quinta-feira, 18 de maio de 2023

À PRAÇA

Eneida (1904-1971)

O assunto desta crônica talvez pareça – principalmente para a crítica cruel dos meus amigos – uma demonstração de vaidade, sentimento inconcebível numa mulher banal. A crueldade crítica de meus amigos não deve espantar ninguém. Só é amigo aquele que critica com justeza e força, uma vez que aos inimigos cabe apenas, exclusivamente, destruir, negar, liquidar. Isto posto, devo dizer que sou forçada a fazer esta declaração que talvez melhor ficasse num canto de página, como matéria paga e título em negrita: “À praça”. E todos sentiriam, desde logo, que a mencionada praça nada teria a ver com o comércio em geral ou em particular. A praça seria os meus queridos leitores e os meus citados e implacáveis amigos.

O fato é que várias pessoas querem saber seriamente por que assino apenas o meu nome de batismo, por que risquei definitivamente meus sobrenomes. Há os que dizem: qualquer mulher com o nome igual ao teu poderá se dizer autora de teus trabalhos. Outros acham que parece um esnobismo, um cabotinismo, essa história de aparecer sem o nome do pai, principalmente. É por tudo isso que vou declarar à praça que não tenho sobrenomes, que nunca usei e que sinto-me profundamente feliz homenageando de alguma maneira todas as Eneidas existentes neste país. E deve haver lindas, inteligentes, boas; deve haver feias, más, tristes, pobres e a todas homenageio fraternalmente, pois que afinal somos irmãs, no nome.

De onde vieram vocês, como e por que se chamam assim? O meu nome foi um presente – sim, perdoem todos, mas gosto muito dele – de uma mulher maravilhosa, tão bela, tão alegre, tão inteligente que, apesar de estar de mim definitivamente separada há anos, muitos anos, ainda existe dentro de meus olhos. Dela sei de cor, até hoje, os gestos de mãos longas, o riso de dentes claros, a alegria constante e o som que algumas palavras adquiriam em sua voz. Foi com ela que aprendi o valor de certas palavras e determinados sentimentos: morte, amor, vida, sonho, luta. E outras mais longas: lealdade, persistência, coragem. Principalmente coragem.

Para dizer verdade, devo confessar que tenho sofrido muito com o meu nome. Os trocadilhos – infames, muito infames – já puseram frios e arrepios na minha espinha dorsal. Tenho livros oferecidos por autores nacionais dizendo, por exemplo, assim: “a última edição da Eneida”. Outro diz “a mais primorosa edição”. Como veem, tive razões de sobra para os arrepios. Havia também (ou melhor, ainda há hoje, se bem que em menor escala) cavalheiros que depois de apresentados sentiam coceiras culturais e perguntavam: – “de que Virgílio?” ou coisa parecida. Também não poderei esconder que alguns falavam em Homero, confundindo assim gregos e latinos. Afinal, não dizem vários autores que Virgílio andou copiando Homero para escrever a Eneida? Felizmente os tempos mudaram e os rapazes do futebol tomaram conta de tudo neste país, jogando para o lixo definitivo Virgílio e outros cavalheiros desnecessários.

Como meu nome de batismo deu todo esse trabalho à minha vida, resolvi um dia mantê-lo solto, limpo, sozinho, meio desafiante. E assim estou com ele homenageando, como disse, todas as mulheres que tiverem um nome idêntico. O que tenho feito na vida é tão simples, tão banal, tão possível de ser realizado por todos, que meus sobrenomes nada viriam acrescentar ou grifar.

Assim fica bem claro que assinando como assino não levo nenhum cabotinismo, nenhuma vontade “de me faire remarquer” (como se dizia no meu tempo de Sion) e também nenhum desdouro pelo nome simplório de meu pai, caboclo paraense semianalfabeto que um dia a borracha enriqueceu. Minha árvore genealógica é simples, de galhos curtos, completamente despida de grandeza. Uma árvore perdida entre milhares de árvores da floresta amazônica.

Saudando as Eneidas e pedindo que usem de mim, de meu nome, fazendo dele o que bem lhes aprouver, deixo à praça esta declaração.

 

ENEIDA. Cão da Madrugada. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954. p. 144-146

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Eneida (1904-1971), jornalista, militante política, feminista e escritora paraense, falecida no Rio de Janeiro. Autora de Terra Verde (1929, poesia), Cão da Madrugada (1954, crônica), Aruanda (1957, crônica), História do Carnaval Carioca (1958, ensaio) e Banho de Cheiro (1962, crônica).

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