ser lido para o vestibular - O rio Comanda a Vida de Leandro Tocantis.Caso tenha algum problema,basta me comunicar que retirarei.No meu blog são postadas diversas informações de diversos autores para informação e produção de textos.um abraço

Unknown disse...

Olá gostei muito desse contexto seu, obrigada por nos proporcionar essa forma de entender um pouco sobre este livro.

Márison Cunha disse...

Estou muito encantado com esse blog... O livro: A Represa, e O Rio Comanda a Vida, retratam muitas coisas por mim vivida nas florestas da Amazônia, como vida de seringueiro tive. ❤