sábado, 16 de novembro de 2019

ATURÁ DE RITMOS: Alves de Menezes

Alves de Menezes, médico, poeta e exímio desenhista. Ocupou a cadeira de nº 13 na Academia Acreana de Letras. O livro “Porongo”, de Paulo Bentes, publicado em 1940, é ilustrado por Alves de Menezes. 
Sobre o livro “Aturá de Ritmos”, o jornal O Acre, assim noticiou: “Acabam de surgir à luz da publicidade os livros “Sapupema” e “Aturá de ritmos”, da autoria dos acadêmicos José Potyguara e Alves de Menezes, ocupantes das poltronas n.22, “Juvenal Galeno” e n.13, “Castro Alves”, na Academia Acreana de Letras. [...] “Aturá de Ritmos” é um punhado de versos, lindos pela singeleza e pelo gosto artístico, traduzindo a sensibilidade estética do poeta que os plasmou, cuja musa ainda roreja das águas barrentas dos rios amazônicos, ou traz na retina a visão panorâmica do mundo maravilhoso que pôde contemplar.” (O Acre, Rio Branco-AC, 20 de fevereiro de 1944, Ano XIV, N.734, p.6)
Quanto ao título do livro, “aturá” é um cesto trançado de cipó, também conhecido como jamaxi/jamaxim ou paneiro, muito comum nos seringais. O livro de Alves de Menezes se destaca pela linguagem telúrica, versando exclusivamente sobre temas amazônicos. Os poemas, com exceção de três sonetos, não seguem formas fixas, e registram a vivência do homem amazônico em sua relação com a natureza.



ACAUÃ

Calmo, tristonho, silenciosamente,
o dia morre... O poente, em chamas, arde...
e tornando maior a tristeza que existe
nesse fim melancólico da tarde,
de uma acauã – a ave saudosa e triste –
ouve-se o canto, repetidamente:

– a... cau... ã...
– a... cau... ã...

Em mim há um quadro a este parecido:

Nas minhas horas de silêncio e calma
– horas de sonho e interiorização –
quantas vezes percebo, comovido,
um pôr-do-sol morrendo dentro dalma
e uma acauã cantando: – o coração...



PERIANTÃS

Cheios de garças e jaçanãs,
vão descaindo,
vão descaindo,
sobre as águas,
os verdes periantãs...

Mururés...
Matupás...
Mamoranas...
Canaranas...

Parecem uma esquadra
de verdes navios,
fazendo manobras
no meio dos rios...

Há os que descem velozes,
ligeiros,
na força da correnteza...

e os que ficam rodando,
rodando,
no rodopio dos rebojos...

e outros,
ainda,
que vão andando vagarosamente,
vagarosamente,
na sonolência dos remansos...

Uma tripulação plúmea e canora
de piaçocas, socós e jaçanãs,
viaja no bojo verde
desses periantãs...

Mururés...
Matupás...
Mamoranas...
Canaranas...

São pedaços da roupa verde dos barrancos
que o rio rasgou
quando passou,
atirando os retalhos sobre as águas...



CASA DE CABOCLO

Casinha de palha,
de pernas de pau,
de pés atolados
à beira do rio,
tão pobre, tão feia, tão frágil,
– quem diz
que assim como é
é boa e feliz?

Da cor, quando é nova,
do mato da mata,
é verde,
tão verde,
que a gente, de longe,
olhando a fachada,
confunde-a com a selva
que fica atrás dela,
sombria,
fechada...

Depois, envelhece,
e vai desbotando,
ficando tostada,
queimada,
amarela...

Do lado de dentro
da feia casinha:
a sala,
dois quartos,
e, atrás, a cozinha...

Suspensos nos pregos
das finas paredes,
o rifle,
o arpão,
tarrafas e redes...

Na porta, um cachorro,
de orelhas caídas,
acuando, com medo
da “chata” que passa,
fazendo banzeiro,
botando fumaça...

Em volta da casa
galinhas ciscando,
e porcos,
e porcas,
fuçando,
fuçando...

Atrás, no girau,
faiscantes, ao sol,
montões de caroços
de milho e cacau...

No oitão, o roçado,
verdinho,
verdinho,
com milho,
maniva,
quiabo,
feijão...

Do lado do tacho
a velha engenhoca,
rangendo,
rangindo,
moendo
mandioca...

Tomando na cuia
tipuca e farinha,
e ao fogo fritando
um tucunaré,
nos fundos da casa
rodeada de mato,
cutuba,
cabocla,
cantando,
cozinha...

Caboclo deitado
em leve maqueira,
assiste brincar
por entre os capins,
descalça,
despida,
queimada,
buchuda,
à prole comprida
de uns curumins...

casinha de palha,
de pernas de pau,
de pés atolados
à beira do rio,
tão pobre, tão feia, tão frágil,
– quem diz
que assim como é
é boa e feliz?



