domingo, 12 de julho de 2020

INFORMAÇÃO DO AMAZONAS

Aldisio Filgueiras

Foto: emtempo.com.br

no Amazonas

o homem

não conhece a Bomba

 

nem as sedes

cimento

e

pedra

de suas origens

e nem os terríveis

estragos e perigos

das chuvas grávidas

de estrôncio

precipites na várzea

 

no Amazonas

o homem

não conhece a guerra

 

– a não ser as

eventuais

lutas internas

pelo domínio da terra –

 

muito menos conhece

a marcha em estágio

avançado da técnica

com seu rebanho

de máquinas

atropelando passados

 

aqui o homem é virgem

 

mas não livre das seduções

sutis seduções

da catequese política

dos padres americanos

 

aqui o homem é virgem

 

a sol

e

vento

tem sua pele curtida

 

e em três estações simultâneas

de caça

pesca

e plantio de magras raízes

mata o seu tempo

 

aqui o homem é virgem

 

fala a língua

de seus instintos

e escreve na sua pele

– à ponta de faca

   e rara pontuação de 22 –

a história de sua vida

 

aqui o homem é virgem

 

faz em solidão

as suas necessidades

ou em mansos animais

domésticos ao alcance

da mão

 

e explica a vida

com o seu medo

 

 

aqui o homem é virgem

 

a solidão

um ato

e

um fato

 

aqui o homem é virgem

 

a sol

e

vento

e chicote de feitor

tem sua pele curtida

 

sofre muito calor

para ter um dia

claro

uma chuva

 

súbita

 

no Amazonas

o homem

não conhece a pílula

 

deixa como está

para ver

como é que fica

 

espadas de Herodes

rondam as palafitas

 

auxílio da morte

à bolsa do pobre

 

aqui o homem é virgem

 

navalhas do vento

fazem-lhe a barba

 

águas do rio

e sabão vegetal

lavam-lhe a cara

 

qualquer roupa

lhe despe o corpo

 

como quando tem

o que comer

 

nasce e morre

não cresce

 

aqui o homem é virgem

 

não paga um tostão

pelo ar que respira

 

paga-o porém

pelo chão que pisa

 

com os olhos da cara

paga o dia que vive

aquele em que trabalha

 

não é homem que diga não

por ser homem virgem

destes pagos mal vistos

 

aqui o homem é virgem

 

vive do rio

como vive

de amor

 

febre

 

no Amazonas

não se tem muito

 

que comerciar

com a vida

 

se precisa de fiança

pra morrer

no crediário

 

aqui o homem é virgem

 

a Terra é um prato

raso: em algum lugar

o rio se d

             e

             s

             p

             e

             n

             c

             a

             no espaço

 

no Amazonas

o homem não conhece a pílula

não conhece a máquina

não conhece nada

 

mas nem por isso: sabe

a dor de uma saudade

de coisas nunca vistas

mínimas primárias:

 

pão e por exemplo

amor terra espelho

 

coisas nunca vistas

mínimas primárias

 

aqui o homem é virgem

 

cedo aprende a ler

nos cursos da linha

d’água a letra má

do seu destino

 

cedo aprender a contar

no remo as léguas

de água que caminhar

 

forma-se mui cedo

em cacete de cego

 

– os cursos da linha d’água

   são um costume do lugar –

 

aqui o homem é virgem

 

suas mãos são poucas

pás-de-coveiro

em terras de muitas

bocas de túmulo

 

suas mãos são poucas

para o muito que pode

colher para o pouco

que tem para levar à boca

 

suas mãos são poucas

mãos de pilão

para o muito

que tem de socar

 

suas mãos são muito

carinho para pouca

mulher – pouco homem –

com quem tem que viver

 

suas mãos são poucas

para o muito trabalho

que tem que fazer

 

suas mãos são muito

calor condensado

 

são átomos

jamais cortados

 

aqui o homem é virgem

 

se a criança é adulto

pai de família

 

se adulto é criança

filho da puta

sem tempo

de viver

seu tempo

 

aqui o homem é virgem

 

nasce zeloso

servo de Deus

 

cresce honrado

escravo do patrão

 

um dia se promorre

chefe de família

 

aqui o homem é virgem

 

não é como a rã

que comia ventos

gerais na fábula

 

é simples figura

no entalhe

de Álvaro Páscoa

que sonha

apenas o seu de viver

 

pão e por exemplo

amor terra espelho

 

no Amazonas

o homem nasce

não conhece a Bomba

 

mas nem por isso:

 

sabe a fome

do pão e ternura humana

 

 

FILGUEIRAS, Aldisio. Estado de sítio. 3ª edição. Manaus: Valer/Sesc, 2018. p. 23-33

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