terça-feira, 5 de janeiro de 2021

SABERES DA FLORESTA: Márcia Wayna Kambeba

SABERES DA FLORESTA

Mariana Payno

(https://gamarevista.com.br)

 

POR QUE LER?

“Existe uma necessidade de materiais escritos pelos próprios indígenas que possam informar sobre seus povos, sua cultura, sua identidade, seu território.” Foi por acreditar nisso que a poeta e educadora Márcia Wayna Kambeba reuniu uma série de textos sobre a educação e a cultura indígenas em seu novo livro, “Saberes da Floresta”, lançado na próxima semana pela editora Jandaíra durante a edição virtual da Flip 2020, que acontece entre 3 e 6 de dezembro. A autora participa de uma mesa do evento no dia 4.

Transitando entre ensaios breves e poemas (veja alguns a seguir), a obra traz a visão descolonial de Kambeba sobre a pedagogia indígena e os ensinamentos dos povos tradicionais. Com uma linguagem fluida, revelando traços da história oral e da literatura de cordel, ela parte dos próprios versos e de um olhar filosófico e político para refletir sobre a educação e a identidade nas aldeias.

Geógrafa, mestre pela Universidade Federal do Amazonas, poeta, performer e pesquisadora, Kambeba nasceu em uma aldeia Ticuna, onde viveu até os oito anos antes de se mudar com a família para a cidade. Temas como a ancestralidade, os deslocamentos, a violência contra os povos indígenas e os conflitos da vida urbana já permeavam sua poesia em “Ay Kakyri Tama – Eu moro na cidade” (Jandaíra, 2018). O novo “Saberes da Floresta” faz parte da Coleção Insurgências, série da mesma editora que publica obras com visões não hegemônicas sobre a educação.

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Povos na Universidade

 

A visão de mundo

Que na aldeia aprendi

E que trago na alma

É Identidade.

 

Um tempo profundo

Um rio fecundo

Um canto forte

Resistência que quero mostrar

Nas penas, pulseiras, cocar.

 

E a cidade cobra sem piedade

Mas como fazer

Se a universidade não me permite ser?

Pataxó, Mura, Kambeba, Guarani.

 

É preciso desconstruir e permitir

Uma interculturalidade

Um respeito à diversidade

Nessa casa de saber.

 

Porque na minha universidade-aldeia

Onde o rio corre à vontade

O pesquisador não vai sofrer.

 

Vai ser bem recebido

Vai comer e vai beber

Conhecer nosso sagrado

Ter respeito no seu querer.

 

Assim queremos que a universidade

Com nossa nação venha fazer

Se despir do preconceito

Entender que sou um legado

Que o meu fumo enrolado

Afugenta todo mal

É preciso entender nosso tempo

Para sair do seu quadrado.

 

Também faço ciência

Sou terra, sou água

Segue manso meu rio.

 

Quero saudar meus ancestrais

Nessa selva de pedra

Antes de sentar para aprender

Bater meu maracá

Pedir licença para partilhar

Porque isso é ciência milenar.

 

Não sou objeto

Penso e existo.

 

Não me deixe na invisibilidade

Estou na cidade

Mas minha aldeia levo comigo

Na forma de pensar a universidade

Vamos sentar e a fumaça compartilhar

Fumaça do saber.

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Consciência Indígena

 

Consciência, cadê você?

Onde está que não te vejo?

Como tu és, qual tua cor?

Quero te conhecer.

 

Preciso aprender a conviver

Com as diferenças

Para poder entender

A “consciência indígena”

“Consciência negra”.

 

Numa terra que deveria reconhecer

A importância de ser originário

A cultura que pisou o chão

O maracá que te fez Brasil

Era para soar em cada coração.

 

Esquecidos do calendário

Invisibilizados no direito de viver

É preciso que as escolas ensinem

O que a consciência deveria saber.

 

Consciência ambiental

Consciência social

Consciência do respeito

Nessa terra Brasil

Que já foi colônia de Portugal.

 

Consciência indígena

Pedimos em louvação

Para não ver nossa terra

Ser palco de devastação

Para não ver nossas crianças

Se envergonharem de sua nação.

 

Protagonismo é de todos

Na força da união

Na partilha da coletividade

No sorriso do curumim.

 

No canto que soa forte

Na pisada suada no chão

No abraço e aperto de mão,

Amor amando cada irmão.

 

Consciência é ver você no outro

É ver o outro em você

É olhar com cuidado para ver de onde vem

O cheiro de cobra grande

O cheiro que a aldeia tem.

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O Olhar da Palavra

 

Palavra é memória

Senhora da história

Desenha sentimentos

Resistência, lutas, vitórias.

 

Palavra que dança no tempo

Vaga-lume que ilumina o amor

Palavra que marca o passado

Narra o presente

Do povo o clamor.

 

Palavra é o lugar

Do ver, ser, identidade

Escrita que nasce do olhar

É a palavra vestida de liberdade.

 

Libere a palavra

Reescreva o final

Palavra é farpa

Poesia marginal.

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Depois de Amanhã

 

Quando as vozes calarem

E a flecha não mais voar

Quando a terra rachada

Os pés não puderem pisar

Nesse dia surgirão novos guerreiros

Nova era se confirmará.

 

Queremos história

A onça voraz

Na voz do curumim

Extinção jamais!

 

As árvores então falarão

As pedras também vão falar

Expressando tristeza e pavor.

 

Sapopemas gritarão por nós

Porque sempre existirá

Aquele que sabe mandar

O outro calar sua voz.

 

Confio no abraço do parente

Na era dessa curuminzada

Filhos da gente

Que já nascem sabendo o que é dor

Que a terra deve ser cuidada

Com a vida, carinho e amor.

 

Quando nossa geração se for

Restarão a canção e a poesia

Restará o retrato falado

De quem em vida na resistência lutou.

 

Restarão o livro que o indígena escreveu

A filmagem de quem entendeu

Que na vida não se vive por viver

A vida não é só aqui

O que fazemos de bom

O mundo precisa sentir.

 

No dia em que a nossa geração se for

Certo que continuará a alegria

E a meninada entenderá a diferença

O respeito à diversidade

Porque a interculturalidade

Se vê nos traços da cunhã e curumim

O resto é invenção que só se lê e não se vê.

 

No dia em que nossa geração se for

Restarão a pedagogia da aldeia

A psicologia da floresta

Para tratar a dor da alma

Pelo olhar do curumim que falou:

 

Sou a flecha do amanhã

Sou árvore em pé

Sou rio correndo vivo

Sou a força da mulher

Sou curupira, sou pajé

Virando sucuri na beira do igarapé.

 

Sou a cultura parindo educação

Com a parteira de cócoras no chão

Segurando sua mão.

 

Sou a chave que abre a algema

E liberta do preconceito e perversidade

Sou a porta que leva ao saber

Sou a cara da aldeianidade

Sou ponte ligando as ideias da mocidade.

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