Embora fosse sul-mato-grossense de nascimento, da cidade de Aquidauana, onde nasceu em 1934, Alcides Werk viveu e consagrou-se no Amazonas, onde faleceu, em 2003, na capital Manaus. É, talvez, um dos mais importantes poetas daquele Estado. Entre seus livros, encontram-se: Da Noite do Rio (1974); Trilha Dágua (1980); Poems of the water and the land/Poemas da água e da terra (edição bilíngue, 1987); Poemas Escolhidos (1985); In Natura – poemas para a juventude (1999); Cantos Ribeirinhos e outros poemas (2002).
DA OPÇÃO
Um belo mundo
de muitos lagos
de muitos rios.
Um belo mundo
de muitas matas
de muitas vidas
elementares.
Um belo mundo
de muitas lendas
de muitas mortes
antecipadas.
Velhas estórias
de água e florestas.
O homem e a terra.
A terra cansando
dos anos compridos
de extrativismo
na selva
no rio
na rua
na mente.
O homem cansado
de andar pelo tempo
sozinho sozinho
no meio da mata
na beira do rio
à margem da vida.
Velhas estórias
de água e florestas.
O homem e a terra.
– Eu canto para o homem. p. 15-16
AMAZÔNICA
Parteira boa
rezou três vezes:
sem novidade
nasceu José
no tapiri.
Desde pequeno
bebeu chibé
comeu castanha
uxi-coroa
piracuí
remou canoa
na pescaria
de jaraqui.
Ouviu estórias
do padre Pedro
e dos antigos
sobre o milagre
dos homens bons.
Mas nada soube
de agricultura.
Só mandioca
e extrativismo.
Cooperativa
libertação
a força viva
da união
foi comentada
(com muita unção)
no tempo próprio
para eleição.
Não teve estudo
só a cultura
dos ancestrais.
Cresceu sonhando
com cobras grandes
e a mãe-do-rio
que traz a enchente
que leva tudo.
Entrou na mata
sofreu de febres
e de abandono
cortou pau-rosa
juntou castanha
sangrou seringa
de sol a sol.
Mas tudo caro
não teve saldo
perdeu o sono.
Patrão bondoso
caboclo humilde
foi perdoado.
Voltou pra várzea
nova esperança:
plantou mandioca
tratou da juta
todo molhado
por muitos anos.
Patrão bondoso
mas tudo caro
não teve saldo
só reumatismo
cabelo branco
filho casado
morando ao lado
cheio de filhos
no mesmo estado
recomeçando.
E a mãe-do-rio
de vez em quando
trazendo a enchente
que leva tudo.
José está velho
mas nunca soube
que foi soldado
(sem soldo ou saldo)
marcou presença
guardou a mata
guardou o rio
doou seu sangue
para o futuro.
“Aposentado”
corpo doente
olhar cansado
perscruta a mata
chamando a estrada
transamazônica
para que venha
urgentemente
com muita gente
nos caminhões
nos aviões
para rendê-lo
no antigo posto
que recebeu
dos ancestrais.
José espera
na beira dágua
no tapiri.
Como seus pais. p. 21-24
SONETO ABERTO SOBRE A MORTE
Hoje é dia de festa nesta casa:
festa dos círios e das lamparinas.
Um corpo magro sobre a mesa, e a porta
de esteira aberta para os companheiros.
Beatas, terço, cafezinho, estórias,
o choro inútil da mulher sozinha,
a promessa do céu dos escolhidos
e uma herança de palha e de abandono.
Brasileiro, do norte, agricultor.
Semeou, semeou a vida inteira,
fez o campo florir por tantas vezes,
alimentou mil pássaros vadios,
foi sempre bom, mas nunca teve sorte,
e se vestiu de trapos para a morte. p. 45
TRILHA DÁGUA
As águas do lago
no início da noite
são como um espelho
que o casco estilhaça
com a força do remo.
Nas margens, a prata
da lua escorrendo
pelas sapucaias,
pelos cajuranas,
pelos tarumãs,
sobre as garças brancas,
sobre as piaçocas,
sobre os jaburus.
