sábado, 5 de março de 2011

POESIAS DE FRANCISCO MANGABEIRA

OS CÃES
Francisco Mangabeira
Quando o canhão raivoso atordoava o espaço
lançado em toda parte as sombras do terror,
e morriam, dormindo, as crianças no regaço
das mães que, olhando o céu, vasto zimbório de aço,
pediam compaixão, misericórdia, e amor...

E os homens, a gemer, caíam mutilados,
quase cegos de fúria e desesperação,
e pedaços de mãos e crânios decepados
voavam, a recordar trapos ensanguentados
passando na amplidão...

E no solo, aos montões, rolavam os feridos
chamando pelos seus em cruciantes ais,
somente vós, oh! cães! Íeis, compadecidos,
enxurgar-lhes com ânsia os membros doloridos
para que as chagas vis lhe não doessem mais.

Éreis doces e bons... tínheis no peito anseios
como os pássaros, quando erram por sobre o mar,
nos pêlos – o calor dos amorosos seios
fundas mágoas na voz, no coração – receios,
                    e mistérios – no olhar.

E ficáveis então famintos, mas velando
vossos donos, que a morte em breve ia colher...
E ganíes de pena, e soluçáveis, quando
eles iam de leve o corpo levantado
para cair de novo e, exânimes, morrer.

Quantas vezes, meu Deus, os míseros gemiam
entre nuvens de poeira avermelhada... e, após,
se lançavam o olhar em torno, mais sofriam,
porque junto de si a lastimá-los, viam
                    unicamente a vós!

Quantas vezes, ó cães, se acaso vos varava
uma bala inimiga, ao peso de revés,
não buscáveis uivando, aquele que vos dava
carinhos, e depois, cheios de lodo e baba,
morríes a rolar debaixo dos seus pés!

Quantas vezes à criança exausta e desmaiada,
em cuja alma luzia um fúlgido arrebol,
não íeis oscular a fronte banhada,
para abrigar-lhe assim a chaga escancarada
                    dos ardores do sol!

Quantos, quantos de vós, vendo morrer o dono,
não sentiam no peito um íntimo pungir,
e, contemplando o céu em místico abandono,
como a pedir piedade ao rei do excelso trono,
junto deles por fim iam também dormir!

Como a fome crescesse, eles, em certo dia,
resolveram então vos enxotar... e assim
pagaram tanto amor com tanta vilania...
e tristes um a um, em cáfila sombria,
                    sumistes-vos por fim.

II

Pobres cães! Pela tórrida esplanada
fugiram a ganir lugubremente...
Tinham aos pés a angústia acorrentada,
no olhar a névoa duma dor ingente.

Quando no céu aparecia a lua
iluminando as solidões e os fossos,
eles surgiam pela estrada nua,
magros e esguios, chocalhando os ossos.

E horrorisavam toda a soledade
com a música feral dos seus gemidos,
que eram como suspiros da saudade
e gritos de fantasmas perseguidos.

Caracolavam sobre pedras, tontos,
até que enfim caiam ofegantes...
E corriam depois para outros pontos
como um bando de lêmures errantes.

Incendiavam-se as árvores tranquilas
ao fulgor dos seus olhos abrasados,
que traziam nas rútilas pupilas
crateras de vulcões incendiados.

E o viajor descuidado que passasse
pela estrada, alta noite, sentiria
o frio do pavor gelar-lhe a face,
turvar-lhe a mente a nuvem da agonia.

Os cães ao encontro vinham-lhe, ansiosos,
como presos de elétricas centelhas
e beijavam-lhe as plantas, respeitosos,
a sacudir as caudas e as orelhas.

Depois fugiam e, seu tropel imenso,
metiam-se nos antros e nas furnas,
causando medo ao viajor suspenso,
que cria ver aparições noturnas.

Outras vezes, atentos, escutavam
rugir longe o canhão... Nesse momento
parecia que os míseros choravam,
que tinham alma, e tinham sentimento.

Pensavam nos seus donos, que nessa hora
talvez morressem numa luta insana...
e os cães (não acreditem muito embora)
tinham no olhar uma tristeza humana.

Viam de novo, atônitos de assombros,
o seu senhor que, com descuido e graça,
saía cedo de espingarda ao ombro,
acompanhado pelos cães de caça.

Dava-se isto em certos dias de oiro
em que fulgia o sol no azul do espaço,
como um guerreiro triunfante e loiro
de lança em riste e capacete de aço.

Os pobres cães, tristíssimos e aflitos,
sob a impressão cruel dessas lembranças,
rolavam pela terra dando gritos,
a soluçar, como se fossem crianças.

Iam seguindo em direção ao tiros
como enleados, mas voltavam tendo
retratada no olhar e nos suspiros
a grande dor dum coração morrendo.

E o viajor que passasse, à noite, pelos
caminhos onde estavam suas furnas,
sentiria arrepiados os cabelos,
crendo que via aparições noturnas.

III

Depois, quando não mais se ouviram tiros, eles
voltaram, tendo a vista horrorisada e absorta...
E viram, com espanto, as casas incendiadas,
esqueletos no chão, cabeças degoladas...
Enfim, todo o pavor duma cidade morta.

E gemendo, e ganindo alucinadamente,
num desespero tal que o verso não traduz,
remexiam com ânsia as pedras e os destroços,
arrancando daí trapos de vestes e ossos,
com os olhos tristes como os olhos de Jesus.

