quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

ROMANCE DE SALATIEL

Thiago de Mello

 

I – O VELÓRIO

 

Se foi triste, se não foi,

se gostou de olhar o azul,

se sofreu por desamor,

se digeria a contento,

se procurou Deus (achou-o?)

não conta mais.

 

                          Salatiel

já é matéria sem ganga,

que se oferta, horizontal,

aos olhares e aos pesares.

 

Chegam vizinhos, amigos

de longa data, parentes

trajando roupas de festa.

E ao penetrarem na sala,

onde Salatiel repousa

de todos os cansaços,

esquecem-se de si próprios

ou porventura se encontram

com total exatidão:

o rosto bêbado é sóbrio,

o folgazão, compungido;

os sempre austeros ensaiam

gestos suaves e os tristes

disfarçam sua tristeza.

Mas Salatiel defunto

adorna o meio da sala

sombria, apesar das flores,

sem nem perceber, que pena,

que o gordo senhor de óculos

veio lhe pedir perdão

por malquerenças antigas;

do vulto esguio num canto,

a recordar o colóquio

que teve com o morto, um dia,

chuvoso, em praça antiga,

e desse encontro conserva

lembrança em forma de flor,

que perdura, delicada,

entre as páginas de um livro

de poemas de amor eterno;

do seu barbeiro, contrito

que lhe contempla o bigode,

a barba espessa, azulada,

e lembra canção de infância

contando que o mato, a relva

são cabeleiras de mortos.

 

Pelas narinas do morto,

que já não sentem o aroma

do café que corre a sala,

penetra o velado som

dos faladores incautos:

cada qual lembra seus mortos,

todos bons, quase perfeitos

em sua humana condição,

imperfeitos, porque humanos,

mas isentos da soberba.

 

Depois cambiam de tema:

falam de jogos, de guerras,

comentam velhas intrigas,

fazendo sempre um parêntesis

para louvar as virtudes

de que foi Salatiel.

Que já não é. Suas orelhas

são búzios côncavos, secos.

 

Ah, Salatiel, se visses

a ternura de teu filho,

de todos o mais rebelde,

que regozijo seria.

Com quanto zelo ele muda

as velas dos castiçais

e espanta – no gesto, afago –

a mosca da tua boca.

 

Mas Salatiel não vê.

Como também não percebe

as filhas arrematando

com seus soluços ritmados

o choro seco da mãe

que, em seu respeito ao defunto,

repele os erros furtivos,

o desamor não contado

e o desapreço profundo

de saber-se repartida,

que lhe voltam à memória,

já se dissolvem no pranto

e o purificam.

 

II – O SEPULCRO

 

Na clareira de treva

em que o tempo não conta

e onde o brilho de luas

afoga-se em argila,

os vermes já circundam

a carne recém-vinda.

Abraçam-na com júbilo

de seres separados

que afinal se reencontram

e este abraço revela

um sutil parentesco:

não aquele que implica

em um correr de hormônios,

certas cumplicidades

pobres conquanto físicas

e que o tempo desgasta

e em lembrança converte.

Outro, porém, mais fundo,

que elimina a distância

do que, por ser minguado,

alonga-se no sonho,

ao exato minério

feliz em seu contorno:

e brandamente reúne

a besta que se entrega

a êxtases promíscuos

e o que de amor constrói

sandálias adequadas

para a longa excursão,

numa aventura só

de crescer e acabar

e aguardar, entre sombras,

que a mão cega do mundo

vá recompondo as cinzas.

 

E com um linguajar

que só as coisas entendem

os vermes confabulam

acerca do destino

deste novo parente

que, aos poucos, se devolve

ao útero da terra.

 

III – EPÍLOGO

 

O dono de tal carne, todavia,

conhece a paz de canto que se evola

de garganta demasido tensa.

Liberto dos enredos da memória,

isento de esperança, ele palmilha

os caminhos abstratos, modulados

em matéria de além, de sono puro.

 

Salatiel não-sendo, desconhece

a exata perfeição do que não é,

e integra-se à paisagem absoluta

onde nem sombras há das três colunas

suportes do planalto que assegura

o repouso dos deuses fatigados:

constante prolongar do dia sétimo.

O outrora sonhador de galardões,

que passeou pelo bosque dos enigmas

e entregou-se a engenhos intrincados

como o de mergulhar na própria luz

e de lá regressar sujo de treva,

ou do chão mais rasteiro para erguer montanhas,

exerce, então, mister dos mais humildes:

Salatiel não-sendo já faz parte

do azul na arquitetura do vazio.

 

MELLO, Thiago de. Silêncio e palavra. 5.ªed. Valer: Manaus, 2020. p. 88-95

 

Nota do autor:

Da primeira e segunda partes deste poema, alguns versos, quem sabe os mais felizes, são de nosso Tom Jobim, meu companheiro das noites da rua Redentor, quando cantávamos e recitávamos poemas de Drummond e de Bandeira, pela primavera dos anos cinquenta do século passado.


__________________

“Para este fecho, e por todos os motivos, deixei o poema também capítulo final de Silêncio e palavra: aquele que se intitula “Romance de Salatiel”. Sem nenhuma dúvida, é o mais completo, o mais substancial, o mais bem-acabado de todos os poemas até agora produzidos pelo Sr. Thiago de Mello. De maneira perfeita, ajustam-se nesta peça, e nela se harmonizam, a representação temática, a variedade rítmica e a estrutura estrófica. Trata-se de um poema ordenado em pensamento, e construído no defluir de mediações, com alguns traços descritivos no cenário, com uma nota de humour fundo e pungente no ideário de objetivação intencionada.

Abre-se o poema com uma condicional acerca de Salatiel, o que contribui para criar desde logo a atmosfera de uma expectativa, por força da sugestão em torno de uma problemática necessariamente anterior àquela que vai ser desdobrada na sequência dos versos. Dividido em três partes, apresenta-nos, a primeira; o velório de Salatiel. Neste grupo de estrofes, ali ainda está um ser humano presente: e isto importa muito. Presença de morto, mas presença, ainda, de qualquer maneira. E o poeta se utiliza por isso, neste momento, da redondilha maior. Depois, na segunda parte, Salatiel passa para o sepulcro: penetra “na clareira de treva.” Não é mais nada. Nada mais é do que um corpo entregue os vermes. Então, neste outro grupo de estrofes, levando em conta a redução dimensional de Salatiel, eis que se abrevia também o ritmo de versos, consequentemente passados para o metro em hexassílabo. Por último, no epílogo, há uma amplitude desmesurada no destino de Salatiel. Liberta-se ele, para o astral, neste derradeiro lance.

 

Salatiel não-sendo, desconhece

a exata perfeição do que não é,

e integra-se à paisagem absoluta

onde nem sombras há das três colunas

suportes do planalto que assegura

o repouso dos deuses fatigados:

constante prolongar do dia sétimo.

 

Volta então o Sr. Thiago de Mello a utilizar-se, por isso, do amplo e forte decassílabo, a fim de poder exprimir este canto de libertação no epílogo. Avançando, num crescendo, em sentido mais geral do que o da mera arte de metrificação, o poeta ergue-se largo e liberto – mediante essa projeção de Salatiel a um fenômeno de ársis – para deixar-nos, afinal, com uma visão ainda mais metafórica do que alegórica, bem expressa nestes versos:

 

– É substância de nuvens sem sabê-lo,

Azula a arquitetura do vazio.

 

(Álvaro Lins, 1952)

 

MELLO, Thiago de. Silêncio e palavra. 5.ªed. Valer: Manaus, 2020. p. 140-141

Um comentário:

Jalul disse...

Adorei, confrade.