Antônio era um vaqueiro muito estimado por quantos o conheciam, por seu espírito alegre, gozador, contador de bravatas.
Seus 28 anos vividos sadiamente, seus cabelos pretos encaracolados esvoaçando ao vento, o chapéu de palha caído para trás, seguro por um cordão de envira trançada, galopando em seu cavalo branco com manchas amareladas, rodando o laço alegremente no ar enquanto cercava a rês fugitiva, mais parecia um garotão de apenas 18 anos.
Assim corria ele os campos e colinas, cantando com voz doce belas modinhas que ele próprio improvisava ao violão, sentado na soleira da porta, enquanto a lua derramava seu luar de prata no terreiro de areia branca varrido a vassoura.
Mas Antônio não era só o vaqueiro tocador de violão, gostava de contar bravatas em que sempre era ele o herói.
Também gostava de fazer chulas para cantar nas reuniões, embaixo do barracão, envolvendo segredos, namoros e as derrotas dos companheiros, o que era motivo da gargalhadas para uns e de contrariedades para outros. Mas Antônio nunca brigava nem aceitava provocação de ninguém – “Somos amigos e só estava brincando, companheiro” – e assim passava a contar suas próprias derrotas fazendo-os rir também às suas custas:
– Certa vez, numa festa de ramada, briguei com dez por causa de uma caboca, a mais bonita e cobiçada do lugar, e terminei saindo com ela para dexá em casa. Quando nós estava conversando de baixo do pé de árvore, fui surpreendido pela mãe dela que, com um tição aceso, me botou pra correr, levando nas costa do paletó de linho branco as marca do carvão.
Sempre terminava assim as brincadeiras de Antônio, e o companheirismo continuava sem ressentimentos. Até as crianças da Casa Grande corriam para o alpendre quando escutavam ao longe sua voz, ao cair da tarde, recolhendo a boiada para os currais, porque sempre em sua garupa vinha uma prenda para elas. Quando não era um ninho de passarinho com seus filhotes, eram frutos silvestres ou mesmo flores do campo. Depois, a pedido delas, jogava para o ar o chapéu de palha já um tanto surrado, saía galopando atrás, disputando-o com o vento, até apanhá-lo no chão à moda das Amazonas, pendurado do lado do cavalo que a tudo se prestava, parecendo entendê-lo. E seu riso fazia-se largo, quando escutava as palminhas das crianças.
Nessa tarde, porém, o destino preparava uma surpresa, tanto para ele como para elas, que ouvindo sua voz ainda longe, correram para a varanda. Mas faltava algo na voz de Antônio nesta tarde. Talvez o tremor provocado pelo galope do cavalo, porque ele chegava a pé e trazia nos braços alguma coisa que segurava como se carregasse uma criança...
Já há alguns meses uma vaca coberta fugira para as colinas e nunca mais voltou para o curral, o que fez com que todos os vaqueiros se empenhassem em procurá-la. Em vão.
Mas nesse dia, justamente nesse dia, Antônio completava 28 anos e o barracão embandeirado com ramos de palmeiras e flores do campo, amarrados nos esteios e o chão recoberto de folhas verdes, se preparava para festejar a data.
A panela com mingau de arroz cozido no leite de vaca e os garrafões de tarubá, esperavam as famílias dos vaqueiros, que já começavam a chegar, trazendo as cunhantãs vestidas de chita, enfeitadas de fitas e rendas, os cabelos luzidios cheirando a óleo de mutamba e cumaru de mistura com o perfume dos jasmins que traziam presos na cintura ou no decote do vestido.
As cigarras já espalhavam no ar da tarde o ciu-ciu-ciu com que saldavam a hora do Ângelus, quando o sol já sumia por trás das colinas refletindo os últimos raios dourados nas águas do lago.
