quinta-feira, 28 de maio de 2020

OS CACHINAUÁS: Ligeiras notas sobre seus usos e costumes

Luiz Sombra

Jornal do Commercio, 1913

Índios do rio Tarauacá, maloca do “Cupu”, ainda selvagens em 1910. Fonte: O Juruá Federal (1922), de J. M. B. Castello Branco Sobrinho.

Achava-me em Fevereiro de 1905 servindo no Alto Juruá à disposição do Sr. Coronel Dr. Thaumaturgo de Azevedo, hoje General e então honroso’ e infatigável Prefeito daquelle Departamento do Acre, quando fui um dia surpreendido com a ordem de seguir no carácter de seu delegado para o alto Tarauacá, região ainda pouco conhecida daquella Prefeitura e cuja administração local foi-me assim confiada.

Pelas instrucções annexas à portaria de minha nomeação eram-me conferidas, entre outros, plenos poderes para a repressão das correrias de índios que se faziam naquelle rio, e que ainda lá se fazem, não só lá como em todo o Amazonas, onde constituem o esporte predilecto de muitos seringueiros durante os lazeres’ da safra.

A essa incumbência dei o mais cabal e eficaz desempenho, embora com isso arriscasse a vida, sacrificando a saúde e acarretasse a animosidade de alguns dos muitos potentados que dominam naquellas afastadas plagas, cujos habitantes em sua maioria nutrem o veros preconceito de que não é crime nem pecado matar índios, porque elles são pagãos; ou infideles, como dizem os peruanos, seus matadores profissionaes e com quem muitas vezes os brasileiros contractam a expulsão ou extermínio dos índios existentes nos seringaes que exploram a trôco da devastação gratuita dos cauchaes por parte daquelles.

Durante o exercício dessa tão árdua e perigosa commissão tive ensejo de ficar conhecendo algumas tribus de índios até então nunca referidas nas menções que dantes lêra sobre aquellas regiões do Alto-Amazonas; e entre as vinte e tantas tribus de que lá tive informações, ou que pessoalmente conheci, a mais notável é a dos Cachinauás, que se distingue das demais não só por sua índole laboriosa e pacífica, como também por ser a mais numerosa de quantas ainda povoam a vasta bacia do caudaloso e dilatado Juruá.

Os índios ainda restantes dessa tribu vivem em malocas situadas em terras firmes aos fundos dos seringaes da margem direita do referido rio, da fóz do Chiruan para cima, até o alto riosinho da Liberdade, e vivem tão dispersos que nas malocas dos que se refugiraram nos mais recônditos igarapés do alto Tarauacá, acossados pelas cruéis correrias de que são annualmente victimas, já não há mais noticias dos que ficaram embrenhados em outros affluentes do baixo Juruá.

Actualmente estão elles mais concentrados no já referido riosinho da Liberdade, onde soffreram grandes correrias até 1906, no alto Gregório,   que tem um afluente com o nome de Igarapé dos Cachinauás, e em alguns affluentes do alto Tarauacá, tendo ahi suas principaes malocas nas terras firmes existentes entre o alto Envira e o alto Murú, sobretudo nas margens do Iboassú, onde os visitei em 1905 e 1906.

Dos rios acima referidos, o Chiruan, o Tarauacá, o Gregório e o Liberdade, são os principaes tributários da margem direita do baixo e médio Juruá; o Envira e o Murú desaguam à margem direita do Tarauacá, do qual são os mais caudalosos de seus affluentes, e o Iboassú tem sua foz à margem direita do Murú e é o segundo em extensão dos que ahi confluem.

Os índios que alli fiquei conhecendo, além dos Cachinauás (morcegos), pertencem mais as seguintes tribus: ararapinas, boccas pretas, canamarys, caranás, catuquinas, curina-espinhos, parauás, bixanauás (maribondos), bitinauás (encourados), capanauás (quatipurus), contanauás (côcos), inúnauás (gatos), iumnauás (piscívoros), jaminauás (machados), mahinauás (rasteiros), marinauás (cotias), nyganauás (jacamis), pacanauás, peukêyyánauás (tripudos), psinauás (corinas fedorentos), tuxunauás (amarelos), xaranauás (bonitos), xauánauás (araras), e outras mais cujos nomes já esqueci.

Passemos agora a relatar não só o que ouvimos referir a respeito dos Cachinauás, como também o que tivemos occasião de observar em suas malocas.

Os Cachinauás não tem o mesmo aspecto desagradável que apresentam a maior parte dos índios que temos visto. Ao contrário: são quasi geralmente bem parecidos e têm uma physionomia franca, expansiva e risonha, havendo até alguns typos esbeltos entre os homens e muitas raparigas mais ou menos graciosas, sendo todos elles de estatura mediana. A cabeça é bem conformada, com larga fronte intelligente e coberta por uma basta cabeleira de pellos duros, espessos, luzidios e negros, qualidades essas adquiridas com o uso que fazem do óleo de côco da palmeira patauá. Nunca vi índio velho de cabellos brancos, parecendo-se nisso com os africanos, que custam a encanecer. 

