Murilo Mendes (1901-1975)
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam
gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas,
cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a
prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a
Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil-réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de
verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade! p.17
O MENINO SEM PASSADO
Murilo Mendes (1901-1975)
Monstros complicados
não povoaram meus sonhos de criança
porque o Saci-pererê não fazia mal a ninguém
limitando-se moleque a dançar maxixes
desenfreados
no mundo das garotas de madeira
que meu tio habilidoso fazia para mim.
A mãe-d’água só se preocupava
em tomar banhos asseadíssima
na piscina do sítio que não tinha chuveiro.
De noite eu ia no fundo do quintal
pra ver se aparecia um gigante com trezentos
anos
que ia me levar dentro dum surrão,
mas não acreditava nada.
Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas
estou diante do mundo
deitado na rede mole
que todos os países embalançam. p.18
MEU NOVO OLHAR
Murilo Mendes (1901-1975)
Meu novo olhar é o de quem já sabe
Que alegria e ventura não permanecem.
Meu novo olhar é o de quem desvendou os
tempos futuros
E viu neles a separação entre os homens,
O filho contra o pai, a irmã contra o irmão,
o esposo contra a esposa
As igrejas dinamitadas, depois reconstruídas
com maior fervor;
Meu novo olhar é o de quem penetra a massa
E sabe que, depois dela ter obtido pão e
cinema,
Guerreará outra vez para não se entediar.
Meu novo olhar é o de quem observa um casal
belo e forte
E sabe que, sozinhos, se amam os dois com
nojo.
Meu novo olhar é o de quem lúcido vê a
dançarina
Que, para conseguir um movimento gracioso da
perna,
Durante anos sacrificou o resto do seu ser.
Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas
de passagem
E não se detém mais nas ancas, nas nucas e
nas coxas,
Mais se dilata à vista da musa bela e serena.
A que me conduzirá ao amor essencial.
Meu novo olhar é o de quem assistiu à paixão
e morte do Amigo,
Poeta para toda a eternidade segundo a ordem
de Jesus Cristo,
E aquele que mudou a direção do meu olhar;
É o de quem já vê se desenrolar sua própria
paixão e morte,
Esperando a integração do próprio ser
definitivo
Sob olhar fixo e incompreensível de Deus.
p.53-54
MENDES, Murilo. Os
Melhores Poemas de Murilo Mendes. Seleção Luciana Stegagno Picchio. São Paulo:
Global, 1994.
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