segunda-feira, 14 de março de 2022

GERSON ALBUQUERQUE: "beijo seguido de pretéritos"

“Beijo seguido de pretéritos” (Rio Branco: Nepan, 2022), recente trabalho poético de Gerson Albuquerque, o seu “terceiro livro [ou não-livro] de exercícios e ensaios literários, a crônica e a poesia se misturando fora dos quadrados enquadramentos e longe do lattes”. 

Em 2017, Gerson publica “Palavras perdidas em meios silêncios”; seguido, em 2019, por “Limiares: manuscrito para um não-livro – nem uma coisa, nem outra”, um livro híbrido que reúne poemas, resenhas, crônicas e contos. Ambos publicados pela Nepan Editora.

Agora, neste início de 2022, o autor apresenta-nos o seu “beijo seguido de pretéritos”, a dialogar com a plasticidade não conceitual das obras anteriores, um livro cuja tecitura se deu no contexto pandêmico (2020-2021), “nos tormentosos tempos de ataques de vírus e neofascistas mortais, imorais, cínicos.”

“Beijo seguido de pretéritos” traz o cheiro acre dos barrancos, em cujas margens, desenrolam-se, em seu pretérito presente, a forjada condição humana de descaso, morte e resistência.

 

ressaca

 

entre duas curvas, a montante e a jusante, o rio regurgita

ébrio, espirra corned beef, expele

garrafas de cerveja e buchudinha.

serpenteando entre o quinze e a judia, o rio mija

quadrados de estofados e tampas de geladeiras,

vomita plásticos, escarra

fezes no orgulho de ser acreano.

 

 

sobriedade

 

bardo das águas do aquiry, raimundinho

riscou os ares da vila e da antiga brasília, teceu

manuscritos sobre certa batalha do baía, gritou

aos pulmões que o prefeito era um fornicador, zombou

dos vereadores, gargalhou

do herói grileiro, cagou e andou

para as pudicas da paróquia e desapareceu

debaixo da fronteira, após inventar o hino da cidade.

certo dia ele me disse que estava morando atrás do acre, onde

o rio fica de cócoras,

pra não ser visto pelos tratores do desenvolvimento,

nem sentir o pixé de bosta da boiada.

 

 

permuta

 

as águas do rio despejam fertilidade em todas

as margens da cidade.

a cidade evacua suas obras em todas

as beiras de rio.

o rio espreita inquieto, retém

as águas, as terras caídas, os balseiros, as obras evacuadas.

e cospe líquidos silêncios, afogando

as mágoas, os portos, as praças, as pontes,

devastando as casas e os barrancos.

 

 

ALBQUERQUE, Gerson. Beijo seguido de pretéritos. Rio Branco: Nepan Editora, 2022. p. 13, 16 e 34

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