A tez do rosto é um pouco pallida, sendo sua pelle geralmente de côr tijolo-escuro, ora um pouco clara, ou amarellada, em alguns, ora mais escura em outros. Chegamos mesmo qa vêr entre elles um índio branco, ruivo e sardento, o famoso Chico Branco, vingativo tucháua mui temido dos seringueiros do alto-Murú, por causa de suas contra-correrias. Esse índio poderia bem se confundir com qualquer dos teutônicos beberrões habituaes da Brahma. Também vimos no barracão do negociante peruano Saavedra, à foz do Jordão, no alto Tarauacá, um índio menor, da tribu dos Contanáuas, inteiramente branco e de cabellos loiros, e que não era albino, visto como verificamos ter elle a vista perfeita; esse índio foi apprehendido por um official do Exercito, por saber que o seu dono pretendia dal-o de presente ao Governador de Iquitos, no Perú. O fallecido Capitão do Exercito, F. de Avila trouxe do alto Juruá, em 1905, uma índia da tribu dos Pácanáuas, e que talvez ainda viva no Pará com a viúva daquelle official. De Casos esporádicos como esses, referidos pelos seringueiros, é que deve talvez ter-se originado a lenda da existência de uma tribu de índios brancos, lenda a que já deu curso o “Jornal do Commercio transcrevendo em um dos números de sua edição da tarde, do corrente anno, um artigo que a esse respeito publicou o “Coronel Fawcett” em uma revista ingleza, ao regressar do alto Acre, onde esteve em commissão da Sociedade de Geographia de Londres.

Encerremos esses parenthese sobre índios brancos e continuemos a descripção dos nossos Cachinauás.

Seus expressivos olhos, brancos, oblíquos e pequenos, quasi que não têm sobrancelhas, pois costumam raspal-as com o talo de uma gramínea; e o nariz, afeiando-lhes um tanto a physionomia, achata-se sobre um largo rosto desprovido de barba, cujos ralos pellos arrancam por julgarem seu uso indecoroso, fazendo também o mesmo aos raros fios de seu incipiente bigode.

Quando elles apanham algum seringueiro [trecho borrado, ilegível] Esses bárbaros costumes vão, contudo, desaparecendo à medida que os índios entram em relações mais amistosas com os seringueiros seus vizinhos.

A boca é bem talhada, com lábios regulares e dentes perfeitos, sempre limpos e bem conservados.

O pescoço, um pouco curto, assenta sobre um amplo thorax, entre largos hombros, de onde pendem grossos braços, pouco longos e de mãos pequenas, que nas mulheres são sempre finas e delicadas; e sobre as rijas pernas, de curtos pés com largas plantas, pesa-lhes um ventre saliente e descommunal, devido, talvez, a serem muito glutões.

Finalmente, para melhor retratar e caracterizar suas feições, diremos que elles se assemelham extremamente aos Japonezes, a tal ponto que um dia nosso índio Vicente me perguntou muito espantado se seriam seus irmãos duas pessoas que elle estava vendo na antiga estação das barcas de Petropolis e que eram, nem mais nem menos, o Ministro do Japão e seu Secretário!

Irmãos, na sua linguagem, tinha a significação de patrícios ou nacionaes, isto é, índios da mesma tribu.

Esses índios, embora asseiados e amigos de tomar banho, desprendem, entretanto, de seu corpo um desagradável odor proveniente do óleo de mondubim com que se untam, não só para se resguardarem das das constipações, catarrhaes a que estão sujeitos por viverem nus, como também para evitare, as causticas e dolorosas ferroadas dos irritantes piuns e carapanãs, terríveis mosquitos e o mais ferozes de quantos animaes pullulam nos innumeros rios, lagos e igapós do vasto mediterrâneo amasonense!

Os homens andam inteiramente nus, sem o menor vestígio de roupa; as mulheres, porém, trazem sempre uma saia curta cingida aos quadris, enrolando o cós e o aconchegando sobre o lado esquerdo, onde a prendem com uma volta, como entre nós fazem as mulheres para segurar as meias quando não usam ligas.

Essa saia, inconsútil e inteiriça, é feita em um tear muito rudimentar, com fio de algodão previamente tinto de vermelho escuro.

Não obstante andarem nus, os homens julgam-se, entretanto, decentemente postos desde que tragam o pênis alçado sobre o baixo ventre e assim mantido por um fio de algodão amarrado em torno dos quadris; e esse uso é adoptado entre elles, não como medida preventiva contra as quebraduras, como também signal de recato, não lhes sendo permitido, por immoral, andar de outro modo diante de mulheres ou extranhos.

As mulheres andam com a cabeça sempre descoberta, tendo os cabellos longos e soltos, sem o menor ornato, e trazendo cortados os que dão para a fronte, em pastinhas; e os homens usam os cabellos curtos e trazem também a cabeça descoberta, salvo nos dias de festa, quando ornam com uma bela e brilhante corôa de pennas de aves de plumagem fina chamada Maitê.

Nos lóbulos das orelhas, nas abas do nariz e sobre o lábio superior têm os homens pequenos orifícios ondem introduzem pennas de araras com que se enfeitam nos dias de festa; orifícios que lhes são abertos em criança, pondo-se depois nelles uns pequenos batoques de madeira, afim de que não venham a se fechar.

Sob o lábio inferior também têm, não só os homens, como as mulheres, um outro orifício em que costumam trazer pendurado um pequeno fio de contas que ahi prendem por um batoque igualmente de madeira; além desse, as mulheres ainda trazem outros fios de contas nas orelhas, à guisa de brincos, assim como em outro orifício que abrem sob o septo nasal.

Essas contas, missangas, são obtidas em trocas que fazem com os seringueiros e regatões, preferindo sempre as brancas às azuis, desprezando as demais cores, e com ellas as mulheres também fazem braceletes e pulseiras para seus filhinhos e maridos, além de outas tetéas com que costumam enfeitar os cherimbabos[1] de estimação.

