terça-feira, 7 de julho de 2020

ALCIDES WERK: poemas

Embora fosse sul-mato-grossense de nascimento, da cidade de Aquidauana, onde nasceu em 1934, Alcides Werk viveu e consagrou-se no Amazonas, onde faleceu, em 2003, na capital Manaus. É, talvez, um dos mais importantes poetas daquele Estado. Entre seus livros, encontram-se: Da Noite do Rio (1974); Trilha Dágua (1980); Poems of the water and the land/Poemas da água e da terra (edição bilíngue, 1987); Poemas Escolhidos (1985); In Natura – poemas para a juventude (1999); Cantos Ribeirinhos e outros poemas (2002).


DA OPÇÃO

 

Um belo mundo

de muitos lagos

de muitos rios.

 

Um belo mundo

de muitas matas

de muitas vidas

elementares.

 

Um belo mundo

de muitas lendas

de muitas mortes

antecipadas.

 

Velhas estórias

de água e florestas.

 

O homem e a terra.

 

A terra cansando

dos anos compridos

de extrativismo

na selva

no rio

na rua

na mente.

 

O homem cansado

de andar pelo tempo

sozinho sozinho

no meio da mata

na beira do rio

à margem da vida.

 

Velhas estórias

de água e florestas.

 

O homem e a terra.

 

– Eu canto para o homem. p. 15-16

 

 

AMAZÔNICA

 

Parteira boa

rezou três vezes:

sem novidade

nasceu José

no tapiri.

 

Desde pequeno

bebeu chibé

comeu castanha

uxi-coroa

piracuí

remou canoa

na pescaria

de jaraqui.

 

Ouviu estórias

do padre Pedro

e dos antigos

sobre o milagre

dos homens bons.

Mas nada soube

de agricultura.

Só mandioca

e extrativismo.

Cooperativa

libertação

a força viva

da união

foi comentada

(com muita unção)

no tempo próprio

para eleição.

 

Não teve estudo

só a cultura

dos ancestrais.

Cresceu sonhando

com cobras grandes

e a mãe-do-rio

que traz a enchente

que leva tudo.

 

Entrou na mata

sofreu de febres

e de abandono

cortou pau-rosa

juntou castanha

sangrou seringa

de sol a sol.

 

Mas tudo caro

não teve saldo

perdeu o sono.

Patrão bondoso

caboclo humilde

foi perdoado.

 

Voltou pra várzea

nova esperança:

plantou mandioca

tratou da juta

todo molhado

por muitos anos.

 

Patrão bondoso

mas tudo caro

não teve saldo

só reumatismo

cabelo branco

filho casado

morando ao lado

cheio de filhos

no mesmo estado

recomeçando.

 

E a mãe-do-rio

de vez em quando

trazendo a enchente

que leva tudo.

 

José está velho

mas nunca soube

que foi soldado

(sem soldo ou saldo)

marcou presença

guardou a mata

guardou o rio

doou seu sangue

para o futuro.

 

“Aposentado”

corpo doente

olhar cansado

perscruta a mata

chamando a estrada

transamazônica

para que venha

urgentemente

com muita gente

nos caminhões

nos aviões

para rendê-lo

no antigo posto

que recebeu

dos ancestrais.

 

José espera

na beira dágua

no tapiri.

Como seus pais. p. 21-24

 

 

SONETO ABERTO SOBRE A MORTE

 

Hoje é dia de festa nesta casa:

festa dos círios e das lamparinas.

Um corpo magro sobre a mesa, e a porta

de esteira aberta para os companheiros.

 

Beatas, terço, cafezinho, estórias,

o choro inútil da mulher sozinha,

a promessa do céu dos escolhidos

e uma herança de palha e de abandono.

 

Brasileiro, do norte, agricultor.

Semeou, semeou a vida inteira,

fez o campo florir por tantas vezes,

 

alimentou mil pássaros vadios,

foi sempre bom, mas nunca teve sorte,

e se vestiu de trapos para a morte. p. 45

 

 

TRILHA DÁGUA

 

As águas do lago

no início da noite

são como um espelho

que o casco estilhaça

com a força do remo.

 

Nas margens, a prata

da lua escorrendo

pelas sapucaias,

pelos cajuranas,

pelos tarumãs,

sobre as garças brancas,

sobre as piaçocas,

sobre os jaburus.

