O número da casa é 427, de certa rua, de
Casimiro de Abreu, mas o que isso tem a ver, quando nada entendo sobre
numerologia? É que o número foi o Braga quem pintou e foi lá que aconteceu um
espetáculo único, com no mínimo cinco horas de duração. Jorge Carlos, Francisco
Braga e eu, ora atuávamos juntos e ora um ou dois subia ao palco. Nós três
trouxemos as recordações que representaram vivências de Fortaleza, Rio Branco,
Xapuri, Maringá, Vila Velha e até o Rio de Janeiro, por conta da peça, “Coisas
do Acre da Velha”. Em nenhum momento faltou ator no palco ou plateia, por isso
foi teatro.
Abriu a cortina e uma tênue luz que crescia,
em gelatinas, de cores criteriosamente selecionadas faziam par ao suave som, da
doce flauta do João Veras. Representamos
lembranças que na maior parte do tempo, concentraram-se no Teatro de Arena do
Sesc/AC. E num revez do tempo, ia-se até
a resistência, do Teatro Horta, do grupo Semente. Tomados pela emoção
como, “Navalha na Carne” trouxemos ao palco recordações de Marília Bonfim e
Ivan de Castela que, naquela noite, receberam o prêmio de melhor atriz e melhor
ator.
O texto improvisado e sem revisão, trazia
muitos nomes como, os dramaturgos João das Neves, Lourdes Ramalho, Lenício
Queiroga… Diretores como, Betho Rocha, Zé Antonio, Kikha Dantas… Atores como,
Bruxinha, Izabel de Castela, Pimentinha, Mário Jorge, o mecânico Milton,
Rogério Curtura, Françoise Pessoa, Lenine Alencar, Socorro Paiva, Sandro
Lustosa... E claro, os Farias - Silene
César, Cícero e Mariana. Os artistas plásticos que também subiram aos
palcos acreanos como Bab Franca, Danilo de S’Acre e Dalmir Ferreira. Na
sonoplastia Elias Junior, Sérgio Souto e Carlos Kawahara, estes também foram
premiados. Dentre os profissionais das artes cênicas foi citado por diversas
vezes o baiano, coreógrafo e fotógrafo, Antonio de Alcântara que dividiu com o
Braga o aluguel de uma casa onde moraram, por cerca de quatro anos, sem nenhuma
relação sentimental, e incrível, sem nenhum aborrecimento entre as partes.
Braga caricaturava lembranças, os riscos e os
rabiscos de punho firme e memória lúcida
pareciam desfiar um novelo de lã, de muitas ovelhas tosquiadas para
vestir o mesmo motivo, o teatro, o que encenamos naquela noite. A memória de
elefante do Jorge Carlos ia trazendo ao palco um número cada vez maior de
profissionais, de um tempo que o teatro exigia além de representar. Eu já
começava a me preocupar com o cachê para tanta gente, mas lembrei, era tudo
grátis.
O relato da construção do texto “Tempo de Solidão”,
escrito por Francisco Braga e Dinho Gonçalves era feito por etapas, a cena
trazia ao palco a experiência de um ano de trabalho dos dois. Por sua atuação no teatro, Dinho Gonçalves, o
palhaço Tenorino recebeu o prêmio por melhor produção.
Podemos afirmar que tudo foi comédia, pois
nossas gargalhadas infringiram a lei do silêncio, obrigando Rosa, da janela,
exalar seu perfume, num pedido suplicante – Falem mais baixo, senão vão
incomodar os vizinhos! Eu e o Jorge quase morremos de vergonha, pois vivemos
criticando quem rompe o silêncio alheio com suas particularidades. Foi pura
distração, talvez porque o espetáculo não era só nosso, o Braga era culpado de
tudo.
Como disse antes, no texto tinha atores,
diretores, músicos, escritores, jornalistas, políticos, poetas, todos invocados
pela nossa memória. Como era na terra do poeta Casimiro de Abreu, outros poetas
compareceram, Augusto dos Anjos com sua obra “Eu”. Drummond aos tropeços com as
pedras de seu caminho que, fez o Jorge ler o “sonito”, poema que escrevemos
juntos e que também é cheio de pedras. Fernando de Castela, porque seus poemas
trazem saudades de sua terra, saudades de seu Ceará. E toda vez que se dava
“brecha”, Jessier Quirino entrava com o refrão – “Isso é cagado e cuspido,
paisagem do interior”.
Muita gente circulou No Palco, naquela noite
de primeiro de novembro. Dia que, para nós,
não foi só de todos os santos, mas também de todos os artistas que nos
vieram à memória. Eles foram lembrados com carinho, até aqueles de difícil
convivência. Não é por ter sido dia de todos os santos, mas não falamos mal de
ninguém… Debaixo dos caracóis dos meus cabelos, a mente agora ferve na
tentativa de lembrar a trupe que participou do Palco e arrancou de nós
gargalhadas. Agora, fora do palco, temo ter esquecido o texto e deixado alguém
fora da lista.
Em cena, entrou também fragmentos
cinematográficos, afinal o Braga atuou numa filmagem, da emissora de TV Al
Jazira, em Xapuri – AC, alguém duvida? Pois não duvide, o Acre é metido à
besta, tudo é possível. Outras cenas arrancaram menos risos, como os
fragmentos do cotidiano jornalístico, passados nos jornais, “O Rio Branco” e o
“Página 20”, no período que fazia os cartunistas, quase perderem a animação,
face ao risco da motosserra que ameaçava qualquer “cheirinho” de denúncia.
Nos entre atos, um suspiro, ah Soraya...
No dia seguinte, dois de novembro, o sol
brilhou de tal forma que nada lembrava o choroso dia dos mortos, pelo
contrário, convidava à caminhada para observar as belezas da Barra do São João,
a praça “As Primaveras”, o Museu que abriga memórias da vida do poeta Casimiro
de Abreu, sua estátua à margem do Rio São João, a Ponte Quebrada e por fim a
Capela de São João Batista, que fica num pequeno morro. Subimos as escadarias
da Capela, em busca de um ângulo para fazer algumas fotos, mas acabamos indo
parar dentro do cemitério que fica muito bem localizado para apreciar a
paisagem, uma morada da qual o Braga disse, não fazer “impem”.
De volta para casa, ao longo da estrada o
silêncio era do cansaço do sol e da saudade do Palco. Para mim e para o Jorge
não resta dúvida, o cartunista Braga é um astro de infinita grandeza. Eu
subirei no palco mil vezes, para contracenar com aquele nordestino talentoso,
cheio de simplicidade e castigado pela “marvada pinga”, a mesma que dá a ele a
alegria de um palhaço no picadeiro.
Vá entender o que é a vida, pra ver se você não fica louco, seu moço...
Vá entender o que é a vida, pra ver se você não fica louco, seu moço...
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