As mulheres mais faceiras costumam traçar no rosto umas riscas paralelas de tinta azul, pintando-se também, às vezes, com tinta vermelha, porém mais discretamente que as nossas gentis patrícias que se exhibem bem na Avenida, e nos dias de festa também pintam o rosto, o peito e os braços dos maridos, traçando-lhes arabescos, gregas e outros ornamentos que obedecem a um certo estylo perculiar à tribu e empregado nos mais desenhos com que ornam as armas, utensílios e mais artefactos de seu uso.

Nesses dias os homens que não têm mulheres apresentam-se mal postos, isto é, mal pintados.

Nas festas solemnes a tribu os tucháuas das malocas apresentam-se com um rico trajo de gala, constando de túnica e calças, e das seguintes armas e enfeites: espada, arco e flechas, zagaia, punhal, corôa, pennas, collares, pulseiras, braceletes e ligas.

A túnica, tecida pelas mulheres com fio de tucum, inteiriça e sem costuras, com duas aberturas lateraes para os braços e uma passagem superior para a cabeça, tem a parte inferior, que fica à altura das coxas, guarnecida de uma grega azul-negra e é toda enfeitada com pennas miúdas de várias cores.

As calças, também tecidas pelas mulheres com fio de tucum, são curtas, à altura dos joelhos, sem fundilhos, e ligadas pelo cóz que as prende à cintura.

A espada consiste numa prancha de popunha[2] com cinco palmos de comprimento e meia polegada de espessura, alargando-se do punho para a ponta e ahi terminando numa secção recta com meio palmo de largura; suas faces, uma plana e outra convexa, cortam-se em bisel formando arestas vivas, e o punho, em forma de I, tem o delgado revestido de fio de algodão com ornatos feitos a tinta, e traz um passador de fio de tucum com que penduram a arma à testa, de modo a ficar acculta pela nuca e costas de quem a traz.

O arco é inteiramente revestido de fio de algodão enrolado em todo elle e com ornatos traçados a tinta; as flechas e as zagais também; são igualmente revestidas e ornadas nas partes delgadas em que engastam suas pontas, sendo ahi também guarnecidas com duas bonitas pennas.

O punhal consiste em uma espessa e aguçada lamina de taquara, côncava-convexa, com arestas vivas e forte ponta, tendo o punho guarnecido com pelle de quatipuru e dele pendentes algumas pennas de arara, que encobrem a lamina quando se empunha a arma.

A corôa, a que já me referi atraz e que constitue o mais artístico e precioso de seus artefactos, é confeccionada exclusivamente pelos homens, que empregam nesse trabalho as mais bellas e delicadas pennas das aves de plumagem fina, principalmente de araras, garças, jacamis, mutuns e papagaios.

[parágrafo borrado/ilegível]

Os collares, pulseiras e braceletes são confeccionados com dentes de [ilegível], [ilegível], macacos e quatipurus, reunidos por um cordel [enfiado] em orifícios abertos em suas [ilegível], de modo a formar uma [fileira] que [ilegível] a um cadarço terminado em extremidades livres com que os amarram aos pulsos, braços ou pescoço, por meio de um laço onde prendem lindos [ilegível] com pennas de papos de tucano.

Esses collares podem ser singelos, duplos ou de tríplice fileira, com os dentes saídos ou separados, de um só animal ou alternados.

As ligas consistem nuns cadarços brancos com gregas pretas, trabalho muito delicado que as mulheres fazem com grosseiras agulhas de osso.

Além dessas diferentes peças o traje de festa tem como complemento a pintura do rosto e do peito do tucháua e que é feito exclusivamente pelas suas mulheres, esmerando-se ellas em lhes fazer o corpo variegados desenhos com tintas vermelha e azul-escura; obedecendo, porém, a forma desses desenhos ao estylo ornamental da tribu, conforme já referi.

Todas essas armas, enfeites e ornatos acima descriptos podem ser também usados pelos demais homens da tribu, à exceção da túnica, das calças e da espada, que são privativas dos tucháuas das malocas; porém, além dessas peças, o tucháua geral da tribu usa mais um majestoso manto de panno de algodão tinto de vermelho escuro e recamado de pennas preciosas, entre as quaes sobressaem os brilhantes papos de tucano, de onde se vê que deve ter tido uma origem indígenas o famoso e magnifico manto com que o nosso extincto Imperador costumava comparecer às sessões solemnes de abertura do antigo Parlamento.

Falta-me ainda uma peça também única nos dias de festa pelos maioraes das malocas, embora não o seja pelos tucháuas: é a tanga, feita pelos homens com pennas de gavião, às quaes são reunidas pelas pontas por meio de um cordão enfiado em orifícios ahi previamente abertos e presas depois a um cinto guarnecido de pennas menores.

Ao passo que em suas festas os homens se apresentam assim, vistosamente armados, enfeitados e pintados, as mulheres, menos vaidosas, trazem apenas a singela saia a que já me referi, e um collar de dentes como adorno, além de se esmerarem um pouco mais na pintura do rosto.

Diversas são as festas que elles costumam celebrar, havendo umas certas e periódicas e outras accidentaes e extraordinárias.

As primeiras realizam-se em determinadas épocas do anno, sendo algumas de caracter mais ou menos religioso, como a do fogo novo, e outras destinadas a solemnizar o plantio do milho e o do mondobi, o início das pescarias e o das grandes caçadas; e as segundas têm logar para comemorar certos factos notáveis, como a abertura de um roçado, a mudança da maloca, uma declaração de guerra, os funeraes de algum chefe ou maioral, etc.