 

Jacaré com filhos

junto à canarana

(se a gente focar

com lanterna boa,

parece cidade

tanta luz brilhando).

 

Gafanhotos verdes,

tontos de luar,

voando sem rumo

servem de alimento

a peixes notívagos.

 

Lamparina acesa

lá na cabeceira

marca a palafita.

Cachorro latindo,

gente se agitando,

minha roupa branca,

meu sapato novo,

vou chegar macio,

vou subir sem pressa,

ver a cunhantã. p. 51-52

 

 

ESTUDOS

 

I

 

Este o lugar em que me entrego. Eu, que

sempre fui cuidadoso com meu sangue,

 aqui vejo-o embeber-se em solo estéril

– sacrifício vazio a um deus extinto.

 

Gosto de frequentar esta taberna,

onde me sirvo do meu próprio vinho,

nem perguntam quem sou. Meu companheiro,

que antes cantava e me aplaudia, agora

 

embuçado em silêncio me observa

como se eu lhe devesse algum milagre.

Na meia luz da tasca entra uma lua

 

que inventa novas sombras nas paredes.

Dos meus olhos de espanto e de tristeza

vai caindo um poema sobre a mesa. p. 109

 

II

 

Eis o campo deserto. Das batalhas

resultam faces apagadas, corpos

vencidos pelo sono, e agora vejo

inútil todo esforço despendido

 

por um mau capitão. Da necessária

ronda da angústia volto sobraçando

uma dúzia de espectros fugidios

que foram meus irmão e me condenam

 

o ofício de matar. Num poço seco,

que constrói e alimenta minha sede,

vou recolhendo dardos e silêncios

 

com que penso inventar novas trincheiras.

E a morte, secretária dos meus gestos,

vai nutrindo a avidez com os outros restos. p. 111

 

WERK, Alcides. Trilha dágua. Manaus: UBE, 1982. 2.ª edição.

 

 

DAS ESTRADAS

 

Estrada de barro,

estrada de água.

 

Gosto mais das estradas de água:

aqui há vida

– a água é a mãe da vida.

 

A estrada de barro é morta,

a natureza está morta.

As folhas marginais

– quando existem,

são amarelas e empoeiradas

(no asfalto são negras).

 

As pessoas passam velozmente,

fugindo do tédio,

fugindo da vida,

e não se cumprimentam.

 

Eu cumprimento o boto,

que vai sem pressa,

como a passeio,

apascentando os peixes.

 

Eu amo as estradas de rio. p. 37-38

 

 

NÊNIA PARA O 3.º MILÊNIO

 

I

 

O igarapé de água fria

trazia notícias das matas,

e banhava nossas brincadeiras:

– quem ficar um minuto no fundo é rei!

 

As cunhatãs seminuas

lavavam as roupas da casa,

e o jacundá-sabão se escondia

embaixo das tábuas, guloso,

esperando o trato do peixe do almoço

que o pai pegaria.

 

À noite, encolhidos na rede,

ouvíamos estórias dos mais velhos

contando de cobras-grandes,

 

das espertezas do boto-vermelho

ou do mapinguari

– o guarda da mata, que castigava

quem matou mais de uma caça

ou derrubou muitas árvores.

 

Em cima da casa, ou no mato ali perto,

a matintaperera assobiava

agourando tristezas.

 

De manhã, a gente esquecia os medos,

e ia remar canoa, pescar de caniço no lago,

sob o olhar pensativo do maguari.

Ou zangar a professorinha,

com reinações.

 

II

 

Agora,

nestas noites amazônicas,

assisto ao grande rio

(nosso herói maior e soberano),

assustado, esgueirando-se pelos beiradões

a correr para o Atlântico

– ledo engano de esconder-se

no velho refúgio

e amigo de muitos anos.

 

E me vêm pensamentos estranhos,

alucinações:

– criar um mundo novo

(um novo brinquedo)

para os nossos filhos?

 

Às vezes, perdido nessas fugas,

vejo no olhar do sol,

a chegar por entre brumas,

o mesmo espanto. p. 43-45

 

 

QUEIMADA

 

A madeira de lei

resiste

e na terra arrasada

de dedo em riste

denuncia a queimada. p. 95

 

 

WERK, Alcides. In Natura – Poemas para a juventude. Manaus: Valer, 1999.

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