Durante muito
tempo, a historiografia se limitou a encarar as populações indígenas como
vítimas passivas ou meros espectadores de situações que os envolviam
diretamente. Quando muito, reagiam à interferência e aos agravos da sociedade
envolvente, mas nunca dispondo de estratégias de ação conscientes. Os índios,
concebidos como uma categoria genérica, sem qualquer consideração às diferenças
étnicas e culturais, não eram vistos, portanto, como sujeitos históricos ativos
e capazes de incidir sobre a realidade nas quais se inseriam. Esse quadro
começou a mudar a partir da emergência de uma nova compreensão histórica a
respeito dos povos nativos. A “Nova História Indígena”, como viria a ser
chamada, teria como principal objetivo redimensionar o papel dos índios na
História, recuperando o protagonismo dos mesmos.
No que se refere ao
surgimento deste novo viés, dois pontos fundamentais devem ser considerados. O
primeiro está relacionado à aproximação entre a História e a Antropologia: cada
vez mais intensa desde fins da década de 1970, o diálogo entre elas incidiu
significativamente sobre essa perspectiva, uma vez que a combinação de
renovados pressupostos teórico-metodológicos das duas disciplinas expandiria
significativamente os horizontes de análise histórica. Nesse sentido, a
compreensão tanto da cultura, quanto da identidade étnica como produtos
históricos, somada a uma maior atenção da História às vivências e experiências
das pessoas comuns, com grande influência da história social inglesa, foram
decisivas. Tal confluência possibilitou um olhar sobre os índios que contempla
tanto a sua diversidade étnica e cultural, quanto o papel de sujeitos de sua
própria história. Além disso, a questão indígena na contemporaneidade também
influenciou essa nova reflexão. O crescimento demográfico das populações
nativas e a atuação cada vez maior dos movimentos indígenas na segunda metade
do século XX contrariavam veementemente o discurso de desaparecimento e
extinção. No Brasil, a atuação do movimento a partir da década de 1970
reflete-se nos direitos obtidos através da Constituição de 1988. Dessa maneira,
novas observações sobre o passado puderam ser pensadas a partir de
questionamentos do presente.
1) CUNHA, Manuela
Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.
No que diz respeito
à emergência de uma nova compreensão histórica dos povos nativos, o livro
organizado por Manuela Carneiro da Cunha, “História dos Índios no Brasil”, é de
suma importância. Publicado em 1992, o livro contou com artigos de diversos
especialistas no assunto, contemplando variados aspectos ao longo do espaço e
do tempo. Esse trabalho teve papel fundamental ao apresentar e sistematizar de
forma clara e objetiva uma nova postura – que já vinha sendo esboçada nos anos
anteriores – em relação aos índios, reconhecendo os mesmos enquanto agentes
históricos. Propondo a inclusão dos índios na historiografia e rompendo com uma
visão tradicional que enfatizava a passividade dos povos indígenas frente aos
processos de Conquista e expansão empreendidos pelos europeus, a coletânea
representou um marco quanto ao assunto, tendo inspirado diversos estudos
específicos nesta mesma linha e contribuído decisivamente para difundir a
referida perspectiva.
2) FARAGE, Nádia.
As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
Com o foco no
processo de colonização da região amazônica, Farage realiza um excelente
trabalho ao situar o Rio Branco nas intensas disputas territoriais que
envolveram portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses. Contudo, o grande
mérito da autora é considerar o papel e a participação dos indígenas entre os
diferentes agentes sociais envolvidos na contenda. Em particular, convém
destacar que o estudo de Farage foi inovador ao demonstrar que a aplicação do
Diretório, legislação que equiparou juridicamente os indígenas aos demais
súditos portugueses, foi diretamente influenciada pela ação dos índios. Com a
atenção voltada para as comunidades indígenas de fronteira no norte da América
portuguesa, a autora ressalta que a transferência destas comunidades para
compor núcleos populacionais previstos pela lei, que iriam compor verdadeiras
muralhas nesta região de fronteira, dependia da negociação com os grupos locais
na figura das lideranças indígenas. Dessa forma, Farage, considerando o
protagonismo indígena, revela que a dinâmica de aplicação não se resumiu ao que
as autoridades metropolitanas almejavam, mas também aos interesses dos próprios
indígenas.