Essas festas consistem, além de certas ceremonias inherentes ao facto que celebram ou commemoram, em cantar, dançar, gritar e saltar, sem interrupção, de dia e de noite, durando isso geralmente mais de um dia, às vezes uma semana, e só terminando quando não há mais o que comer nem beber; costumando, por isso,  se abastecerem previamente de grande quantidade de caça moqueada, principalmente de antas, e de uma beberagem de aspecto repugnantes, um caldo grosso e escuro, que é preparada com uma mistura de aipim, milho e mondobi bem amassados e posta a fermentar durante cinco dias em um cocho de pachiúba[3] cheio de água e que cobrem com folhas de bananeira até poder ser servida o que é feitos pelas mulheres em tigelas de barro.

Quando estivemos entre elles pela última vez, em 1906, numa maloca no alto “Iboassú”, tivemos ensejo de assistir em parte à festa com que celebravam a próxima partida de uma expedição de guerra contra seus inimigos seculares os bellicosos jaminauás, bellos e valorosos índios mui temidos entre elles, expedição que lhes prohibimos, aconselhando-os a viverem paz com seus vizinhos; e só depois que os ameaçamos de lhes retirar nossa protecção é que desistiram de seu proposito, não sem terem tentado nossa cobiça offerecendo-nos em troca do assentimento à sua empreza uma parte dos despojos da victoria, isto é, alguns dos curumis e cunhatãs que aprisionassem, além das armas e mais artefactos artísticos que porventura tomasse a seus inimigos.

Os índios daquellas regiões têm sido sempre derrotados em suas guerras com os jaminauás, devido a esses seus inimigos usarem uns rígidos e impenetráveis escudos de couro de anta contra os quaes debalde atiram e arrojam suas flexhas e zagaias; como, porém, os cachinauás haviam ultimamente conseguido em trocas com os seringueiros da vizinhança alguns rifles e muita munição, julgaram então asada a ocasião de tirarem uma desforra, já que os taes escudos não poderiam mais proteger seus inimigos contra a força de penetração de suas novas armas.

A confecção desses escudos constitue um segredo dos jaminauás até hoje ignorado pelas outras tribus, por mais que se esforcem em descobrir o processo usado por aquelles índios para preparar os couros de anta de modo a tornal-os tão rijos e resistentes.

Voltemos, entretanto, à festa a que atrás nos referimos e à qual comparecemos fardados com as insígnias do primeiro uniforme. Ao chegar às proximidades do roçado da maloca fomos recebidos no varadouro que lhes dava accesso por diversos tucháuas e maioraes, que acolheram com ruidosa satisfação ao Papai Tenente, ou tucháua dos rios, como elles me chamavam, acompanhando-nos depois com alaridos, carreiras, paradas, saltos e tregeitos até o copicháua, onde as mulheres vieram ao nosso encontro com tigelas de caiçuma que nos offereciam a beber. O varadouro estava todo coberto de folhagem, e desde a sahida da mata até o copicháua havia arcos de ramagem.

Cada maloca tem dous varadouros, um de accesso ao copicháua e outro de retirada, de modo a desorientar a quem pretende lá tornar; e occultas na mata, ao longo desses varadouros, há diversas vedetas que transmitem por signaes a approximação de qualquer pessoa extranha.

O copicháua consiste em um longo galpão coberto de palha, muito alto no meio e descahindo em duas águas até pouco mais de um metro acima do solo, sem paredes nem resguardos latteraes, só se podendo entrar nelles em pé pelas extremidades e sendo preciso inclinar o corpo para se poder sahir pelos lados. Não tem divisões internas, sendo seu interior commum a todos os moradores; cada família, porém, tem seu fogo, seus utensílios, suas redes, suas espigas de milho e seus molhos de mondobi nos lugares previamente designados pelo tucháua e que ficam assignalados pelos esteios e vigas que sustentam o tecto.

O copicháua[4] é sempre levantado no meio do roçado, no lugar em que o terreno é mais elevado; e os roçados são abertos nas terras firmes, à margem de algum rio ou igarapé.

Cada uma das malocas da tribu é, pois, constituída por um certo numero de famílias que vivem sob a direção de um tucháua, morando todos juntos em um só barracão que erigem no meio de um roçado onde se abastecem.

Esses roçados são muito grandes e sua extensão varia segundo o numero de pessoas que têm a abastecer. Dizem que os há com meia légua de extensão; mas os que vimos não teriam mais de dous kilômetros quadrados.

Antigamente, quando os cachinauás ainda dominavam as margens dos rios principaes, ahi erigiam seus copicháuas e abriam seus roçados; hoje, porém, com a crescente invasão dos seringueiros, veem-se obrigados a se estabelecer às margens dos mais recônditos igarapés, no recesso das mattas, onde ficam menos expostos aos ataques dos caucheiros e seringueiros.

Escolhido e marcado o terreno para a abertura do rocado, começam sua derrubada do seguinte modo: com pequenos machados de pedra picam a descascam os troncos das árvores até á altura de um homem, expondo assim o seu lenho até que fiquem completamente seccos, deitando então o fogo a cada um delles e esperando pacientemente que as arvores caiam depois de consumidas pelo fogo os seus troncos, serviço esse que dura alguns dias; nas malocas, porém, em que elles vivem em relações pacificas com os seringueiros, a broca e a derrubada é feita com menos difficuldade, por já possuírem alguma ferramenta apropriada, terçados, e machados. Feita a derruba passam a semear o milho, e somente o milho, cuja palha secca é aproveitada, após a colheita, para a queima do roçado, que é depois encoivarado, seguindo-se então o plantio dos vegetaes uteis à sua existência, a saber: o algodão, para os fios e tecidos; a canna brava ou frecheiras também chamada itacanna, para as hastes das flechas; o coentro e a pimenta, para os temperos; o tabaco, para as pitadas; o timbó e o tinguy, para as pescarias; o urucú, para a tinturaria; e finalmente, várias especiarias [trecho borrado/ilegível] a não plantam mais, por não terem a certeza de [ilegível] a colher seus frutos, devido ao receio em que vivem de serem expulsos de seus roçados a qualquer instante. Esses popunhaes extinguem-se logo em seguida às correrias, porque os seringueiros deitam geralmente abaixo essas e outras palmeiras para colher seus frutos.

