segunda-feira, 25 de abril de 2011

Série A POESIA ACREANA > LEILA JALUL

“Leila Jalul tem um estilo próprio, de palavras fortes, ao mesmo tempo despojado, como as outras escritoras acreanas, um discurso liberado das convenções, mais solto, mais coloquial...”
Margarete Edul Prado de Souza Lopes
em "Motivos de Mulher na Amazônia"


Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos. Nessa afirmação de uma personagem do romance As meninas (1975) de Lygia Fagundes Telles está a raiz do fenômeno de transformação que vem sendo vivido pela mulher desde o século passado, acentua Nelly Novaes Coelho em A Literatura feminina no Brasil Contemporâneo. A mulher começa a assumir a Palavra – consciente de seu poder para criar ou destruir, consagrar ou transgredir a Ordem imposta ao mundo. A Palavra da Mulher se assume então como geratriz/nutriz. E assim, o século XX viu (in) surgir a Palavra marcante de uma Hilda Hilst, uma Cecília Meireles, uma Clarice Lispector, uma Yêda Schmaltz, uma Olga Savary, e tantas outras não menos importantes.

No Acre, sobretudo a partir da década de 70, o véu do silêncio, que por anos envolvera a voz feminina, começou a ser retirado. A Palavra da Mulher começa a ganhar expressão e força, especialmente com o pioneirismo das infatigáveis Fátima Almeida e Francis Mary, acompanhadas mais adiante por Terezinha Migueis, Florentina Esteves e Robélia Fernandes. No entanto, é, principalmente, penso, em Leila Jalul que a Palavra da mulher, a voz feminina, assume toda a sua pujança, de um jeito particular naquilo que diz respeito à busca empreendida pela mulher no encalço de sua própria imagem e de seu novo lugar no mundo.

Leila Jalul iniciou sua atividade literária na década de 90 com o livro de poesia “Coisas de Mulher, coisas comuns, coisas de mim”, publicado em Rio Branco, em 1997. O segundo livro, nesse gênero, “Absinto Maior”, só sairia dez anos depois, em 2007. Lembro-me que, numa de minhas férias em Rio Branco, numa breve visita à Biblioteca da Floresta, me deparei, pela primeira vez, com a obra de Leila Jalul, mais precisamente com o livro Suindara. Desde então cair em seus encantos, pois, como acertadamente assinalara Juarez Nogueira, ela tem a manha de fisgar a palavra e com a palavra fisgar a gente.

A poesia de Jalul é marcada por uma voz feminina que fala de suas dores e descompassos. Conforme estudo da professora Margarete Edul Prado, autoridade em literatura feminina, encontramos na poesia de Leila uma voz de protesto, de denúncia do mal-estar da mulher num mundo androcêntrico que a oprime, de constatação da condição feminina sempre submissa, agredida, constatação de preconceitos que a sociedade criou sobre a mulher. Em outros poemas, continua a professora, a voz feminina desabafa sobre o sofrimento contido em todas as mulheres, que as iguala em perdas, em vazios, em sonhos, em vontade de cicatrizar as feridas de uma vida sempre sofrida e marcada pela submissão, opressão e a dor.

O poema “Entretextando”, um dos mais belos, é um bom exemplo para mostrar esse jogo de forças entre o feminino e o masculino. Nesse poema, Leila, de uma maneira muito natural, entrelaça seus versos aos versos de A Gota d’Água de Paulo Pontes e Chico Buarque, e trecho de Adios Ayacucho, de Júlio Ortega, que em nada quebram a cadência do poema, mas o harmonizam e reforçam o intento da poeta. A voz que perpassa o poema é a de uma mulher, uma mulher que se descobre traída pelo homem que até então confiava: “eu cria em ti / te julgava bondoso”. Depois vem a dura constatação: “era tudo mentira”. Nesse sentido, o amor se torna então algo desconcertante: “eu fiquei como podia / quebrada, imobilizada, estanque e virgem”, algo que desconstrói o ser por completo. Porém, é também um libertar-se desse amor escravizante, que rompe a condição submissa, e agora passa a interpelar: “já que estou livre / venças teu medo”. E vai além chamando à responsabilidade o seu “algoz”: “te escondas, não! / casa no padre!”. Por fim, embora permaneçam as cicatrizes, vem a superação: “tua dor em mim está passando!”, que se dá aos poucos pelo esquecimento, embora permaneça certa mágoa, a gota d’água que pode tudo pôr a perder.

