domingo, 22 de agosto de 2021

POR QUEM OS POETAS GRITAM: uma leitura de “Bastante aos gritos” de Cesar Garcia Lima

Isaac Melo


A leitura, escreveu Sartre em “Que é a literatura?”, é um sonho livre.

Já que os verdadeiros sonhos sempre impulsionam à luta, então, permitam-me sonhar um pouco em torno de “Bastante aos gritos” (7Letras, 2021), o quarto livro de poesia de Cesar Garcia Lima, professor e poeta acreano radicado no Rio de Janeiro.

Tomei contato com a poesia do Cesar quando, numa das visitas à Livraria Paim, em Rio Branco-AC, deparei-me com um exemplar de “Águas desnecessárias”, publicado nos idos de 1997, pela Nankin Editorial.

Depois, virtualmente, por meio das redes sociais, nos encontramos. O tempo passou, e, finalmente, nos deparamos presencialmente, e estabelecemos, desde então, uma amizade, digamos, à distância.

Após “Águas desnecessárias”, vieram “Este livro não é um objeto” (2006), um livro de poemas-postais; mais tarde, “Trópico de papel” (2019); e, finalmente, neste fatídico 2021, “Bastante aos gritos”. O leitor observa, desde os títulos, o poeta em sua transgressão, na subversão de uma lógica utilitarista em afirmação de valores “desnecessários”, como a arte e a poesia.

A primeira imagem que me veio, a partir do título, “Bastante aos gritos”, foi a cena final de “Teorema” (1968), de Pier Paolo Pasolini, quando Paolo, personagem de Massimo Girotti, depois de desnudar-se em plena estação ferroviária de Milão, em seguida aparece numa região quase vulcânica, inóspita, desértica, e corre de braços abertos “bastante aos gritos”, naquela que é, para mim, uma das cenas mais impactantes do cinema.

Aquele grito é um grito que jamais deixa de ecoar. Porque é um grito que emerge da profundidade, do desalento, do desespero, do desamparo, o grito da consciência de si e do mundo. Mas, quem sabe, também, o grito de libertação.

“Bastante aos gritos” surge num momento crítico da história mundial e, conturbado e obscuro, no cenário brasileiro. O livro de Cesar é contundente, neste sentido. Seu conteúdo é um conteúdo eminentemente político, mas vazado numa escrita por excelência poética. Pois, como escreveu Edgar Morin, em “Amor, poesia, sabedoria”, “o poeta tem uma competência total, multidimensional, que diz respeito à humanidade e à política, mas não tem que se deixar subjugar pela organização política. A mensagem política do poeta é de ultrapassar a política.” Sim, é isso que, magistralmente, Cesar Garcia Lima faz. O poeta está constantemente falando sobre política sem, no entanto, mencioná-la explicitamente um só instante.

O livro, que traz uma belíssima capa com obra do artista plástico Danilo de S’Acre, com todo o esmero editorial da 7Letras, compõe-se de cinco blocos: agora interminável, nome aos boys, personas, as cidades da memória e autorretrato em fuga. Todos reveladores da cartografia ontopoética do autor.

No “agora interminável”, por exemplo, os poemas trazem uma certa angústia e apreensão, pelas incertezas e intranquilidades geradas pelo contexto político e social do momento.

 

Respire, amigo.

Esqueça que mora no corpo

e descanse

a alma intranquila. p. 15

 

Em vez de fugir, o poeta convida para assumir o presente: “Conversemos sobre o agora. / Deixe o medo perder / a força” (p. 15). Pois “a ajuda não tarda”.

No poema “desagora”, temos uma espécie de diagnóstico da nossa realidade brasileira. O poeta, com certa amargura, constata o esmorecimento das lutas ou a falta de sentido que elas hoje têm, frente àqueles que, rendidos às telas, deixaram-se levar pela boa-nova prometida por certos salvadores ocultos.

Qual o sentido das lutas de outrora num presente que opta por repetir as mesmas tragédias do passado? Os que venceram, afinal acabaram também mortos ou encerrados em seus “apartamentos limpos”. E o presente os mira com certo desdém, a anular todas as suas conquistas:

 

Ninguém comemora

a queda da Bastilha

na cidade decaída:

os que venceram se foram

ou estão abrigados

em seus apartamentos limpos. (p. 16)

 

O poeta não está aí simplesmente para demonstrar, a partir de seus talentos, ser um “poeta nato”, mas, sim, expressar, por meio da poesia e da arte, o seu descontentamento, a sua revolta. E se o poeta está “mais calado do que de costume”, não é por covardia. Mesmo quem cala, o seu calar ainda é fala. Tal como o silêncio de Cristo frente a Pilatos, é preciso “perceber a eloquência de quem cala”, pois o silêncio, no momento oportuno, é mais eloquente que qualquer discurso. 