Só não plantam no roçado o mondubim, que é semeado nas praias dos igarapés e replantados depois nas capoeiras.

O preparo do roçado é commum a toda a maloca, sendo um serviço collectivo, ao passo que o seu plantio e limpeza são um trabalho individual, cada individuo semeando na parte que lhe fica pertencendo aquillo que mais lhe convem colher; e a limpa do matto é feita com as mãos ou com cascos de tartaruga, à guiza de enxada, si ainda as não possuem arranjadas com os seringueiros amigos da vizinhança.

Tratemos agora de sua alimentação, que consiste em caça e pesca moqueada, nos produtos da lavoura já enumerados e em algumas frutas silvestres, como abios, cacau, cajás, côcos de várias palmeiras, maracujás, etc.

Não têm horas certas de se alimentarem; comem durante todo o dia e sempre sentem appetite e há o que comer, ingerindo seus alimentos como nós: crus ou preparados ao fogo, simples ou misturados.

As bananas são comidas cruas, cosidas ou assadas quando maduras; as batatas são também cosidas ou assadas; as favas verdes são cosidas e as seccas são torradas; o milho em espigas é cosido ou assado, e o em grão é torrado, em pipocas; o mondoby é comido cru, assado ou torrado; e as aboboras, aipim, carás, feijão, inhames e popunhas são cosidas. Quasi todas essas comidas são ingeridas simples, havendo pouquíssimas que o não sejam, como algumas massas ou mingaes, entre os quaes sobressahem uma papa feita com aipim, milho e mondubi amassados e misturados com agua, ao fogo, e uma espécie de pamonha, feita com milho e mondobi. As iguarias salgadas são desconhecidas entre elles, custando a se affeiçoarem a ellas, quando veem para nossa companhia; costumam, entretanto, temperar certos pitéus com pimenta ou com folhas de uma espécie de coentro e de uma outra planta hortense, que encontram no matto.

Há uma certa época do anno em que elles se alimentam principalmente de caças, previamente apanhadas em grandes expedições, havendo também outra época em que predomina o peixe, colhido nas grandes pescarias feitas logo após a vasante dos rios, quando os poços apparecem; e em Junho e Julho sahem às praias dos rios principaes para a apanha dos ovos de tartaruga e tracajás, sahidas já muitos diffíceis, por causa dos seringueiros.

Em suas caçadas elles empregam o arco e flechas, zagaias, armadilhas e cães adextrados. Entre as armadilhas citarei apenas uma espécie de guarita feita de folhas verdes de palmeira, de forma pyramido-orgival, fechada em suas quatro faces e com setteiras por onde se póde observar e atirar com o arço; sendo, porém, aberta na parte inferior para por ahi se introduzir o caçador que, levantando-a com as mãos, nella enfia o corpo até que a guarita se torne a assentar no chão, encobrindo-se e ficando imperceptível no meio do matto em que foi posta, por se confundir inteiramente com o verdor da vegetação que ahi a cerca. Essa guarita, collocada assim à orla de um caminho, pode servir não só de espera para apanhar caça, como posto de sentinella ou de emboscada contra algum inimigo.

Nas pescarias também empregam as mesmas armas que na caça, além de pequenas redes e tóxicos vegetaes. As zagaias são empregadas contra os peixes grandes e as flechas com pontas em tridente contra os peixes menores, sendo o peixe miúdo apanhado em pequenas redes presas a arcos de cipó, que no norte tem o nome de landuás. Com folhas verdes de timbó, ou de tinguy, machucadas e amassadas com mondobi, fazem umas pequenas pílulas que atiram pela manhã nos poços dos rios ou igarapés, baldeando-lhes em seguida as águas de modo a ficarem levemente carregadas com o toxico empregado e assim poderem embriagar os peixes existentes no fundo d’água, e que vêm immediatamente à torna, sendo suffocados e tontos, sendo apanhados à mão ou em landuás, succumbindo depois envenenados os que puderem ser colhidos ainda vivos. A dose e veneno empregada deve ser proporcional ao volume d’água do poço, de modo que o peixe assim morto não se torne nocivo à saúde de quem o coma. Também é empregado nessas pescarias o leite do assacú, que é a mancenilha do Amazonas, devendo ser, porém, immediatamente destripado o peixe assim apanhado, do contrario seu consumo será perigosíssimo. Dizem que os índios costumam ás vezes deitar leite de assacú nas águas dos igarapés dos seringaes cujo pessoal vive a perseguil-os, de sorte a provocar verdadeiras epidemias de beribéri, febres e outras doenças entre os moradores ribeirinhos.

Façamos agora uma ligeira referencia acerca da louça usada pelos cachinauás no serviço de sua alimentação e que consta das seguintes peças: alguidares, canecos, panellas, potes, pratos e tigelas. Todos esses vãos são fabricados com um barro escuro especial, difícil de obter, vistos guardarem cuidadosamente os fragmentos de todos os que se quebraram para serem depois reduzidos a pó amassados e empregados, na factura de outros novos.