Metiam o focinho agudo entre os escombros
procurando beijar cadáveres amados,
que cobriam depois de terra fresca e nova,
apresentando assim a derradeira prova
de afeto aos donos seus, então inanimados...

Erguiam em silêncio os olhos cismadores,
como que numa prece, à cúpula do céu...
Paravam, contemplando os sítios onde de antes
viveram, e depois caiam arquejantes,
sentindo dentro em si um hórrido escarcéu.

Numa angústia sem fim, iam passando os dias,
e noites a chorar junto das sepulturas,
até que pouco a pouco a fome, a sede e as penas
os prostaram, e, à luz das regiões serenas,
eles morreram, como angélicas criaturas...

E assim, por uma lei desconhecida e estranha,
quando eram sem amor até as próprias mães,
e os homens entre si lutavam como feras,
esse rancor brutal de hienas e panteras
se mudou em piedade e compaixão nos cães!


SONETO DE DESOLAÇÃO
Francisco Mangabeira

Vai-te, pois, oh visão ideal do meu desterro...
Vai... Porque em teu lugar me fica o desangano...
São fundas e sem fim as trevas em que erro,
Como um barco sem leme entre os parcéis do oceano.

Num fúnebre caixão feito de bronze e ferro,
Vai um morto... Não tem para cobri-lo um pano.
É meu amor... Ninguém assiste ao enterro...
Ninguém chora... E quem chora a morte de um tirano?

Ai! mas uma outra dor dentro de mim se agita...
O amor que eu sepultei renasce na saudade,
E esta saudade atroz meus prantos ressuscita...

E amo-te ainda mais do que te amava outrora...
Porque este meu amor é como a imensidade,
Onde há o horror da noite e os encantos da aurora.


SUPLÍCIO ETERNO
Francisco Mangabeira

Não devo amá-la... e amo-a com loucura!
Quero esquecê-la... e trago-a na lembrança!
Ai! quem me livra deste mal sem cura
A que o destino trágico me lança?

Uma nuvem de tédio e amargura
Cobre-me a loira estrela da esperança...
Tudo cansa por fim na vida escura,
Só este amor infindo é que não cansa...

Se os olhos cerro, vejo-a nos meus sonhos;
Se à noite acordo, sinto que enlouqueço
De uma angústia nos vórtices medonhos...

E esta morte em que vivo jamais finda,
Pois quanto mais procuro ver se a esqueço
Sinto que a adoro muito mais ainda!


SEPULCRO EM FLOR
Francisco Mangabeira

Ela morreu! Seu rosto descorado
                Lembra um flor de cera,
Um lírio que murchou, acalentado
Pelos beijos de amor da primavera.

Seu leito ainda está quente e em desalinho,
                Como que já saudoso
Por ver que ficará triste e sozinho,
Como o céu sem um ponto luminoso.

O travesseiro azul de velbutina
                E de fronha arrendada
Guarda os sonhos finais dessa menina,
Os últimos clarões dessa alvorada.

Teus olhos, onde outrora
Tantas estrelas palpitaram juntas,
                São a estrada onde agora
Segue um cortejo de ilusões defuntas.

Apesar de tão pálida, dir-se-ia
Que inda tem vida e está agonizando,
Bem como Vênus quando raia o dia.
E o dia dela agora ia raiando.

                Mas está morta... Enorme
Dulçor enche seu rosto de meiguice.
                Parece até que dorme
                E dorme... e sonha... e ri-se...

Beijem-lhe a face desbotada e quieta
                Como o amor de um doente...
Mas não orvalhe o pranto essa violeta
Que morreu linda, como o sol poente.

Cruzem-lhe as mãos no peito,
Fechem de manso os olhos dessa louca...
E encham de margaridas o seu leito
E de beijos constelem sua boca...

                Em um lenço perfumado
Envolva em rendas o seu rosto lindo;
E, pensando talvez no namorado,
                Que ela fique dormindo.

E quando na canoa mortuária
For o seu corpo para o cemitério,
O vento cantará estranha ária
                Pelo palácio etéreo.

E o Amazonas, desfeito em grandes mágoas,
                Há de chorar à toa...
Hão de muito chorar as suas águas
Acompanhando a fúnebre canoa.

                Só eu não verto pranto
Porque sei que é feliz esta donzela,
Que entra no céu maravilhado e santo
                De palma e de capela.

Que tem pois que nas trevas apodreça
                Sem vida a carne tua
E os vibriões perfurem-te a cabeça
E larvas te andem pela espádua nua?

Que tem que fiques reduzida a osso
                No horror da terra avara?
Se a tua alma saiu do calabouço
                Tão pura como entrara?

Dorme e sonha na plaga etérea e calma,
                Que a dor nunca te abranja...
Porque levas ao céu também tua alma
Engrinaldada em flores de laranja.

Capatará, 05 de novembro de 1903

3 comentários:

Luciane Moraes disse...

Bom dia! Meu amigo Isaac

Ótimos poemas* Amei*

Amigo tem um selo pra te lá no meu blog. Espero que goste.

Um final de semana abençoado pra vc* TUDO DE BOM*

Deus te abençoe!

Abraços,
Lu

Unknown disse...

Adorei seu blog... Já estou seguindo-o. E também já tenho nos meus favoritos lá no meariau blog. Gost que vc fizesse o mesmo com o meu...

nazarenoo.lima@gmail.com disse...

Parabéns ALMA ACREANA, a cultura viverás enquanto viverás tu! E que vivas por muitos e muitos anos.
Nazareno Lima.