O barranco alto. Fronteira entre dois
caminhos, o da terra e o da água. A lama vigia o fluxo do rio. Águas que vêm de
muito acima. Além do além. Minha primeira percepção é da existência de um reino
encantado. Mencionam-me a fada das águas, onde o rio começa. Varinha de condão
espargindo estrelas voláteis. Vai, água das águas, desce nos leitos, toca na
raiz das florestas, e vai até o mar.
A construção do rio, pela boca do povo. O demais, minha sôfrega imaginação. Os peixes, os jacarés, as cobras, as arraias. A cobra-grande, o seu palácio, no fundo. O farol de seus olhos, iluminando barranco para agarrar gente e revertê-la ao seu domínio tirânico de rainha, a esfera dos espaços de ouro e prata. Inextinguíveis curiosidade e medo.
O rio. Caminho de baixar até a cidade grande. Chegaria a hora de ir-me, também, com essas águas. Era um indefinido fim do ano, marcado pelo calendário da família. A esperança consumia projetos inquietantes. Estar numa cidade verdadeira. Cidades semeiam atrações, novidades para os meus olhos ávidos do desconhecido.
Só o rio poderia levar-me aos países de sonho. Descobri que a viagem era medida pelo tempo. Belém, vinte dias. Mas o rio, dominador e dogmático, alterava os planos e agendas. Se proibisse água para navegar tranquilamente até o Amazonas. Este, sim, mestre das águas vivas, onipotentes a qualquer hora. A primeira lição que o rio me ensinou. O sentido do Tempo.
Minha energia gestual principiava no rio. No encanto e nos mistérios que todo rio exerce no espírito dos meninos. Na pesca de tarrafa. Na pesca de caniço. No banho lúdico. No passeio de canoa ou de batelão a motogodile. No anseio de libertar-me. Descer ao sabor da correnteza das águas. Descer.
Libertação? De quê? Se todo o meu mundo estava inteiro, ali. Belém do Pará, meu céu nativo, era incapaz de me oferecer montagem real. Dela saíra com a inconsciência dos seres recém-nascidos. O Acre, por primeiro, entrou nos meus olhos, nos meus poros, nos meus sentidos. Assisti-o, assimilei-o com o ritmo de criatura iniciante. E do Acre, aqueles vales perdidos em verdes imensos.
Enfrento os enigmas humanos. A segunda lição aprendida com o rio. O homem, ser inquieto, arremessa visão, sempre, para o que há de vir. O esperado. Libertação, realização, satisfação. Seja o que for. Mas, liberdade. Até de sonhar, o que, cedo, aprendi a fazer.
Tinha cinco anos de idade. As alamedas do mundo começaram a franquear percepções do ver e do sentir. Os espaços se abriam, correntios e insinuantes. E o rio, conduto de augúrios, virtuose de promessas e de utopias, tomava conta de minha cosmovisão. De noite, os sonhos que traziam imagens de fuga alada, ente paredões de mata. A levitação libertava alegria de cavalgar águas profundas. Eu abria caminho nas voltas e nos estirões do rio, como barco fantasma. E chegava à cidade grande. Confusa, angustiante, perturbadora.
O sonho, com frequência, decompunha a imaginação do menino. A paisagem vista do sonho era a do Tempo, a que eu desejava me antecipar. Aprendi, de novo, com o rio, a predestinação do ânimo consentido. Mas o essencial, o concreto, era o rio correr de baixada. Encher. Alagar. Vazar. Vazando o rio agressivo, anarquista, oferecia a voluptuosidade dos barrancos lamacentos, regados de adubos, à exuberância de vários verdes. Então, germina, como se fossem cascatas de leite e mel, a minha flor lilás. Tão frágil. Basta um toque e ela oscila e murcha, alma arrancada de seu imo. Uma lavra de lilases, em forma de pequeninos lírios, eu, acalentando a imagem colorida no roteiro simples da beleza. Olhar os lírios do barranco. Êxtase para olhos profundos.*
TOCANTINS, Leandro. Os olhos inocentes. Rio
de Janeiro: Philobiblion, 1984. p.27-29
*Por instância de amigos que leram os originais deste livro, e até mesmo
por natural curiosidade, precurei investigar o nome da florzinha lilás. Antonio
Prado, atual prefeito do Município de Tarauacá, onde se localizam os cenários
de Os olhos inocentes, informou-me,
pelo telégrafo, que ela possui a denominação de gitirana. O botânico do Museu
Nacional, Luiz Emygdio de Mello Filho, amigo a quem recorri, sugeriu o exame do
material que, a pedido meu, foi coletado no Acre por Haroldo Costa,
representante do governo acreano, no Rio de Janeiro. Luiz Emygdio identificou a
planta. É a espécie Ipomea ramosíssima
(Pir.) Choisy, rastejante e florística, também trepadeira, muito profusa, que
nasce espontaneamente e se propaga com grande rapidez. Comum no Acre, no
Amazonas, e no Equador, no Peru, na Bolívia amazônicos. Luiz Emygdio integrou
as amostras no magnífico herbário do Museu Nacional, onde será o primeiro
exemplar coletado no Brasil. E propôs registro no catálogo científico:
“Gitirana do Acre”, desde que há várias espécies de gitirana em outras partes
do Brasil. Tropical (o gênero Ipomea
é pantropical), outra espécie, com bastante semelhança, é a Ipomea pescaprae Roth. (vulgo
salsa-de-praia, ou gitirana), que acompanha as formações vegetais do litoral
brasileiro. A planta, no Acre, é também chamada de salsa, mas o nome
predominante é gitirana.
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