quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

TRÊS POEMAS DE THIAGO DE MELLO

SILÊNCIO E PALAVRA

 

I

 

A couraça das palavras

protege o nosso silêncio

e esconde aquilo que somos.

 

Que importa falarmos tanto?

Apenas repetiremos.

 

Ademais, nem são palavras.

Sons vazios de mensagem,

são como a fria mortalha

do cotidiano morto.

Como pássaros cansados,

que não encontraram pouso

certamente tombarão.

 

Muitos verões se sucedem:

o tempo madura os frutos,

branqueia nossos cabelos.

Mas o homem noturno espera

a aurora da nossa boca.

 

O tempo madura a fruta,

turva o fulgor da esperança.

Na suavidade da treva

urde o resplendor da rosa.

Mas não ensina a palavra

de pétalas de esmeralda

que o homem noturno espera

florescer da nossa boca.

 

II

 

Se mãos estranhas romperem

a veste que nos esconde,

acharão uma verdade

em forma não revelável.

(E os homens têm olhos sujos,

não podem ver através.)

 

Chegará quem sabe o dia

em que a oferenda dos deuses,

dada em forma de silêncio,

em palavra transfaremos.

 

E se porventura a dermos

ao mundo, tal como a flor

que se oferta – humilde e pura –,

teremos então cumprido

a missão que é dada ao poeta.

E como são onda e mar,

seremos palavra e homem. p. 19-20

 

LAMENTO NÃO TER SIDO CRISTO

 

Lamento não ter sido Cristo.

Sei que nunca o imitarei.

Aceito-me sem revolta:

coisa limitada e triste,

suja de tempo e palavras.

 

Pesa o pecado primeiro,

impedindo que eu descubra

onde mão desconhecida

ficou o marco final.

 

Grávido estou do mistério

que me fez estar no mundo,

porém nunca se desvela

nem me deixa ver quem sou.

 

Aos olhos da eternidade

só tenho para mostrar

a face que me restou:

coisa limitada e triste,

suja de tempo e palavras. p. 24

 

NÃO FUI PROFETIZADO

 

Não fui profetizado. Aconteci.

Como é difícil cumprir

missão que não recebi.

Vivendo foi que aprendi

a que me cabia: amar.

 

Sei de raras criaturas

que findaram radiosas

pela glória de viver.

Que luzes é que tornavam

Seus rostos resplandecentes?

 

Quando liberto do tempo

me pedirem testemunho,

as minhas mãos mostrarei:

não terei marca de cravos,

mas indeléveis sinais

da rosa que mais amei. p. 34

 

MELLO, Thiago de. Silêncio e palavra. 5.ªed. Valer: Manaus, 2020.

Thiago de Mello fará, neste 2021, 95 anos (30.3.1926), o mais conhecido filho de Barreirinha-AM, e um dos maiores poetas brasileiros. Poeta que resistiu e combateu a ditadura de 64, e viveu exilado alguns anos em países das Américas e Europa. Passado a ditadura, não trocou a sua Barreirinha pelas sofisticadas metrópoles, e lá vive até hoje. Há setenta anos, 1951, publicou o primeiro livro, "Silêncio e palavra". A Editora Valer, de Manaus, o reeditou, e, em 2020, alcançou a 5.ª edição, num bonito exemplar, em capa dura, contendo, ainda, os "itinerários da vida, poesia e memória" do poeta.

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