I
A couraça das palavras
protege o nosso silêncio
e esconde aquilo que somos.
Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.
Ademais, nem são palavras.
Sons vazios de mensagem,
são como a fria mortalha
do cotidiano morto.
Como pássaros cansados,
que não encontraram pouso
certamente tombarão.
Muitos verões se sucedem:
o tempo madura os frutos,
branqueia nossos cabelos.
Mas o homem noturno espera
a aurora da nossa boca.
O tempo madura a fruta,
turva o fulgor da esperança.
Na suavidade da treva
urde o resplendor da rosa.
Mas não ensina a palavra
de pétalas de esmeralda
que o homem noturno espera
florescer da nossa boca.
II
Se mãos estranhas romperem
a veste que nos esconde,
acharão uma verdade
em forma não revelável.
(E os homens têm olhos sujos,
não podem ver através.)
Chegará quem sabe o dia
em que a oferenda dos deuses,
dada em forma de silêncio,
em palavra transfaremos.
E se porventura a dermos
ao mundo, tal como a flor
que se oferta – humilde e pura –,
teremos então cumprido
a missão que é dada ao poeta.
E como são onda e mar,
seremos palavra e homem. p. 19-20
LAMENTO NÃO TER SIDO CRISTO
Lamento não ter sido Cristo.
Sei que nunca o imitarei.
Aceito-me sem revolta:
coisa limitada e triste,
suja de tempo e palavras.
Pesa o pecado primeiro,
impedindo que eu descubra
onde mão desconhecida
ficou o marco final.
Grávido estou do mistério
que me fez estar no mundo,
porém nunca se desvela
nem me deixa ver quem sou.
Aos olhos da eternidade
só tenho para mostrar
a face que me restou:
coisa limitada e triste,
suja de tempo e palavras. p. 24
NÃO FUI PROFETIZADO
Não fui profetizado. Aconteci.
Como é difícil cumprir
missão que não recebi.
Vivendo foi que aprendi
a que me cabia: amar.
Sei de raras criaturas
que findaram radiosas
pela glória de viver.
Que luzes é que tornavam
Seus rostos resplandecentes?
Quando liberto do tempo
me pedirem testemunho,
as minhas mãos mostrarei:
não terei marca de cravos,
mas indeléveis sinais
da rosa que mais amei. p. 34
MELLO, Thiago de. Silêncio e palavra. 5.ªed. Valer: Manaus, 2020.
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