quarta-feira, 12 de junho de 2024

RIO SILÊNCIO: poemas de Antônio Moura

O JARDIM DO PALÁCIO

 

No princípio

tuas iris

             - águas

 

onde boiaram

minhas iris

             - algas

 

sob arcos

árabes: tuas

duas pálpebras

 

Agora

 

varando arcos,

águas, ardo

 

- silêncio –

 

entre as palavras p. 30

 

֎

 

A CASA

 

Ventre-casa de onde saímos

para entrar na casa-ventre de

quatro paredes onde chegamos.

Um entre, onde ficamos em

convívio: pai, filho, espírito, espanto

quando um a um de nós caímos

no tumulto do mundo, largados

à miragem de estar sozinho,

até ver a imagem no espelho

que reflete o invisível, até ouvir

o indizível chamado para

voltar ao ventre, casa

sem uma única parede entre as estrelas

de onde, talvez, nunca tenhamos saído p. 36

 

֎

 

TRAVESSIA

 

Um dia para atravessar – sol

entre duas noites imensas,

 

tendo como companhia o corpo,

este pequeno animal que não

 

te pertence e que, sem nada

perguntar, se oferece, devotadamente,

 

ao tempo, deus também é

o próprio corpo em silêncio

 

Um dia para transpor tendo por alimento

a poeira da estrada que se estende

 

branca, do nascente ao poente e

que, lentamente, transforma-se em

 

riacho negro que passa sob a

ponte suspensa da Via Láctea

 

Ir, à outra margem, de acordo

com o que a própria ida engendra

 

Ora com o silvo das serpentes sob o passo

Ora andando sobre as águas do poema p. 38

 

֎

 

Considerando a frio, imparcialmente,

que o homem é triste, tosse e, no entanto

se acomoda em seu peito avermelhado,

que ele nada mais é do que compor-se

de dias, que é lúgubre mamífero e se penteia,

considerando isso e lembrando que o dia

é um punhado de pó de estrelas

que a noite, com sua pá, atira

sobre as pálpebras de sono,

que o céu tem som violeta sobre os

cabelos deste homem que trafega no poente

com cheiro de pólvora nas mãos

e que este homem, quando penetra

em sua amada, quer, talvez, voltar

Que o Sol é a solidão às claras

que a lua é um búzio numa toalha gralhazul

gargalhando o destino em crateras

que a sombra que nasceu comigo

espera de meu corpo um gesto que

ele possa, com amor, repeti-lo

Que o silêncio dos noivos é a voz do Amor

procurando uma boca por abrigo

e que as palavras dos que não se entendem

não são mais palavras mas sanguessugas na língua

Quem, entre dentes, a Roda da Fortuna mastiga o Fracasso

e que o diabo bebe as suas fezes sorrindo ao meu lado

Lembrando que amanhã, pela manhã talvez,

o mar venha desfazendo meus membros de areia e

me fazendo lembrar que, ao mesmo tempo,

não lembro de nada, a não ser de um ventre p. 44

 

֎

 

RESIDÊNCIA

 

Ao pisar o jardim da casa

cuidado para não afundar

 

os pés até os tornozelos fincando

fundas raízes no chão, apegado ali,

 

estátua plantada entre flores,

não haverá como ir ao mar

 

quando assolado pelo verão,

nem voltar ao calor do leito

 

se flagelado pelo inverno

Vivemos partindo de uma morada

 

que se ergue em todo lugar com

telhas de nuvens e paredes de vento

 

Não há o que abandonar quando,

caracol inverso, levamos a casa dentro p. 64

 

֎

 

Feito Ishmael em Moby Dick,

sempre que sinto na boca uma

 

amargura crescente, sempre

que há em minha alma um

 

novembro úmido e chuvoso

é tempo de fazer-me ao mar.

 

E munido de quase nada, só

da palavra que é puro sopro,

 

através dela inflo a vela e parto

em dois o ar e a água que levam

 

a asa da alma e o casco do corpo

ao encontro do belo monstro

 

que acena do horizonte com seu

olhar verde e vivo: o Desconhecido,

 

o sempre bem vindo irmão-

gêmeo da criação, ladrão do fogo

 

lançando envolto em nuvens

pelas frestas dos aposentos

 

o seguinte clarão: toda a água

em volta da casa já está estagnada,

 

pasto para hordas de mosquitos.

E, ouvindo isto, feito Ishmael

 

parto em dois o mar – poema

sempre a um passo do abismo p. 70

 

֎

 

A SOMBRA DA AUSÊNCIA

 

O corpo vai, a sombra fica.

Um eco sem voz que assombra

 

a sala, a mala sendo arrumada

para a viagem, que, dia-a-dia

 

se faz um pouco sem saber se

é volta ou ida – O copo quebra,

 

o sabor fica, a aura de um hálito

em torno à boca que se intensifica,

 

quando um conhecido fantasma

passa pelos terraços da memória

 

e evoca um nome, um aroma, uma

hora perdida entre as folhas secas

 

de um outono que se deteriora

conforme a mão do inverno o toca.

 

O céu se ensombra, o azul fica.

Em alguma dobra das pálpebras

 

da íris, dos cílios, sua luz habita p. 82

 

 

MOURO, Antônio. Silence river (Rio silêncio). Translated by Stefan Tobler. Todmorden (Inglaterra): Arc Publications, 2012.

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Silence river (Rio silêncio), do poeta e tradutor paraense Antônio Moura, edição publicada pela editora inglesa Arc Publications, em 2012. O livro, em 2008, recebeu o Prêmio John Dryden, na John Dryden Translation Competition (Londres – Inglaterra), com tradução vertida para o inglês por Stefan Tobler. A 1ª edição de “Rio Silêncio” é de 2004, pela Lumme Editor, de São Paulo.

Antônio Moura é autor, entre outros, de “Dez” (1996); Hong Kong & outros poemas (1999); A sombra da Ausência (2009) e A outra voz (2018).

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