sábado, 12 de março de 2022

RÂNGELA: “Águas coração” (1983)

“Águas coração” (1983), de Rângela, pseudônimo de Raimunda Ângela, à época com 24 anos, da geração do mimeógrafo. Capa de Péricles e ilustrações de Genésio Fernandes. 

AQUI

 

O povo é quem sabe

o povo é quem diz

Não é preciso juiz

Boca do acre

conta sua história

na boca da noite

 

 

COMEÇO

 

Antes que tudo se perca

                             acabe apodreça

Não adianta fugir

porque não está na próxima esquina

e você sabe de toda a utopia

 

 

GRITO MÍSTICO

 

Amazônia solta teu grito

e desperta todos os leões

todas as raízes

todos os caboquinhos da mata

 

 

MARIA LAVA

 

a bacia

a agonia

a roupa suja

Maria lava

reza a prece

e sua angústia se desfaz em peças

 

O suor desce

qual o rio

que carrega

a roupa suja de maria

 

E o cheiro de maria

se mistura com o cheiro

do sujo da camisa do doutor

que vai já lavar

 

Mas o cheiro de maria

é o cheiro do sustento

do dia a dia que não se adia

 

 

NADA

 

Inflação

desnutrição

e nada para encher a panela

 

 

DERRUBADA

 

Sol calor

      água

      frio

      terra

 

chove o riso que dilacera

a ecologia

riso com lábios cerrados

 

sem suor

sem ar

sem arma

sem chão para morar

 

Amazônia derrubada

é toda uma raça mutilada

passado vencido

presente perdido

 

 

RELATO

 

Rolou no seio da noite

a vontade de que tudo fosse belo

Amar é qualquer coisa de belo

que se perde na noite

 

 

MAS AINDA É...

 

No tempo dos coronéis

não se ganhava nenhum réis

o patrão comia no cuião

e o mané

se dormia

dormia mal

hoje não se sabe bem

a diferença

só se sabe é que

patrão continua comendo no cuião

e muitos

manés

ainda dormem no chão

Ilustração de Genésio Fernandes.

ÁGUAS CORAÇÃO

 

Meu coração

não é menor que o seu

e nem é menor que o mar

nele navegam muitas águas

muitos barcos muitas correntezas

 

 

BEIRA DE RO

 

O rio desce

o rio sobe

o rio corta

         entrelaça

         debilita

 

pela libertação

das massas

das cabeças

espanta rio com tuas águas vadias

tantos tubarões vazios

que vivem a embalar

tuas águas contra a corrente

 

 

ENCANTO DA MATA

 

Perto da mata eu nasci

perto da mata eu vivi

hoje do pouco sabor que tenho

de olhar o rio

os encantos da mata e do saci

dos caboquinhos da mata

já não me faz sentir

que existe este encanto

 

 

RÂNGELA. Águas coração. Rio Branco: 1983.

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