3) MONTEIRO, John
Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Dentre os trabalhos
publicados na década de 1990 que renovaram os estudos a respeito da História
Indígena e que a abordaram a partir de recortes específicos, há de se destacar
este grande estudo de John Monteiro. Em tal obra, que se tornou rapidamente uma
importante referência, o autor atenta de forma pioneira para a articulação
entre as bandeiras e a produção agrícola de São Paulo, pontuando que era a mão
de obra escrava indígena, adquirida através dos apresamentos, das guerras
movidas contra os nativos e também dos descimentos, que viabilizava a
agricultura paulista. A contribuição mais importante de seu livro, porém, é o
destaque dado ao processo de inserção dos indígenas na sociedade paulista, que
variou da escravidão à condição de índios administrados. Ao fazer isso, John
Monteiro deixou claro que os índios foram parte fundamental da formação
sociocultural de São Paulo.
4) VAINFAS, Ronaldo.
A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
Nesta célebre obra
de Ronaldo Vainfas, o diálogo com uma perspectiva que prima pelos intercâmbios
culturais se faz evidente. Ao analisar o movimento religioso da Santidade de
Jaguaripe, ocorrida na Bahia da segunda metade do século XVI, o autor atenta
para a clara mistura entre os rituais nativos e os elementos do catolicismo
reconstruídos à luz do colonialismo, denotando, então, o hibridismo cultural
característico da Santidade, que contava com o apoio de um senhor de engenho
local. Indo além, Vainfas chama a atenção para a notável circularidade
referente às crenças de tal movimento, que contou com a adesão não apenas de
índios, mas igualmente de mamelucos, negros e até de brancos, tendo incidido
significativamente sobre a religiosidade popular do Recôncavo baiano
quinhentista. Destacando também a fluidez das fronteiras culturais nesse
contexto, que coincidia com a fluidez da própria colonização, Vainfas tem ainda
o grande mérito de recuperar o caráter de resistência de tal movimento, uma vez
que a Santidade de Jaguaripe representava a busca por uma identidade indígena
que, paulatinamente, via-se atacada pelo avanço da colonização portuguesa.
5) ALMEIDA, Maria
Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias
coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
Em relação ao
período colonial, um aspecto que mereceu grande destaque da Nova História
Indígena diz respeito aos aldeamentos. Inserida nesta vertente historiográfica,
Maria Regina Celestino de Almeida trouxe à tona uma perspectiva que foi um
verdadeiro marco na abordagem a respeito dos aldeamentos indígenas.
Reconhecendo os índios enquanto sujeitos históricos, Almeida ressaltou que as
aldeias, para além de atender aos interesses e às expectativas da Coroa, dos
missionários ou dos colonos, também tiveram um relevante significado para os
índios. Recorrendo ao conceito de territorialização, inicialmente utilizado por
João Pacheco de Oliveira e que é crucial em “Metamorfoses Indígenas”, Almeida
destaca que os aldeamentos foram apropriados pelos índios como um espaço de
proteção e de sobrevivência, evidenciando a participação ativa dos mesmos. Indo
além, a autora reflete sobre a importância que os aldeamentos assumiram para os
índios no contexto da colonização, concluindo que, diante de um mundo colonial
que se construía de forma cada vez mais hostil em relação aos indígenas que não
eram aliados dos portugueses, tais espaços representavam um “mal menor”, já que
na condição de aldeados eles ao menos estariam livres da escravidão e garantiam
acesso a alguns direitos, como o da terra coletiva. Assim sendo, mais do que um
local de imposição e de aculturação, os aldeamentos constituíram importantes
espaços de socialização, de modo que, ao reunir diferentes indivíduos e etnias
que se misturaram no seu interior, elas propiciaram a rearticulação étnica,
cultural e social dos índios aldeados. Partindo desta linha de raciocínio, a
autora pondera que, em longo prazo, a vivência compartilhada no interior desses
aldeamentos conduziu a um sentimento de pertença comum e de solidariedade entre
os índios que lá viviam.
6) POMPA, Cristina.
Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial. Bauru:
Edusc, 2003.