Jacaré com filhos
junto à canarana
(se a gente focar
com lanterna boa,
parece cidade
tanta luz brilhando).
Gafanhotos verdes,
tontos de luar,
voando sem rumo
servem de alimento
a peixes notívagos.
Lamparina acesa
lá na cabeceira
marca a palafita.
Cachorro latindo,
gente se agitando,
minha roupa branca,
meu sapato novo,
vou chegar macio,
vou subir sem pressa,
ver a cunhantã. p. 51-52
ESTUDOS
I
Este o lugar em que me entrego. Eu, que
sempre fui cuidadoso com meu sangue,
aqui vejo-o embeber-se em solo estéril
– sacrifício vazio a um deus extinto.
Gosto de frequentar esta taberna,
onde me sirvo do meu próprio vinho,
nem perguntam quem sou. Meu companheiro,
que antes cantava e me aplaudia, agora
embuçado em silêncio me observa
como se eu lhe devesse algum milagre.
Na meia luz da tasca entra uma lua
que inventa novas sombras nas paredes.
Dos meus olhos de espanto e de tristeza
vai caindo um poema sobre a mesa. p. 109
II
Eis o campo deserto. Das batalhas
resultam faces apagadas, corpos
vencidos pelo sono, e agora vejo
inútil todo esforço despendido
por um mau capitão. Da necessária
ronda da angústia volto sobraçando
uma dúzia de espectros fugidios
que foram meus irmão e me condenam
o ofício de matar. Num poço seco,
que constrói e alimenta minha sede,
vou recolhendo dardos e silêncios
com que penso inventar novas trincheiras.
E a morte, secretária dos meus gestos,
vai nutrindo a avidez com os outros restos. p. 111
WERK, Alcides. Trilha dágua. Manaus: UBE, 1982. 2.ª edição.
DAS ESTRADAS
Estrada de barro,
estrada de água.
Gosto mais das estradas de água:
aqui há vida
– a água é a mãe da vida.
A estrada de barro é morta,
a natureza está morta.
As folhas marginais
– quando existem,
são amarelas e empoeiradas
(no asfalto são negras).
As pessoas passam velozmente,
fugindo do tédio,
fugindo da vida,
e não se cumprimentam.
Eu cumprimento o boto,
que vai sem pressa,
como a passeio,
apascentando os peixes.
Eu amo as estradas de rio. p. 37-38
NÊNIA PARA O 3.º MILÊNIO
I
O igarapé de água fria
trazia notícias das matas,
e banhava nossas brincadeiras:
– quem ficar um minuto no fundo é rei!
As cunhatãs seminuas
lavavam as roupas da casa,
e o jacundá-sabão se escondia
embaixo das tábuas, guloso,
esperando o trato do peixe do almoço
que o pai pegaria.
À noite, encolhidos na rede,
ouvíamos estórias dos mais velhos
contando de cobras-grandes,
das espertezas do boto-vermelho
ou do mapinguari
– o guarda da mata, que castigava
quem matou mais de uma caça
ou derrubou muitas árvores.
Em cima da casa, ou no mato ali perto,
a matintaperera assobiava
agourando tristezas.
De manhã, a gente esquecia os medos,
e ia remar canoa, pescar de caniço no lago,
sob o olhar pensativo do maguari.
Ou zangar a professorinha,
com reinações.
II
Agora,
nestas noites amazônicas,
assisto ao grande rio
(nosso herói maior e soberano),
assustado, esgueirando-se pelos beiradões
a correr para o Atlântico
– ledo engano de esconder-se
no velho refúgio
e amigo de muitos anos.
E me vêm pensamentos estranhos,
alucinações:
– criar um mundo novo
(um novo brinquedo)
para os nossos filhos?
Às vezes, perdido nessas fugas,
vejo no olhar do sol,
a chegar por entre brumas,
o mesmo espanto. p. 43-45
QUEIMADA
A madeira de lei
resiste
e na terra arrasada
de dedo em riste
denuncia a queimada. p. 95
WERK, Alcides. In Natura – Poemas para a juventude. Manaus: Valer, 1999.
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