E foi nesse momento que o tropel de um animal abafou o ciciar das cigarras e substituiu a cantiga de Antônio por um brado de horror saído com estertor, de sua garganta, enquanto um corpo era projetado no ar e atirado à distância para ser novamente suspenso no chifre de uma vaca amarelada, que o sacolejava, para arremessá-lo de encontro a um tronco de árvore. E já se preparava para levantar novamente nos chifres aquele corpo inerte e ensanguentado, cavando o chão com as patas, jogando para traz aquela porção de areia, quando dois tiros de rifle vindos de pontos diferentes do barracão, a prostraram no chão para nunca mais se levantar.
Antônio, nessa manhã, vira a vaca amontada, com os chifres cheios de cipó e ervas daninhas e saiu em sua perseguição com o laço pronto para derrubá-la, e tanto nisso se empenhou, subindo e descendo montes e colinas, saltando troncos caídos e espinheiros, que seu cavalo passou a mancar, com as patas crivadas de espinhos, o que fez com que ele o libertasse da cela e dos freios, dando-lhe uma palmada nas ancas, deixando-o voltar só para o barracão, seguindo ele para o campo à procura da cria, pois viu que a vaca já não estava prenhe e que tinha as tetas cheias de leite.
Depois de procurá-la todo o dia, avistou-a à sombra de uma árvore frondosa sobre uma touceira de capim.
Com os olhos radiantes de alegria e não vendo a vaca nas proximidades, tomou nos braços aquela bezerrinha alva, de olhar doce como uma criança, e tratou de se pôr a caminho de casa, cantando uma canção dolente como um acalanto, pensando no presente que ia dar nesta tarde para as crianças.
Mas, diz a sabedoria popular, o que o homem põe, Deus dispõe. E foi isso que aconteceu a Antônio, nesse cair de tarde, que deveria ser para ele o mais alegre de toda a sua vida.
Como toda cria que se sente afastada do colo materno, a bezerrinha pôs-se a berrar, berrar, e Antônio encostou-se na cajuraneira à beira do lago, enrolou com uma das mãos a beira da calça, entrando na água aproximou o focinho da bezerrinha para que bebesse um pouco; e tão embevecido estava que não ouviu o tropel da vaca amarelada, que o apanhou de surpresa enfiando-lhe os chifres pelas costas atirando-o de encontro a cajuraneira .
Do barracão da ramada, que fora preparado para a festa em homenagem ao aniversariante, foram tirados o tarubá, a panela com o mingau de arroz, os violões e rabecas, sendo substituídos pelos terços, pelo choro convulso e pelo café com bolachas de soda. E toda aquela gente que foi para se divertir, tirou as fitas e os jasmins para enfeitar o caixão de Antônio, que recebeu, junto com o corpo, também seu violão, pois esse foi sempre o seu desejo.
Tempos depois, numa tarde quando as cigarras entoavam suas preces e as meninas brincavam à beira do lago, lhes pareceu ouvir o canto suave do vaqueiro e ao olhar para o lado da cajuraneira viram-no encostado ao tronco, com a calça enrolada até o meio da perna, chapéu jogado para trás, sorrindo para elas, que saíram em desabalada carreira, atirando-se nos braços da mãe, entre trêmulas e assustadas, dizendo que acabavam de ver Antônio.
– Eu vi, mãe! Ele estava lá!
– Nós vimos sim! Era ele!
– Eu vi também, mãe! Ele estava cantando e chamando a gente!
Era ele, mamãe! Era ele!
– Vamos, filhas! Vamos rezar por ele. E, aconchegando as filhas a si, as levou para o quarto, ajoelhando com elas em frente ao oratório.
Desse dia em diante, todas as tardes, se ouvia a voz do vaqueiro que a vaca matou, apascentando o gado, e havia até quem o visse entre os vaqueiros trazendo a boiada para os currais.
CECIM, Yara. Lendário: Contos Fantásticos da Amazônia. Belém: CEJUP, 2004. p. 13-17
Um comentário:
SEMPRE UMA BOA ESTÓRIA, SEMPRE UMA BELA POSTAGEM...
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