O que, particularmente, me fascina, tanto no verso quanto na prosa de Leila Jalul, é o seu jeito, que é todo seu, irreverente de construir suas personagens ou de dizer sua Palavra, sem hipocrisia, sem arrodeios. Por isso, aqueles que, no primeiro momento, entram em contato com seus textos podem sentir certo impacto. Mas à medida que vamos imergindo em seu universo, esse impacto se torna encanto.

Leila Jalul tem se apresentado cada vez mais como uma importante referência para as letras acreanas, sobretudo no que diz respeito à crônica e a poesia. A Academia Acreana muito se engrandeceria se a inscrevesse entre seus imortais, pois competência e talento não lhe faltam, e junte-se a isso, uma longa história de serviço e amor dedicados a sua terra natal.

***

Aos amigos, que me dou em palavras
me dou inteira
e peço
           não me emprestem
           não me destaquem
           não me reproduzam
                          nem no total
                          nem no parcialmente
                          não posso ser vendida separadamente
não me leiam perto de crianças
nem me citem perto de adolescentes
me queiram, se possível, sempre bem
não me queimem ou rasguem
me deixem ser inteira
sempre
não me comentem com as feministas
           briguei com a Beth, contestei a Marta,
           estou de mal com elas
e me reservem um bom lugar no coração
pois que estante é lugar de livros!

                                                Leila Jalul
                                                em "Das cobras, meu veneno"

***

ENTRETEXTANDO
Leila Jalul

“Que venha e volte, entre e saia, que monte
e desmonte, que faça e que desfaça...
Mulher é embrulho feito para esperar,
sempre esperar... Que ele venha jantar
ou não, que feche a cara ou faça graça,
que te ache bonita ou te ache feia,
mãe, criança, puta, santa madona
A mulher é uma espécie de poltrona
que assume a forma da vontade alheia”

aí eu quis e fui entender tudo
andei à cata de qualquer informação,
qualquer vestígio,
que me indicasse o que acontecia...
nada tinha significado
nada era compreensível
a desculpa maior, rota e esfarrapada...
mas que havia alguma coisa...
lá isso havia...
o tom baixo da tua voz,
o carinho de um dia,
a grosseria do outro,
o beijo ardente,
o riso cínico,
os tons sinceros,
não me deixavam ver nem mais ou menos
nem menos ou mais
a justa razão do ser
e ao mesmo tempo do já era...
nem mais, nem menos, o que mesmo havia
e se mesmo havia...

“Amor com prazo fixo vale nada
Eu achei que você estava ao meu lado
de olhos fechados, sem hora marcada,
dormindo sem receio e sem recado
pra acordar. Mas não, você estava alerta,
deitado com um pé fora da cama,
esperando chegar melhor oferta
pra esmagar no cinzeiro a velha chama
e correr ao sabor de uma ambição
que assim, da noite pro dia, eu deixei
de satisfazer...”

confusão é sempre confusão
da parte de quem é claro não deixa de ser confusão
imagine confusão de quem é confuso
de quem sempre foi esquisito e escuso
valha-me Deus!
valha-me Cristo!
e tu ainda tinhas o aval da minha boa fé...

eu cria em ti
eu te julgava bondoso...
bau bau bau... era tudo mentira, eras todo mentira...
eras perfeito em apagar o dia de ontem
com mentiras aplicadas no hoje e
idéias vagas e promissoras do que poderia ser o amanhã...

por vezes, nos fizeram a mim e a ti acreditar no mal além
da imaginação que a tua então amante Dalva nos poderia,
me poderia fazer
era o pneu que furava
o rolamento que quebrava
era o exu em que te transformavas
era a força maligna que não nos deixava ir...