O preparo das massas alimentícias é feito em um semi-tronco oco, onde deitam as substâncias a triturar e amassar, empregando nessa operação uma curta e pesada sapopema de curaru, de forma trapezoidal e tendo nos cantos da parte superior, onde é mais delgada, e menos larga, dous cabos em que as mulheres seguram durante o trabalho.

No interior dos copicháuas, cada família tem sua cozinha à parte, de sorte que em cada copicháua há tantas cozinhas quantas são as famílias alli alojadas, vivendo cada uma em torno de seu fogo, ahi reunindo seus trens e armando suas redes de dormir e de descanso.

As redes de dormir são como as nossas, mas sem varandas, e de um só panno, largo e encorpado, que as mulheres fazem em seus teares com fio de algodão tinto de vermelho escuro; e as de descanço são de malhas abertas e feitas pelos homens com fio grosso de algodão da referida cor.

Essas redes são amarradas aos esteios e vigas da cumieira do copicháua, onde também penduram nos caibros e frechaes, as armas, roupas e outros objectos de seu uso.

Sobre as vigas e em taboas nelas atravessadas arrumam as espigas de milho e molhos de mondobi, dispondo-se em camadas regulares até o tecto, em forma de parede.

Também suspendem do tecto uns cofres feitos com talos de canna-brava, do formato de um pequeno esquife, onde guardam cuidadosamente seus collares, contas, pennas, pulseiras e mais objectos preciosos, assim como as pennas finas e de cor destinadas à confecção de coroas e enfeites de suas armas e mais artefactos artísticos.

Suas armas, além das de festa, já descriptas, podem ser também de guerra e de caça ou pesca, em tudo semelhanyes àquellas, menos nos enfeites e ornatos, que não têm.

A haste dos arcos, da altura de um homem, é de popunha e muito bem polida, e sua corda consiste em um grosso fio de fibras de embaúba.

As flechas têm as hastes da mesma altura do arco e feitas com talos de canna-brava, e as pontas podem ser de osso, páo de arco, popunha ou taquara, em arpão, bisel ou tridente, lisas, dentadas ou serrilhadas, conforme se destinem à guerras, caça ou pesca.

A louça da cozinha é arrumada sobre troncos deitados ao chão, que também servem para se assentarem durante as refeições.

A única peça de mobília que possuem são pequenos bancos de madeira, pintados de azul negro e vermelho, da altura de um palmo e tendo um assento côncavo-oval sobre quatro pés quadrangulados.

Para a guarda de suas agulhas, contas, novellos de fio e trabalhos miúdos as mulheres fazem uns pequenos açafates com embiras de embaúba, com que também fazem uns bonitos cestos de base quadrangular, tendo a bocca maior do que o fundo, com desenhos coloridos e que nas viagens conduzem às costas carregados com comidas e objectos de seu uso, pendurando-os à testa por meio de uma larga embira presa ao cesto em duas alças.

No transporte de seus trens, os cachinauás empregam as jamachis, cestos muito conhecidos em todo o interior do Amazonas e usados pelos seringueiros na conducção de seus aviamentos e productos, o qual consiste em um receptáculo de palha, embira ou cipó, aberto em cima e na parte anterior, e que se traz pendurado às costas por meio de tiras de panno ou de embiras presas a duas alças e cruzadas no peito, sendo que os índios preferem passal-as na testa, o que torna o fardo menos fatigante.

Além desses jamachis os índios usam ainda no transporte de suas cargas, caça, pesca e productos de lavoura, uns grandes certos que fazem às pressas com duas folhas verdes de jarina ou outra palmeira de folhas largas, ligando-as pelas pontas, entrançando as suas palhas e amarrando-as [restante do parágrafo borrado/ilegível].

[parágrafo borrado/ilegível]

Quasi todos os seus tecidos, saias, redes, etc., são feitos com fio tinto de vermelho escuro ou de cor de chocolate; mas, nas gregas e mais ornatos com que guarnecem os [ilegível] e certos artefactos, o fio que aplicam é de uma cor azul mais ou menos negra.

As cores predominantes em todas as suas figuras, ornatos e pinturas são o azul negro e o vermelho escuro, extrahidos do jenipapo e urucú, e cujos diferentes matizes são as únicas por elles empregadas desde o vermelhão e o azul ferrete até o chocolate e azul cinzento.

Os desenhos e figuras com que pintam e ornam o corpo e suas armas e artefactos obedecem, conforme já disse, a um certo estylo peculiar à sua tribu e inconfundível com os das outras tribus, de sorte que, a simples inspecção dos desenhos e figuras de uma arma ou objecto qualquer, e mesmo de suas pennas e enfeites, conhecem os índios, e até os seringueiros práticos em correrias, a que tribu pertence tal arma ou objecto encontrado.

Fallemos agora sobre seus instrumentos de musica que são apenas os seguintes: a flauta, a gaita, o minondê, a trombeta e o tambor.

A flauta consiste em um canudo de taquara com orifícios lateraes, semelhantemente às nossas; a gaita também consiste num canudo de taquara com uma das extremidades aberta e a outra com um batoque de cêra em que se abre uma fenda por onde deve soprar o tocador, tendo ahi um orifício lateral e mais outros quatro na parte inferior; o minondê vem a ser um pequeno arco cuja corda, de fio de tucum, faz vibrar com outra de um arco menor, dando a suave sensação de um produzido ao longe; a trombeta é um canudo também de taquara e maior que a flauta e a gaita, tendo um boccal em uma das extremidades e na outra, servindo de trompa, uma cauda de tatu canastra; e o tambor, finalmente, é uma espécie de pilão de madeira com a bocca coberta por uma pelle de anta ou de veado, e que se toca com vaquetas.

