A face poética de
Glória Perez passa muitas vezes despercebida pelo fato do enorme prestígio que
tem como novelista. Para situar e se compreender a poesia de Perez é necessário
voltar à agitada e conturbada (e fértil) década de 1970. É, sobretudo, a partir
dessa década que, em todo o país, irrompe um pipocar literário-social, com um
enorme e heterogêneo contingente de poetas a investir, com seus
versos-palavras-imagens, contra o sufoco da censura e repressão implantadas a
partir de 1964 e também contra os valores morais e culturais da época. Surgia
assim a poesia jovem 70, que deu um novo sentido ao fazer poético no Brasil, a
semelhança do que proporcionou os modernistas com a semana de 22.
Nas palavras da
professora Heloísa Buarque de Hollanda, mais que uma manifestação de denúncia e
protesto, a poesia jovem foi uma explosão na literatura, jogando para o ar
padrões poéticos, o que lhe valeu, inclusive, o nome de poesia marginal. A
produção jovem alternativa – como a produção artesanal na literatura, os grupos
de teatro independente e imprensa nanica – emerge com uma força surpreendente,
procurando as brechas possíveis para uma intervenção crítica que trabalha novas
formas de produção e de linguagem.
Do ponto de vista
literário, os textos trabalham coloquial e ludicamente a linguagem, voltando-se
para a realidade mais imediata do poeta: o cotidiano próximo, o gesto, o
registro bruto do momento. A linguagem da ironia e do humor investe-se de forte
sentido crítico. A poesia jovem procurou e tirou vantagem de uma dicção bem
humorada, ardilosa, alegre e instantânea. Nela reivindicam-se o descompromisso,
a gratuidade e a brincadeira como bandeiras da prática poética e como
“bandeira” de uma postura crítica frente à ordem moral e institucional.
Constituíram o eixo
dessa cultura marginal a politização das relações no interior do espaço
cotidiano e a valorização das práticas artesanais e cooperativas ou coletivas,
em resposta ao padrão técnico e “competente”, bem como o fechamento político.
Os jovens poetas retomam a leitura pública da poesia, além da ênfase na
experiência pessoal como espaço da crítica social. Ao recusar a poesia de
“tese”, os poetas se voltam sobre o conteúdo de sua própria experiência
existencial num momento especialmente difícil da história e da política
brasileira.
É nesse contexto
que se insere a poesia de Glória Perez. Ela estava ligada, principalmente, a
poesia jovem produzida no Rio de Janeiro, que, em 1974, com o lançamento da
“Coleção Frenesi” promoveu um verdadeiro reboliço na cultura literário-social,
suscitando a urgência em se buscar novas formas e novos espaços para a poesia e
a vida. Perez, por sua vez, irá integrar, em 1975, a pioneira antologia
“Abertura poética, 1.ª Antologia dos Novos Poetas do Novo Rio de Janeiro”,
editada por Walmir Ayala e César de Araújo. Em seguida, participa das
antologias: “Mulheres da vida”, “Escrita”, ambas de 1978, mesmo ano em que
publica o seu primeiro livro “Sem Pão nem Circo”; “Alguma poesia” (1979);
“Maria Poesia” e “Poesia Jovem Anos 70”, ambas de 1982.
A participação
literária de Glória Perez, no entanto, não se limita ao Rio. Irá integrar
publicações alternativas em todo o Brasil, sobretudo nos estados de São Paulo,
Paraíba, Minas Gerais e Pernambuco. Fará ainda publicações em jornais e suplementos
literários por todo o país e até no exterior, além de participar de alguns
movimentos culturais.
A temática da
poesia de Glória Perez não foge da proposta da poesia jovem 70, focalizando,
sobremaneira, na questão de gênero, assumindo o discurso feminino, e uma forte
e sutil crítica a certos valores, morais e culturais, preestabelecidos e
canonizados por determinados grupos sociais. Características estas que poderão
ser observadas nas poesias a seguir, a ressaltar a beleza e o primor literário
desta que há muito encanta o Brasil.