PEITÍCA

Já tarde da noite
nos ermos da mata
a triste peitíca
seu canto desata:

– Pei... tíca...
– Pei... tíca...

Na velha maloca
do velho Tauri,
que é toda tapada
de palhas de ubim,
cunhã Iaci
está se acabando
com o corpo queimando
de febre ruim...

Nos ermos da mata,
de novo, a peitíca,
seu canto desata:

– Pei... tíca...
– Pei... tíca...

Não valem de nada
o olho-de-boto,
as rezas, as ervas
e as muiraquitãs
que estão escondidos
na cuia pitinga,
e têm o poder
de males curar
e até de cortar
quebranto e mandinga...

Nos ermos da mata,
de novo, a peitíca,
seu canto desata:

– Pei... tíca...
– Pei... tíca...

Em vão, os pajés,
batendo com os pés
no chão do terreiro,
batendo com as mãos
nas penas da tanga,
rodando, pulando,
gingando, rezando,
fazendo magia,
fazendo puçanga,
invocam das sombras
do oco do mundo
as forças divinas
dos bichos do fundo...

A linda cunhã
Sucumbe, se acaba...
Ai! vai para a taba
Azul de Tupã...

Nos ermos da mata,
assim que a tapuia
panema, fenece,
tal qual como um encanto
da triste peitíca
o lúgubre canto
emudece...

Quiriri...

Quiriri...

Escuridão...



CAMINHOZINHO DE SÍTIO

Tão longo,
tão estreito,
tão tortuoso,
deitado na distância
como se fosse enorme serpentina
toda desenrolada sobre a terra,
lá se vai o caminhozinho fino
feito de mato pisado...

Vem de longe,
bem de longe,
traçando retas e curvas
pelo chão...

A seu lado
desdobram-se campos
verdes
bonitos
cheios de gado
pastando...
e há pés de açaí
de cachos escuros
pingando na relva
pingando
pingando
os frutos maduros...

Ninguém fez por querer esse caminhozinho fino
magro
estreito
tortuoso
todo de mato pisado...

Tanta gente
por acaso
andou pra-lá
andou pra-cá
pisando o capim
no mesmo lugar
que um dia, quando se viu,
lá estava o caminhozinho
todo pronto
todo feito
como uma tatuagem
no peito da terra...

Nas léguas do seu tamanho
estica-se, fininho, pelos campos,
zig-zagueia pelos bananais,
empina-se na corcunda dos barrancos,
rompe o silêncio dos cacauais sombrios,
passa por baixo de porteiras velhas,
entra em quintais alheios,
alarga-se nos terreiros das palhoças,
estreita-se, outra vez, mais adiante,
e segue,
e continua,
o seu destino...
..................................................................
esse destino triste e muito humano
de servir, de ser útil, de ser bom,
e pelo bem dos outros praticado
receber tão somente a recompensa
de ser pisado...



PESCARIA

Atento, calado, imóvel, na proa
da leve canoa
que, leve, flutua,
no lago sarú,
caoboclo vigia passar sob as águas
o lombo lustroso
do pirarucu...

(...Em derredor,
     o quiriri
     é tão profundo,
     que até a zoada
     do voo das cabas
     se escuta...)

De repente, estremecendo
um tupé de matupás,
no sossego da restinga
a água mansa
siriringa...

– É ele!

Então, naquela
direção
o pescador
sacode o arpão

Vup!

No fundo do lago,
o peixe arpoado
esguicha,
pinota,
volteia,
rabeia,
e sai na carreira
puxando a canoa
que em cima das águas
de tanto correr
parece que voa...

– Tá preso, danado!...

Na direção
em que ele vai,
uma porção
de bolhas de ar
das águas sai:

Búlúlú...
Búlúlú...
Bólócóbó...



ALAGAÇÃO

Um rumor de águas revoltas
rola
pela planície...

É o coração do rio, descompensado,
dilatando as aurículas profundas
na diástole da enchente...

As águas,
em correrias,
extravasam das veias fluviais
e se derramam,
túrgidas,
nas várzeas...

Só as terras firmes
ficam de cabeça de fora,
olhando tudo...

– Olhando o lençol sujo das águas
embrulhando os bosques
os prados
as campinas...

– Olhando a correnteza
carregando nas costas os troncos desfolhados
das árvores velhas
que a terra-caída sacudiu dentro dágua
e que parecem
também
nesse descer
tão vagaroso
um cansado rebanho a seguir lentamente
lentamente
seguindo o aboio uivante do vento
que os vai tangendo
rio afora
como um pastor...