“... primeiro me cortaram a falange do
dedo pequeno, e eu nem conta me dei.
Só vi o sangue, quando me cortaram
a falange do outro dedo. Gritei muito.
... outra granada de fósforo explodiu
as minhas costas esvaziando minha
cabeça e abrindo-me o estômago
como se fosse um trapo.
... alguém me levantou pelo pé, e descobri
então que me faltava a perna esquerda...
... antes de chegar ao buraco que seria
meu túmulo, me rechearam a barriga com
palha seca, rindo-se de mim, como se eu
fosse um(a) boneco(a) feito(a) para ser
desfeito(a).”

e eu fiquei como podia:
quebrada, imobilizada, estanque e virgem,
tamanhas eram as dúvidas...

“Tudo está na natureza
encadeado e em movimento
cuspe, veneno, tristeza,
carne, moinho, lamento,
ódio, dor, cebola e coentro,
gordura, sangue, frieza,
isso tudo está no centro
de uma mesma e estranha mesa
Misture cada elemento
uma pitada de dor,
uma colher de fomento,
uma gota de terror
o suco dos sentimentos
raiva, medo ou desamor,
produz novos condimentos,

lágrima, pus e suor
Mas, inverta o segmento,
intensifique a mistura,
temperódio, lagrimento,
sangalho com tristezura,
carnento, venemoinho,
remexa tudo por dentro,
passe tudo no moinho,

moa a carne, sangre o coentro,
chore e envenene a gordura
Você terá um ungüento,
uma baba, grossa e escura,
essência do meu tormento
e molho de uma fritura
de paladar violento
que, engolindo, a criatura
repara o meu sofrimento
co’a morte, lenta e segura”

mas posso ainda te pedir um favor e peço,
sem receio, o que prometeste
sem sequer me importar mais em misturar tu com você:
observe
averigüe
sonde
especule
siga
vá atrás
se informe
veja
tome tento
o que foi mesmo que de fato houve?
pra teu governo
estou sã e salva da boca dos sapos
já não me assusta cocô de gavião com pétalas de flor de urucum...
minha calcinha de renda congelada e
fios de cabelo emaranhados em pernas de defunto ruim,
já não me importam
pentelhos amarrados com dois nós de fitas pretas
aos pés de cruzes de quaisquer das bandas
e nossos nomes fincados em velas roxas
depositados todos num só dia
no cemitério da Siqueira Campos
mas eu te peço baixinho e por ti mesmo, já que estou livre
venças o teu medo
não és um macho que comanda a fêmea?
por mim, agora só procuro a Deus e tudo que há de força
persigo descobrir onde é a festa
que se festeja e em que se brinda a vida

vade retro, rocambole!

“Eles pensam que a maré vai, mas nunca volta
Até agora eles estavam comandando
o meu destino e eu fui, fui, fui, fui, recuando,
recolhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta
e tão forte quanto eles me imaginam fraca
Quando eles virem invertida a correnteza,
quero saber se eles resistem à surpresa,
quero ver como eles reagem à ressaca”

“Acalmar é claro... É dever do injustiçado
manter sempre a cabeça fria, a qualquer custo
Enquanto que a raiva, é um privilégio do injusto
Por isso é que você tá tão qualificado
a gritar comigo e pedir calma em resposta”

Já estou calma, tranquiliza-te!
tenhas cisma de mim não. Mordo não!
Podes deixar, pois, meus temores, minhas dores,
meus anseios estão em ordem
tá tudo arrumadinho que nem soldadinhos de chumbo,
em quarto de menino rico
só não pode mexer, só não pode brincar.
Te assustes, não!
Eles só se mexem se eu disser: ordinários, marchem!
Fiques bravo não,
tua dor em mim está passando!

Ó filho da puta! põe a cara no mundo!
te escondas, não!
casa no padre!
divulga teu endereço pros teus!
chama teus amigos pra jantar!
comemora o tempo do teu tempo!
Festeja tua maldade!
já somos pretérito perfeito!
não precisas mais te aborrecer!
grita mais comigo não!

“Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d’água
Pode ser a gota d’água...”

(Citei: trechos de A Gota d’Água – Paulo Pontes e Chico Buarque e trecho de Adios Ayacucho, de Júlio Ortega).