Não tocam, entretanto, esses instrumentos quando cantam e dançam suas festas.

Dessas festas, à que já me referi, a mais curiosa é a dos funeraes de algum tucháua ou maioral da maloca e que dura três dias; só me lembrando, porém, do que se passa no primeiro e segundo dia.

No primeiro dia, como ultimo preito e homenagem prestados à virtude do morto, é o seu cadáver devorado por seus amigos e parentes, depois de bem moqueado em uma fogueira onde collocam com a cabeça coberta por uma panella, afim de que causem repugnância as contorções que faz seu rosto durante a acção do fogo cobrindo também as partes pudendas com um caco de barro quando o cadáver é de mulher.

Em torno da fogueira reúnem-se todos e ahi se assentam, enchendo o ar com alaridos, até que, moqueado o cadáver, começam os assistentes a arrancar-lhe pedaços de carne e devoral-os ao mesmo tempo que lamentam em altas vozes a morte do chefe ou parente, não impedindo a tristeza dessas lamentações que elles também exprimam na physionomia a satisfação que sentem em saborear tão gostosa iguaria! Cada um vai tirar o naco de carne que lhe compete segundo o gráo de parentesco que tem com o morto, tendo precedência os parentes mais próximos, a começar pela viúva, que tem a preferencia sobre certas partes consideradas como as mais saborosas do cadáver.

Devorada, assim, a carne do cadáver, são seus sobejos e ossos torrados, moídos e misturados em um coche com caiçuma[5], beberagem já descripta, a qual é tomada pelos assistentes no segundo dia do funeral, entre os mesmos gritos e lamentações.

À vista dessa descrição, não vão pensar os leitores que os cachinauás sejam cannibaes. Eles só devoram o cadáver dos seus chefes e parentes notáveis por um dever ou preceito religioso; não matam para comer nem devoram os inimigos que matam, ao contrário, respeitam e enterram aos chefes inimigos mortos em combate.

Passemos agora da morte ao casamento.

Entre elles reina a polygamia, podendo cada homem casar-se com tantas mulheres quantas possa sustentar com seu trabalho, a juízo dos seus tucháuas. Os pais costumam contratar o casamento de seus filhos desde criança; só havendo, porém, a união sexual após a puberdade das meninas.

Quando se casa uma viúva com filhos do matrimonio anteriors, são elles desprezados e perseguidos pelo padrasto e se ella depois de casada vem a ter um filho ainda concebido no primeiro matrimonio, seu marido toma-o e deita-o em redezinha onde o expõe ao sol, em um galho de arvore, até que a infeliz criancinha morra estorricada ao calor solar!

Os órphãos de pai e mãi vivem na maloca completamente desprezados, como verdadeiros cães sem dono, passando fome, sendo espancados e podendo ser dados ou vendidos pelos tucháuas.

Os cães são os únicos animaes nossos que elles possuem, empregando-os nas caçadas e na guarda e vigilância dos roçados e copicháuas, sendo geralmente muito bravos e andando, por isso, amarrados durante o dia.

Os nomes usados pelos cachinauás são geralmente suaves e bonitos, principalmente os femininos, como Itiany,Paranna, Suany, Tima, etc., entre os masculinos citarei os dos meus caboclos Bane, Boró e Tuxinin. Quando já estão mais em contacto com os seringueiros gostam muito de pedir nomes para seus filhos e só os adoptam si são curtos e bonitos, rejeitando Anastacia, Bartholomeu, Cunegundes e outros assim. Em uma das malocas em que estivemos entre elles demos nomes a muitas criancinhas, a pedido de seus pais, alguns dos quaes queriam para seus filhinhos o nome de tenente, que era então o nosso posto. Nessa occasião um tucháua pedio para si o appellido de Thaumaturgo, nome do Prefeito, por ter sabido que era esse o tucháua catayana[6] de todos os rios e carinas[7] conforme lhe insinuara um seringueiro; e outro tucháua de uma pequena maloca pedio também para lhe ser confirmado o appellido de Doutor com que se arrogara, por ter notado a consideração e respeito com que os seringueiros assim tratavam um agrimensor que por lá andara demarcando terras.

Esse doutor, o tucháua Thaumaturgo e alguns outros pediram para lhes dar escripto num papel os seus nomes e appellidos, o que fizemos lavrando uma espécie de certidão de baptismo para cada um, com o que elles ficaram muito satisfeitos, guardando-os cuidadosamente, pois entre elles um papel escripto é considerado uma coisa muito preciosa, talvez por notarem o cuidado com que os seringueiros guardam as contas que recebem de seus patrões.

O maior desejo que têm os cachinauás, ou qualquer outros índios, desde que entram em relações amistosas com os carinas é o de ser baptisados, pois observam logo que os seringueiros só matam os que o não são, embora esses já sejam amigos, ou mansos, como dizem aquelles, que não têm o menor escrúpulo de atirarem num índio pagão, embora manso, só pelo prazer de verificar a boa pontaria de seu rifle!!

Infelizmente os padres que por lá andam em desobrigas só baptisam por dinheiro e muito caro, 40 e tantos mil réis cada um, de sorte que alguns patrões se esquivam por isso, a mandar baptisar os índios mansos de seus seringaes. O índio baptisado identifica-se logo com os seringueiros, julga-se um outro homem, um carina ou civilizado, e não admitte que o chamem mais de índio, nome que reputa injurioso, tal como os nossos pretos, que não gostam que se lhes chamem de negros.