-
a palavra
é
arma
tantas vezes
a única
possível
-
meu filho
se te disserem que
isto é assim
porque sempre foi,
porque sempre será
pergunta se tudo no
mundo
não pode mudar
pergunta se o tempo
não guarda outro tempo
assim como a fruta
já está na semente
repara que em tudo
floresce um avesso
e o sonho pressente
pergunta de tudo o
que vês e o que sentes
é teu esse mundo
com tudo o que há
porque só de ti é
que vai depender
mudar pra valer ou
deixar como está
-
PEDAGOGIA MODERNA
mamãe leu piaget
por isso diz o
porquê
de tudo o quanto me
obriga
contestando a moda
antiga
nem quer ser mãe –
só amiga
e me dá toda a
liberdade
de fazer sua
vontade
-
PENALIDADE MÁXIMA
a gente cresce
escutando
– mulher nasceu pra
sofrer
até o que dá prazer
nela promete doer
tão natural da
mulher
é o sofrimento que,
lógico,
o que a vida não
lhe der
lhe dará o
biológico
– as regras de todo
mês
a dor da primeira
vez
as penas da
gravidez
a violência do
parto
e o cabedal é tão
farto
que a conclusão não
permite
atenuante sequer
– viver é purgar a
culpa
de ter nascido
mulher
-
SINTOMÁTICO
era visível:
a cada dia
você ficava
mais invisível
-
BONS TEMPOS AQUELES
tenho saudades de
quando
nos amávamos
vinhas de outras
mulheres
eu te negava a boca
vasculhava o bolso
e tu desconfiavas
daquele namorado
antigo
que quase casou comigo
reclamavas da torta
maldizendo a sorte
e batias a porta
vez por outra –
rosas
mobília reformada
juras de nunca mais
nenhum atrito
e nova lua-de-mel
depois do exame de
corpo de delito
-
VERDES ANOS
minha tia escutava
bolero
dias e dias só
chorando
secava
maldizendo a sorte
das mulheres
despudorado coração
exposto,
assim que eu queria
sofrer
quando ficasse
grande
-
amor às vezes dá
nisso:
alguns quilos a
mais
esperanças a menos
e filhos – pra
acreditar
que mesmo assim
valeu a pena
-
MERCADO DE ESCRAVAS
ser livre para
escolher
a mão que bate
e a boca que me
cospe
-
ADOLESCÊNCIA
eu lia de candeeiro
e fazia que
estudava
passei tinta no
cabelo
bebi vinagre escondido
beijei no canto da
rua
pulei janela de
quarto
escrevi o nome dele
com o facão da
cozinha
na casca de uma
mangueira
e toda
segunda-feira
a mãe me aparava as
asas
-
viver
vicia
-
PÃO E CIRCO
fizemos tudo:
viagens, outra
filha
mudar de casa
renovar a mobília
mas o amor acabou
e equilibristas
mantemos nosso lar
com amantes e
analistas
-
REVERSO
amor também
envenena:
o mais das vezes
não mata
mas deixa a alma
pequena
PEREZ, Glória;
MICCOLIS, Leila. Mercado de escravas. Rio de Janeiro: Achiamé/Trote, 1984.
PEREZ, Glória [et
al.]. São Paulo: EDICON, 1990.
HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (org.). Poesia Jovem dos anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982.
3 comentários:
"a palavra
é
arma
tantas vezes
a única
possível"
A obra de Glória Perez, assim como toda grande obra de todo grande autor, não é conhecida fielmente como deveria. Os acreanos, principalmente, devemos buscar saber e conhecer as particularidades das palavras dessa escritora, que marca uma fase insólita da literatura nortista. Somos aquilo que lemos e aprendemos, e devemos tornar esse hábito um dogma pessoal de aperfeiçoamento e crescimento.
Ler - e não só assistir - também é um exercício.
Grandes dicas! =)
Olá meu amigo Isaac, parabéns pela postagem, é sempre bom conhecer a história de pessoas inteligentes e batalhadora, principalmente quando é do Acre, nosso estado. De fato as poesias de Glória Peres são belíssimas.
Abraços da amiga que sempre visita seu blog.
Tailândia Belmiro.
Boa noite!
Olá meu amigo!
Eu não conhecia os versos poéticos de Glória! Gostei***
Isaac! Na segunda eu estava no centro procurando alguns artesanatos, e fui em uma lojinha e descobri que é do artista plástico Rivasplata.
Fiquei sem graça, porque eu já tinha ido várias vezes nesse lugar e não sabia que era de Jorge Rivasplata. (acho que o problema é porque as vezes fico muito no meu mundinho - da faculdade pra casa. E passeio pouco pela cidade).
Ah! Eu vou me matricular nas aulas de pintura. Quero muito fazer. E será uma grande honra ter um professor como Ele.
Talvez essa semana ainda eu passe lá no atelier (Rivasplata) para tirar umas fotos.
Amigo! Passei aqui tb para te deixar "Um ABRAÇO"!
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