LIQUIDO-ME
Leila Jalul

“Estou à venda. E fico de fora aumentando o preço.
Façam o lance!”.
          Pietra Carreras

Estou vendendo um par de sapatos rosa,
um uniforme de filha de Maria,
um véu e um colar de pérolas desbotados.
Vai junto um vestido esvoaçante, um brinco de princesa, uma toalha felpuda
amarelada com o monograma LJ entrelaçado,
em letras góticas, jamais utilizada.
Estou vendendo textos nunca publicados.
E, de presente a cada comprador, dôo meus poemas um tanto ultrapassados.
Poemas amarrados com cordões fracos de esperar passar o tempo.
Liquido-me apenas hoje.
O preço de amanhã será ainda mais em conta.

ACHADOS E PERDIDOS
Leila Jalul

"dias dementes
mente oca
lábio amargo
alma louca
boca silente"
          Eliane Stoducto

Não sei onde me andei
nesses buracos inférteis
nem quero me atrever a pensar
que desaprendi a idéia de ser breve
e único o tempo que inda tenho
de me perder de vez
ou de encontrar meus restos...
uma perna aqui
um olho ali
o desencanto no riso
está achado.

ORFANDADE
Leila Jalul

"Se alguém pergunta o porquê do fazer,
responde-se o porquê do perguntar!"
          José Eduardo Gramani

No silêncio da noite uma pergunta:
de onde me chegaram a tristeza,
o riso empoado,
as vestes pobres?
de quem herdei a vontade de chorar no meio de uma festa?
de quem recebi este legado infame
de ser poeta que não sabe rir da morte,
nem fazer da agonia da febre um sonho ou um poema.
Quem me deixou assim tão inquieta?
Sou filha da não inspiração?
Ou devo afirmar não ser poeta?

MASOCAÇÃO
Leila Jalul

"Por não ser, o amor me nega.
Por se negar, o amor me desfaz".
          Saramar Mendes

Ah! Como eu adoro uma calamidade pública...
como eu escolho emergir pro fundo
e brincar na lama
e amamentar a dor
ah! como eu adoro!
banhar-me nas minhas próprias lavas,
chicotear-me , atar-me com minhas próprias tripas...
Ah! como eu adoro!
invocar espíritos cancerosos para chorar
e é tão fácil!
vou nas gavetas e reavivo o tempo da tuberculose
arranco o Cruz e Souza das cavernas
é como se vivesse nas ruelas de N. Sra. do Desterro, hoje Florianópolis.
Ah! como eu adoro!
fazer aliteração com os sons da minha hemoptise
de vermelho cardeal,
de emitir vagidos,
ah! como eu adoro!
fazer bandeiras com tiras da minha pele
que eu mesma retiro e seco ao sol,
com o sal por mim retido,
esfrangalhar a alma, fritá-la em alho e óleo
ah! como eu adoro!
me enterrar torrando na quentura do fogo que acendi
que me cozinha viva
ah! como eu adoro!
deixar cair uma mosca em minha sopa
e ser a mosca no meu quarto
a zumbizar!

TERROR NOTURNO
Leila Jalul

"E entre lençóis e travesseiros
a epifania:
eu sou cretina
de vez em sempre".
          Anna Skiper

Noite dessas, em posição de feto,
peguei a mão direita,
tamborilei as idéias,
me perguntei onde ele anda,
beijando os beijos que só nós conhecíamos,
e que nada neste mundo impede que outras possam conhecer...
na posião de parto,
me tamborilei todinha
sentindo o fluxo e o refluxo do meu sangue
o arrepiar dos membros
o gozo gostoso das partes
das de cima, das de baixo,
numa forte impressão sacro-lasciva
de que saías de mim, estavas ao lado
na posição de pé,
me senti cretina!
se não a única, pelo menos, a mais cretina!

*
Nota: Poemas publicados com a licença da autora, Leila Jalul, que gentilmente nos cedeu. O primeiro poema encontra-se ao final do livro “Das cobras, meu veneno” (2009) e os demais são do livro “Absinto Maior” (2007).
*
Fonte das citações:
LOPES, Margarete Edul Prado de Souza. Motivos de Mulher na Amazônia: produção de autoras acreanas no século XX. Rio Branco: EDUFAC, 2006.
COELHO, Nelly Novaes. A Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.

Um comentário:

Jalul disse...

Enfim pude ler a Margarete Edul, que é minha amiga. Sempre muito ocupada!!!
Obrigada Isaac, por tuas palavras e pelas "análises! da Maga.
Tu não existes!