Um meio de attenuar o morticínio de índios que se faz constantemente no Amazonas e, talvez, o único remédio efficaz contra o arraigado e feroz preconceito que nutrem os seringueiros de não ser crime nem pecado matar um índio pagão, seria o seu baptismo em larga escala, tornando-os, assim, mais respeitados.

Continuemos, porém, nossa descripção, contando o pouco que nos falta para a terminar.

Suas doenças mais communs são as febres e enxaquecas. Curam essas apertando a cabeça com um cordão que amarram pela teesta, e aquellas com um forte suadouro que tomam deitado numa rede atravessados por cima do fogo acceso, correndo a tomar um banho no igarapé, logo que transpiram.

Não fumam, mas tomam pitadas de tabaco por meio de uma piteira curiosa, que consiste num canudo de taquara tendo numa das extremidades um bocal, formando cotovello, e na outra um bico, também em cotovello, por onde se sopra; de sorte que para alguém receber nas narinas uma pitada [restante do parágrafo borrado/ilegível].

Entre elles é geral o vicio de comer barro nos barreiros, como fazem os animais, talvez pelo gosto do [ilegível] que ali encontram, mas , quando vêm para nossa companhia, adquirem muitos vícios, comendo não só barro, como também pingos de vella, cascas de pão podre e outras immundícies repugnantes.

Quando se lhes presenteia com alguma roupa preferem as blusas e camisas às calças e ceroulas, que não gostam de vestir, porque essas lhes assam as pernas; preferem também a roupa escura às claras.

São geralmente inteligentes, dóceis e bondosos, que que têm dados innumeras provas os que de lá vieram em nossa companhia.

Um delles, Vicente Borô Penna, afilhado do saudoso Presidente Dr. Affonso Penna, e que se casou a 28 último, é uma estimada e distincta praça do Corpo de Bombeiros, já tendo tido a satisfação de ver seu retrato publicado em alguns jornaes desta Capital, por actos de heroísmo praticados na extinção de um inccêndio; é muito econômico e já tem 500 e tantos mil réis numa caderneta do British Bank, onde vai todos os meses depositar as sobras de seu soldo.

Outro, que entreguei ao Sr. General Thaumaturgo, é hoje um bravo marinheiro nacional, tendo cursado a Escola de Aprendizes da Ilha das Cobras; e o mais intelligente delles é o meu pagem e afilhado Luiz de Gonzaga Tuxinin, que é também o mais instruído e educado dos três, sabendo ler, escrever e contar.

Completamos, agora, nossas notas, fazendo uma ligeira referência sobre sua língua e numeração.

Só contam até seis, só sendo simples os três primeiros números, sendo os demais até seis formados de palavras compostas do número três; qualquer quantidade maior de seis é chamada itimapá, que significa muito ou porção.

Sua linguagem é monosyllabica e parecida com a japoneza, não tendo semelhança alguma com as dos índios que fallam a língua geral, e alguns termos dessa que empregam quando fallam comnosco foram aprendidos com os seringueiros.

É lamentável saber que essa e outras tribus do Alto Amazonas estejam a se extinguir sem que o nosso Museu mande estudar suas línguas e collecionar seus artefactos, que já figuram em alguns museus da Europa, sendo, entretanto, desconhecidos entre nós. As armas e mais objectos trazidos das correrias, os seringueiros dão a seus patrões e esses a seus aviadores no Pará e Manáos, que por sua vez as presenteiam aos chefes das casas exportadoras extrangeiras daquellas praças, que as remettem aos museus da Europa.

Actualmente os índios não confeccionam mais, com o mesmo primor de outr’ora, os magníficos mantos reaes, as brilhantes e vistosas corôas, as armas e os bellos artefactos de pennas em que são exímios artistas, devido isso à instabilidade em que vivem sempre acossados pelas correrias e sem pouso certo em suas malocas. Agora mesmo acabam os Peruanos de invadir o alto Envira, perseguindo com suas correrias grande numero de tribus refugiadas naquella região sem seringaes, e que no Ministério da Agricultura, não quizeram reservar aos índios nem reunil-os à Reserva Florestal, conforme em tempo fui lá pedir e lembrar.

Aqui termino essas mal alinhavadas notas, escriptas há dous anos, a pedido de Capistrano de Abreu, para lhe servir de esclarecimento ao importantíssimo trabalho que deve publicar por esses dias a respeito desses índios, trayando de seus usos e costumes, sua histpirua, lendas e tradições, sua língua, grammatica, prosódia e vocabulário; obra essa construída com material fornecido pelos meus caboclos Borô e Tuxinin, atrás referidos, e que lhes foi arrancado partícula por partícula, colhidas dia a dia com a incansável, intelligente e laboriosa constância, dedicação e perseverança que só os sábios do quilate daquelle nosso eminente ethnographo, patriota e filólogo sóem ter.

Luiz Sombra

 

SOMBRA, Luiz. Os Cachinauás: ligeiras notas sobre seus usos e costumes. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 11 de janeiro de 1913, Ano 87, N.11, p. 3



[1] Cherimbabo é a denominação que se dá no Amazonas às aves e animaes de estimação que se criam em casa, como macacos, papagaios, etc.

[2] Palmeira cuja estipe dá uma madeira muito rija.

[3] Especie de palmeira barriguda com que fazem pirogas.

[4] Copicháua é um nome da língua geral que desingam no Amazonas os barracões das malocas de índios.

[5] Caiçuma é o nome com que os seringueiros designam as bebidas dos índios.

[6] Príncipe na língua geral.

[7] Civilizado na língua geral.

Um comentário:

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

VOCÊ É O MAIS BEM INFORMADO ESCRITOR DA AMAZÔNIA...