Criticando a
dicotomia que opõe de um lado a imposição dos missionários e de outro, os
índios, vistos como um conjunto homogêneo e passivo, Cristina Pompa defende a
perspectiva de que o processo de evangelização na América portuguesa levado a
cabo nos aldeamentos foi, antes de tudo, fruto da mediação constante entre os
religiosos e os próprios indígenas. Isso resultou, segundo Pompa, em traduções
mútuas, influindo diretamente tanto sobre a ação missionária – que passou a se
preocupar em adaptar e traduzir o cristianismo para a linguagem nativa,
convertendo os ensinamentos e símbolos cristãos de acordo com as concepções e
os mitos indígenas – quanto sobre a recepção dos nativos a essa evangelização,
que em muitos casos aceitaram essas traduções, mas apreendiam as mesmas à sua
maneira e dentro de seus próprios termos. Com este ponto de vista, a autora
permite perceber as interações religiosas como um processo dinâmico no qual o
indivíduo, mais do que simplesmente assimilar uma dada cultura ou crença, a
interpreta e a reconstrói mediante os seus próprios valores e referenciais.
Assim, ao considerar as múltiplas e diferentes traduções propiciadas a partir
dos intercâmbios culturais e religiosos, Cristina Pompa recuperou o
protagonismo indígena neste processo, evidenciando a existência de uma
interação dialógica e passível de adaptações no interior dos aldeamentos.
7) CORRÊA, Luís
Rafael Araújo. Feitiço caboclo: um índio mandingueiro condenado pela
Inquisição. Jundiaí: Paco Editorial, 2018.
O autor recupera a
vida do índio Miguel Pestana, condenado pela Inquisição portuguesa sob a
acusação de feitiçaria na primeira metade do século XVIII. Utilizando a
trajetória de Pestana como fio condutor, Corrêa analisa a formação religiosa
deste indivíduo, que viveu boa parte de sua vida na aldeia jesuítica de
Reritiba, no Espírito Santo. Atento à complexa relação mantida entre missionários
e índios aldeados, o historiador ressalta as diversas interações sociais
tecidas por Miguel Pestana com o mundo colonial, fato que leva o índio a
questionar a disciplina regrada dos jesuítas e a ter contato com diversas
práticas mágico-religiosas desviantes. A relação conturbada com os padres
motiva Miguel a fugir de Reritiba e rumar para o Rio de Janeiro, onde
transforma a sua vida: nas freguesias do Recôncavo da Guanabara, o índio ganha
a confiança dos senhores locais e torna-se capitão do mato, alcançando uma
posição social diferenciada em meio à hierarquia colonial. Em sua vida
cotidiana, porém, as erronias perante à Igreja Católica se aprofundam: ele
torna-se um afamado usuário de bolsas de mandinga, vendendo artigos mágicos aos
que procuravam por sorte e proteção. Contudo, tendo atraído mais atenção do que
devia, acaba preso pela Inquisição. Remontando o julgamento do índio, o autor
traz à tona os meandros do processo e as insistentes estratégias do réu a fim
de evitar sua condenação. Além de refletir sobre diversos aspectos pertinentes
à religiosidade e à história indígena, a obra reflete a respeito da ação
inquisitorial em relação aos indígenas, tema pouco estudado até hoje.
8) DOMINGUES,
Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no
Norte do Brasil na segunda metade do séc. XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000.
Nesta obra,
Domingues analisa a sociedade resultante na região amazônica a partir da
aplicação do Diretório dos Índios. A legislação, de claro cunho assimilacionista
e que visava integrar os índios como súditos indistintos aos demais, era parte
do projeto que a administração pombalina tinha em relação à Amazônia.
Analisando os desdobramentos da mesma, a autora teve um papel importante ao
destacar que as pretensões metropolitanas e a realidade nem sempre caminharam
juntas. E este descompasso devia-se em grande parte à atuação dos próprios
indígenas, que ao invés de meros objetos da dita política, incidiram
diretamente sobre os seus rumos ao participarem da administração das vilas de
índios criadas para civilizar os nativos ou por resistirem aos pressupostos
assimilacionistas.
9) SPOSITO,
Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado
nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São
Paulo: Alameda, 2012.