 

Estou calado até quando discurso

porque minha revolta é tanta

que transbordou a margem da cidade

em busca da sua decadência.

Celebro os mortos já que

os vivos são sombras. (p. 17)

 

Em “Bastante aos gritos”, não escapa ao poeta a problemática dos aplicativos de comida e a precarização das condições de trabalho dos entregadores. Quantos Paulos Robertos atualizam e dão vida ao sistema de escravidão contemporâneo, sem as mínimas garantias trabalhistas, laborando, tantas vezes, por uma remuneração que mal basta à sua própria alimentação?!

Ainda recorrendo a Sartre, o filósofo existencialista afirma que “a leitura é um pacto de generosidade entre o autor e o leitor; cada um confia no outro tanto quanto exige de si mesmo.” Neste sentido, ler é ato de cumplicidade do leitor para com o autor. E mesmo aquele se apresenta imprescindível para este. Todavia, o autor não tem qualquer domínio sobre o leitor, uma vez que o livro está em suas mãos.

 

Não pergunto sobre o livro

certamente não lido

com dedicatória e tudo

meu livro não é meu

e o não leitor tampouco o quer

essa lírica miúda

chegada a santos

poética da iniciação

com atalhos de descidas.

Não tenho pena dele

inocentes não leem

publicam. (p. 66)

 

A última parte de seu livro, Cesar o intitulou “Autorretrato em fuga”. Talvez seja a parte mais filosófica, mais densa, da obra, porque trata do sentido último do ser e da existência, o poeta frente a si mesmo, entre o “massacre do tempo” e “o ponto final”. O poeta frente às perguntas inevitáveis e respostas imponderáveis, diante da constatação de que, um dia, “tudo desmorona”.

 

Ter o espírito repleto de navios

sonhos obsoletos

alma dispersa

corpo de brumas

a respiração à medida

do medo

o limite o que insiste

sensibilidade barroca

de atropelos

o outro a sombra

o não percebo

o horror o espelho

o inimigo íntimo número um

na luta de perdedores

do desejo

a caricatura do receio

o massacre do tempo

o ponto final (p. 98)

 

“Bastante aos gritos” é também essa desvelação de si e a revelação do outro. Não se perde em devaneios solipsistas. Mas encontra toda a sua potência na alteridade, no encontro com o outro, com suas dores, angústias e esperanças. O pai, a mãe, a família, os amigos. Toda esta matéria poética é a matéria de vida na vida mesmo do poeta.

 

Quando Lady Di morreu

eu estava em retiro

num ashram na Califórnia

e soube ao telefonar para a família

do acidente fatídico em Paris.

Sem saber o que fazer,

fui à sala de leitura

e perguntei ao monge mais próximo

se ele sabia que Lady Di tinha morrido.

Ele me disse:

– Morrem pessoas todos os dias.

Eu fiquei tão chocado

que não consegui dizer mais nada.

Ontem

vi no noticiário

milhares de pessoas mortas no Nepal

e não senti nada.

Hoje

soube que um conhecido

morreu

depois de uma longa doença.

Fiquei tão chocado

que não consigo parar de pensar

nos mortos do Nepal. (p. 101)

 

Por fim, cabe-nos, ainda, indagar. Que grito é este? Por que gritamos? Ou por quem gritamos ou deixamos de gritar? Cesar Garcia Lima, neste tempo de retrocessos, de ódio, de ignorância, de mentira, de tantas violências, nos oferece o seu grito de revolta, de indignação, de protesto, que é, no fundo, o grito de todos nós, o grito daqueles que cultivam a estante, o saber, a beleza contra toda forma de prepotência e violência que atentam contra a justiça e a dignidade da vida no planeta.

“Bastante aos gritos”, embora se leia, com certo travo na garganta, nos possibilita, no entanto, a fazer do grito a possibilidade de um canto de amor e de esperança. Pois como escreveu, em “A literatura em perigo”, Tzvetan Todorov: “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro.” “Bastante aos gritos” é, portanto, este convite, que ora se nos apresenta como necessário e irrecusável.

 

 

Referências

LIMA, Cesar Garcia. Bastante aos gritos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2021.

MORIN, Edgar. Amor, poesia, sabedoria. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1993.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

Um comentário:

Ronaldo Rhusso disse...

Os gritos se confundem nos motivos que os provocam e a indignação contra a morte vai calando, aos poucos, a alma...