Um rumor de águas revoltas
rola
pela planície...

É a alagação...

Nos barrancos naufragados
as casinhas dos caboclos
de água pelos joelhos
parecem esquisitas banhistas
vestidas de palha
entrando no rio
tremendo de frio...

O gado,
em jejum,
nas marombas,
alonga o olhar em derredor
olhando o rio,
o rio
cheio,
o rio,
que passa
turbulento,
despótico,
arbitrário,
levando no roldão das águas piriricas
roçados,
plantações,
esteiras de capins,
toda a roupagem agreste dos barrancos,
todo o ornamento vegetal das margens...
Um rumor de águas revoltas,
rola
pela planície...
É a alagação...



GARÇAS

Vi-as, ao albor do dia, uma após uma,
fugir da árvore seca onde dormiram,
e seguirem,
alvíssimas,
pelo ar,
cada qual sobre as asas carregando
os laivos da áurea cor
que o sol,
nascendo,
em tudo ia jogando,
num crescendo de luz e de esplendor...

Vi-as, depois, na solidão dos lagos,
algodoando os capinzais flutuantes...
Umas, revoavam... Outras, terraplanando,
vinham chegando de regiões distantes...
E as que, de cima das vitórias-régias,
abriam o voo, sob o sol que estiola,
tinham vida, leveza e graça tanta
que pareciam a própria flor da planta
desabrochando a olímpica carola...

Ah! Mas a hora em que elas mais tocaram
esta minh’alma e este meu coração
foi,
quando,
ao por do sol,
vi-as passando, trêmulas e tristes,
pelos longes tranquilos da amplidão,
como se fossem as brancas mãos da tarde
fazendo: adeus!... adeus!... à luz do dia
que na fímbria incendiada do poente,
serenamente,
melancolicamente,
morria...



LUA CHEIA

Noite branca
muito branca
de luar...

As formigas de fogo das estrelas
de olhinhos vivos
acesos
cintilando
cintilando
no céu...

Cá em baixo,
tudo tão claro,
como dia.

As sombras das árvores
deitadas,
sonhando,
sobre as águas dos rios...
As águas dos rios sonhando também
no sossego
dos remansos...

As galinhas trepadas nos poleiros...

Os paturis acomodados nas covinhas rasas
cavadas na terra fofa
dos terreiros
iluminados...

O engenho “S. Geraldo”
lá-longe
velho
cansado
calado...

Silêncio...

Somente as gias e a rãs,
coaxando
coaxando
à beira dos peraus...

e uma ou outra monótona peitica
piando
piando
pelos ocos dos paus...

Noite branca
muito branca
de luar...

A lua,
redonda,
no céu,
parece uma Vitória Régia de luz
boiando num lago azul...



O GAIOLA

Um novelo volátil de fumaça
torce espirais
lá no horizonte...

É um gaiola
que aponta.

Cabocla, que está na beira do rio,
batendo roupa no cedro,
grita, pra cima da ribanceira:
– Amâncio! Juvêncio! Antônia! Maria!
   Anda cá, minha gente! O gaiola vai passar!

E o gaiola vem andando,
vem andando,
vem andando,
doiradas montanhas dágua
na proa se veem formando...

– Depressa, gente, depressa,
   quele vem mas é puxado!...

E o gaiola vem andando,
vem a toda,
vem ligeiro,
dando surra nos barrancos
com os chicotes do banzeiro...

– Puxa a canúa pra terra, Juvêncio!
   Olha quêle vem bem pela beira!

E o gaiola vem andando,
vem crescendo,
vem chegando,
lenha, bichos, gente, tudo
no costado carregando...

– Suco, meu mano, vem mas é carregado!
   Chega vem enterrado nágua!

Passa
enfim
pelo porto...

Desata
o grito
do apito:

Pí... iiiii...

Pí... iiiii....

Os caboclos, na margem, tomam um susto...
Os cães fogem, latindo apavorados...
As canaranas se remexem todas
na sinuosidade do banzeiro...

– Êta, bichão bonito!
   Isso é que é cortar água!

E o gaiola vai passando,
vai passando,
vai passando,
espúmea esteira doirada
atrás da popa deixando...

– Adeus! – Adeus!
– Feliz viagem!
– Nossa Senhora dos Navegantes que te acompanhe!

E o gaiola vai passando,
vai andando,
vai seguindo,
vai seguindo e vai também
diminuindo de tamanho
diminuindo
               diminuindo
                              diminuindo
até a esponja branca da distância
apagá-la na lousa do horizonte...



CANOA VELHA

Canoa velha,
descalafetada,
toda quebrada,
jogada à baira
da ribanceira...