O livro de Fernanda
Sposito tem o grande mérito de refletir sobre um período que só recentemente
vem recebendo maior atenção da Nova História Indígena: o Brasil Império. Ao
analisar a política indigenista imperial, a autora relaciona com argúcia como
ela foi construída dentro de um contexto no qual o próprio Estado e a nação
brasileira estavam em formação. Ainda do ponto de vista político, Sposito
contribui para a discussão em torno da cidadania no período imperial, atentando
para o fato de que a Constituição de 1824 não fez menção aos índios em momento
algum do texto, negando qualquer direito aos mesmos. Se por um lado os índios
foram excluídos de participar dos rumos do país recém-independente, fazendo
justiça ao título do livro, por outro não puderam ser apagados da História:
tomando como exemplo os conflitos motivados pelo avanço das fronteiras da
província de São Paulo em direção aos territórios indígenas do interior, a
autora demonstra a ação e resistência dos índios neste contexto, deixando claro
então que eles eram agentes sociais relevantes.
10) MATTOS, Izabel
Missagia de. Civilização e Revolta: os Botocudos e a catequese na Província de
Minas. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
Amparada em uma
farta e rica documentação, a autora realiza um excelente trabalho ao recuperar
a história dos diferentes grupos indígenas que foram genericamente denominados
botocudos pelos colonizadores. Concentrados principalmente em Minas Gerais,
estas populações foram atingidas pela marcha civilizadora imposta tanto pela
política colonial, quanto pela imperial, tendo sido a última ainda mais
intensa. Interessada particularmente pela realidade vivida por estas populações
no século XIX, a autora demonstra habilmente como as intervenções promovidas pelos
governos provincial e imperial resultaram na sujeição e na desterritorialização
dos índios. Diretamente atingidos pelo Regulamento das Missões (1845), pela Lei
de Terras (1850) e pela Companhia do Mucuri, órgão provincial responsável pelas
ações empreendidas em relação aos índios, Mattos demonstra os múltiplos
processos de mestiçagem vivenciados pelos botocudos no interior dos aldeamentos
dirigidos pelos missionários capuchinhos. No entanto, ao trazer à tona a
revolta indígena ocorrida no aldeamento de Itambacuri em 1893, a autora denota
de forma acurada que este processo complexo e violento não anulou a atuação dos
índios em prol de seus interesses.
11) WITTMANN, Luísa
Tombini. O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no Vale do
Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.
A partir do século
XIX, o avanço da propriedade privada sobre as terras indígenas ganha contornos
cada vez mais dramáticos e violentos no Brasil. E no Vale do Itajaí, em Santa
Catarina, esta situação foi particularmente intensa. Focando sua análise nos
índios Xokleng que viviam em tal região, Wittmann realiza um trabalho muito
competente ao trazer à tona os conflitos que se deram entre os indígenas e os
imigrantes alemães, que chegaram ao local com o apoio do governo imperial.
Consideradas devolutas apesar da ocupação indígena ancestral, as terras do Vale
do Itajaí foram palco de forte perseguição aos Xokleng, considerados pelo
governo da província catarinense e pela imprensa local como selvagens ou um
entrave para a modernidade. Para além do conflito, a autora contribuiu de forma
decisiva ao recuperar a trajetória de indígenas que viveram nesta realidade e
tiveram suas vidas reviradas. Transcendendo os marcos do período imperial,
Wittmann analisa ainda a atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), já na
Primeira República, em relação aos Xokleng, contemplando uma época ainda pouco
estudada pela historiografia. Por fim, a obra tem grande valor ao retirar da
invisibilidade os índios Xokleng, dando o devido lugar que possuem na História.
12) VALENTE,
Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na
ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Ainda pouquíssimo
explorado pela História Indígena, o período em que vigorou a ditadura
cívico-militar é abordado por Rubens Valente em sua obra. Recuperando o
contexto da época, o autor articula uma volumosa documentação oficial referente
à política indigenista com depoimentos de índios. Destacando a atuação dos
diferentes agentes da política levada a cabo pelo governo brasileiro em relação
aos indígenas, o que incluía militares, missionários e servidores da Funai,
Valente evidencia a violência sofrida pelas populações nativas e a resistência
indígena em mais um capítulo dramático de suas histórias.
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