Aldisio Filgueiras
Foto: emtempo.com.br
no Amazonas
o homem
não conhece a Bomba
nem as sedes
cimento
e
pedra
de suas origens
e nem os terríveis
estragos e perigos
das chuvas grávidas
de estrôncio
precipites na várzea
no Amazonas
o homem
não conhece a guerra
– a não ser as
eventuais
lutas internas
pelo domínio da terra –
muito menos conhece
a marcha em estágio
avançado da técnica
com seu rebanho
de máquinas
atropelando passados
aqui o homem é virgem
mas não livre das seduções
sutis seduções
da catequese política
dos padres americanos
aqui o homem é virgem
a sol
e
vento
tem sua pele curtida
e em três estações simultâneas
de caça
pesca
e plantio de magras raízes
mata o seu tempo
aqui o homem é virgem
fala a língua
de seus instintos
e escreve na sua pele
– à ponta de faca
e rara pontuação de 22 –
a história de sua vida
aqui o homem é virgem
faz em solidão
as suas necessidades
ou em mansos animais
domésticos ao alcance
da mão
e explica a vida
com o seu medo
aqui o homem é virgem
a solidão
um ato
e
um fato
aqui o homem é virgem
a sol
e
vento
e chicote de feitor
tem sua pele curtida
sofre muito calor
para ter um dia
claro
uma chuva
súbita
no Amazonas
o homem
não conhece a pílula
deixa como está
para ver
como é que fica
espadas de Herodes
rondam as palafitas
auxílio da morte
à bolsa do pobre
aqui o homem é virgem
navalhas do vento
fazem-lhe a barba
águas do rio
e sabão vegetal
lavam-lhe a cara
qualquer roupa
lhe despe o corpo
como quando tem
o que comer
nasce e morre
não cresce
aqui o homem é virgem
não paga um tostão
pelo ar que respira
paga-o porém
pelo chão que pisa
com os olhos da cara
paga o dia que vive
aquele em que trabalha
não é homem que diga não
por ser homem virgem
destes pagos mal vistos
aqui o homem é virgem
vive do rio
como vive
de amor
febre
no Amazonas
não se tem muito
que comerciar
com a vida
se precisa de fiança
pra morrer
no crediário
aqui o homem é virgem
a Terra é um prato
raso: em algum lugar
o rio se d
e
s
p
e
n
c
a
no espaço
no Amazonas
o homem não conhece a pílula
não conhece a máquina
não conhece nada
mas nem por isso: sabe
a dor de uma saudade
de coisas nunca vistas
mínimas primárias:
pão e por exemplo
amor terra espelho
coisas nunca vistas
mínimas primárias
aqui o homem é virgem
cedo aprende a ler
nos cursos da linha
d’água a letra má
do seu destino
cedo aprender a contar
no remo as léguas
de água que caminhar
forma-se mui cedo
em cacete de cego
– os cursos da linha d’água
são um costume do lugar –
aqui o homem é virgem
suas mãos são poucas
pás-de-coveiro
em terras de muitas
bocas de túmulo
suas mãos são poucas
para o muito que pode
colher para o pouco
que tem para levar à boca
suas mãos são poucas
mãos de pilão
para o muito
que tem de socar
suas mãos são muito
carinho para pouca
mulher – pouco homem –
com quem tem que viver
suas mãos são poucas
para o muito trabalho
que tem que fazer
suas mãos são muito
calor condensado
são átomos
jamais cortados
aqui o homem é virgem
se a criança é adulto
pai de família
se adulto é criança
filho da puta
sem tempo
de viver
seu tempo
aqui o homem é virgem
nasce zeloso
servo de Deus
cresce honrado
escravo do patrão
um dia se promorre
chefe de família
aqui o homem é virgem
não é como a rã
que comia ventos
gerais na fábula
é simples figura
no entalhe
de Álvaro Páscoa
que sonha
apenas o seu de viver
pão e por exemplo
amor terra espelho
no Amazonas
o homem nasce
não conhece a Bomba
mas nem por isso:
sabe a fome
do pão e ternura humana
FILGUEIRAS, Aldisio. Estado de sítio. 3ª edição. Manaus: Valer/Sesc, 2018. p. 23-33
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