Canoa velha
que em outros tempos
subindo os rios
de longes curvas,
ias ligeira
como um corcel,
ao sol queimante
soltando as crinas
crespas e turvas
da água cantante...

Canoa velha,
cheia de fama,
como é tristonho
te ver assim,
apodrecendo
dentro da lama...

Com que arrojos
te vi outrora
vencendo a força
da correnteza
na faina heroica
da travessia,
e, destemida,
de proa erguida
jogar a vida
de encontro à fúria
das pororocas
e ventanias...

Quantas vezes, alta noite,
sentado no meu barranco,
olhando o luar,
muito branco
nas águas mansas boiando,
eu via o teu vulto esguio
passando calmo,
passando
lá pelo meio do rio...

Chuá...
Chuá...
Escutava:

Era a cantiga que o remo
batendo nágua, cantava,
contente, porque, talvez,
com teu caboclo na proa
de longe, mais uma vez
serena
tu regressavas...

Mas um dia... (há sempre um dia
na Vida, que é de agonia!...)
o rebojo te pegou
e no túmulo nas águas
o teu casco sepultou...

Desde aí, canoa velha,
nunca mais alguém te viu
subir pelos estirões
de longes e quietas curvas
soltando de um lado e do outro
da proa chata e arrogante
as crinas crespas e turvas
da água doirada e cantante....

Nunca mais alguém te viu
senão quando o rio secou,
e te puxaram pra terra,
e te deixaram estendida,
na beira da ribanceira,
jogada,
morta,
esquecida...



A BOIÚNA

Da lua nem sombra na cuia do céu...
Só treva e silêncio na noite sem lua...
Pois é nessas noites assim que a Mãe-dágua
no meio do rio,
enorme,
flutua...
..........................................................................

– Achi!... Achi!... Que pitiú!...
Será ela? Mau-sinal!...
Manéu Freire
pega o laço,
bota o gado
no curral,
depressa, home de Deus,
não perde mais tempo, não,
quessa bicha tem mania
de dar cabo da criação...

Contou-me o velho Torquato,
que a tal danada já viu,
que ela possui o formato
igualzinho ao de um navio...

Tem casco, tolda, bueiro,
Farol na popa e na proa,
e apita que nem gaiola
pedindo lenha ou canoa...

Ai, porém, do desgraçado
que, pela noite calada,
for atender ao chamado
desse macabro navio:
chega junto... não vê nada...
ouve, apenas, um assobio,
ao som do qual, num rebojo,
some-se na água do rio...
.............................................
Da lua nem sombra na cuia do céu....
Só treva e silêncio na noite sem lua...
Pois é nessas noites assim que a Mãe-dágua
no meio do rio,
enorme,
flutua...



APUÍ

Apuí,
Apuí,
que nos ermos soturnos da floresta
mataste o urucuzeiro,
o urucuzeiro que te foi tão bom,
que te deu a mão,
que te deu a seiva,
que te deu a vida,
e que te balançou
na rede verde
das suas ramagens,
à cuja sombra perfumada e boa
cresceste
e floresceste,
ouvindo o canto lírico dos pássaros
e o bárbaro clamor das pocemas selvagens!...

O urucuzeiro foi tão teu amigo
Apuí,
Apuí...

Essa copa triunfal que hoje ostentas ao sol,
toda cheia de alegres passarinhos,
e onde o vento sacode os turíbulos rústicos
dos ninhos,
incensando de sons
o espesso matagal,
tudo, enfim, que possuis,
e que exibes à luz
clara,
e quente,
e fecunda,
do sol tropical,
tudo,
Apuí,
deves ao urucuzeiro,
ao urucuzeiro que te foi tão bom,
ó Apuí sem alma!
ó Apuí traiçoeiro!
Apuí!
És um símbolo
Apuí!

Como tu,
quanta gente,
quanta gente,
há por aí...


O ENTARDECER NA AMAZÔNIA

Tarde. Há no poente um clarão de batalha.
Uma auréola vulcânica, incendida,
Debrua de ouro as nuvens, à medida
Que o sol apaga a rútila medalha.

Sob a tenda celeste colorida
A Amazônia, sonhando, se agasalha
Entre as dobras da sombra que se espalha
Pela luz do crepúsculo tingida.

Do céu, pelas planuras descobertas,
Como lírios de pétalas abertas,
Veem as últimas garças, vagarosas...

Por fim, o sol, mortiço, em áureas fráguas
Cai sobre o rio recobrindo as águas
De trêmulas escamas luminosas...


MENEZES, Alves de. Aturá de Ritmos. Rio de Janeiro: ALBA, 1943.
p.s. o livro não contém paginação. As ilustrações são do próprio Alves de Menezes, presentes em "Aturá de Ritmos".

Nenhum comentário: