terça-feira, 20 de setembro de 2011

CHICO, O CONTADOR DE HISTÓRIAS

"Não sei da complexidade dos animais, sei da complexidade do ser humano. Cada um é cada um. Cada indivíduo tem uma história para contar diferente da do outro. Cada pessoa constrói sua história singularmente. Ninguém é igual a ninguém. Somos todos semelhantes e diferentes."
Francisco Gregório Filho


Francisco Gregório Filho, recém empossado na Academia Acreana de Letras, nasceu encantado. Sim, porque só quem nasce encantado é capaz de encantar a outros. Gregório Filho é mais que um contador de histórias, é um encantador de gentes. Encanta pelo que conta. Encanta pelo que escreve. Encanta pelo que faz.

Suas lembranças amarosas, inebriadas de grávidas histórias, para nós se tornam guardados do coração na difícil passagem do tempo e da gente. Um menino pipeiro há de se enconder sob aquela alva barba. Chico nascido de tantos chicos revela a força de um nome e a vocação de um coração. Quem aprendeu a contar há muito aprendeu a amar.

Como acreanófilo que sou é meu dever partilhar as coisas que aquecem nosso coração e nos despertam ainda mais para a vida. Eis duas agradáveis leituras.

Lembranças amorosas foi o primeiro livro publicado por Gregório Filho, em 1997. Como denuncia o próprio título, aí estão as histórias, as lembranças amorosas do Chico dos tempos de menino, histórias que anotava em cadernos sem pauta adquiridos especialmente com essa intenção ou presenteados pelo avô. Ao todo, vinte e uma historietas que se ler sem vontade de parar. Sobre o fascínio que exerce a escrita de Gregório Filho, recordo-me dos versos de Cecília Meireles: “Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa!”.

Difícil Passagem, de 2003, é outro encanto de leitura. Chico vai desenrolando sua história desde a avó, uma Kaxinawá das margens do Rio Jordão até as suas primeiras paixões e romances. É a difícil passagem do Chico menino para o Chico homem, do Chico que usava “calça, cinto, meia, sapato, camisa, relógio, carteira com documentos, carteirinha de estudante, um pente, lenços de papel no bolso e ainda uma caneta” para o Chico dos livros e dos amigos do Clube da Leitura. É ainda o Chico apaixonado por pipas. A pipa e o menino vivem no deslizar dos sonhos sob o céu que passa.

Sou um pobre cego que vivo do coração da humanidade é o que expressa uma das personagens de Fogo Morto de José Lins do Rego. Também, às vezes, me creio como esse cego, só que vivo do coração da literatura, que pulsa no peito de cada poeta, de cada romancista, de cada cronista... tal como ocorre em Francisco Gregório Filho.

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DOS  GIRASSÓIS
Francisco Gregório Filho

Década de sessenta, estudante do ginásio no Colégio Acreano. Uma passagem de minha história de leitor:
Com as repercussões que as leituras de meus livros particulares e do acervo do nosso clube de leitura me proporcionavam na escola junto aos professores, resolvi me afastar dos livros de literatura. Tinha ganho apelidos, tinha sido suspenso por três dias, minha professora de português zangara-se comigo, entre tantos problemas que se iam acumulando, causados pelo gosto de ler e de escrever.

Percebi que o excesso de imaginação estava custando caro para mim. A literatura, os contos, a poesia, os romances me estimulavam a escrever e a imaginar licenças poéticas. A criar palavras e textos que a escola não aceitava. E isso estava dificultando minha relação com os professores.

Queria interpretar os textos de um outro ponto de vista, de um outro ângulo. Queria dizer dos horizontes que as histórias me faziam ampliar. Mas sempre me envolvia em embates com os professores e, como eles detinham a palavra final, acabava repreendido e até mesmo constrangido. Mesmo com a torcida a meu favor, dos colegas de classe, o ponto de vista dos professores era o definitivo. Queríamos, eu e meus amigos, criar argumentos sobre as questões. Mariazinha, minha colega, chamou nossos argumentos de teses cambiantes. Desejávamos cambiar idéias e percepções diferentes. Mas, observávamos que os professores temiam nossas propostas. Chegaram nos acusar de delirantes.

Pois bem, resolvi me afastar dos livros de histórias de ficção e de poesia e me dedicar mais aos livros didáticos. Foi um tempo mais calmo. Combinamos, eu e meus amigos, em fazer uma aliança com os professores em torno dos livros didáticos para poder receber sua simpatia e obter notas melhores. Essa aliança surtiu efeitos. Passamos a concordar com as respostas que vinham nesses livros e a merecer boas pontuações.

Um dia, nossa professora de artes comentou que observara nossa mudança de comportamento e não concordava com a nossa aliança. Explicamos a ela nossa estratégia para poder passar de série. Então, ela nos convidou para formarmos um grupo de teatro na escola. Um grupo de teatro em que poderíamos colocar nossos pontos de vista. Foi uma vibração geral. Todos nós, excitantes, eufóricos. A partir daí, o grande barato da escola era o grupo de teatro. O nome dessa professora: Dalva. Nossa grande mestra. Dalva promovia a leitura de textos dramáticos, comentava sobre os dramaturgos, nos estimulava a escrever nossas cenas e as experimentava nas dramatizações. Incentivava a criação e confecção de cenários e de projetos de iluminação. Nós criávamos, confeccionávamos e representávamos. Participávamos de todos os momentos da produção dos espetáculos. Benza Deus... Foram os melhores tempos de escola.

Além de todo o prazer de participar do grupo, nesse período, aconteceu um fato que me fascinou: a professora Dalva propôs, num dos exercícios de improvisação, que eu fizesse um girassol nas quatro estações. Confesso a vocês que até então não observara nenhum girassol nem tinha ainda me aventurado nas leituras sobre girassóis. Fiquei travado, sem saber por onde iniciar. Levantei os braços, comecei a circular lentamente. Senti um vazio. Não estava sendo convincente para mim mesmo, nem possivelmente, para mais ninguém.

Parei o exercício, olhei para a professora e confessei: “Professora, nunca vi de perto um girassol, nunca li sobre girassóis, ignoro todas as reações do girassol às estações do ano. Sei que girassol é uma flor, bonita, de tons amarelados e que, como sugere o nome, gira com o sol.”

Dalva era mesmo uma professora instigante e pediu que eu desenvolvesse outro exercício: que atravessasse um túnel escuro, pisando ora em pedras, ora em areia, ora em lama e finalmente em asfalto. Demonstrei com o corpo essas diferentes sensações que imaginava experimentar.

Victor, um colega de turma, disse-nos que seu pai tinha um sítio com alguns canteiros de girassóis. A professora conversou então com o pai do Victor e organizou um passeio ao sítio para que observássemos de perto os girassóis. Depois, convidou-nos para uma pesquisa na biblioteca. Levantamos uma bibliografia sobre girassóis. Foi uma descoberta e tanto. A Dalva e os girassóis. Nossa estrela Dalva. Mestra. Professora. Voltei aos livros de literatura pelas mãos da professora Dalva e pelo grupo de teatro. Assim, penso, tornei-me um interessado por leitura e por essas questões complexas, em torno da formação de leitores.


Nota: crônica retirada do site Lima Coelho, publicada originalmente em: www2.uol.com.br/pagina20/10072005/cronica.htm. Faz parte do livro Lembranças Amorosas, editora Global.

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