sábado, 29 de abril de 2023

CÃO DA MADRUGADA

Um cão latia na madrugada de lua cheia. A quem? Por que latiria ele assim? Eu lia, deixei o livro de lado e senti que não estava só. Como eu, na madrugada, um ser vigiava. Segui seu latido, procurei sua forma sem pensar em sua raça.

Por que latem os cães nas madrugadas? Nas cidades do interior, nas vilas, campos, províncias, é o galo que anuncia a noite acabando e o dia chegando; nas grandes cidades, sem quintais e galinheiros, é o cão que apregoa a vinda do sol, a partida da lua. Ladra porque gosta da noite e ela está dizendo adeus. Late para os que estão sós, anunciando-lhes companhia; para os que estão acompanhados se sentirem em segurança.

O cão da madrugada é um cão que late na esperança de um dia melhor que vai chegar; ladra ao vulto que vem distante, porque não sabe ainda se é um amigo ou um inimigo. Late porque não está de acordo com certos ruídos, nem com o pisar de certos pés. Ladra porque quer que descansem, naquele momento, os que trabalham demais e aquele transeunte, aquele bonde, aquele automóvel vão perturbar aquele sono; vão interromper, principalmente, o dormir das crianças que precisam, naquela hora, esconder seus pequeninos mundos nas pupilas.

O cão da madrugada é um vigilante: sentinela defendendo a noite que termina e o dia que nasce; late para a lua que está morrendo, para o sol que está nascendo; se a madrugada vem vermelha, anunciando um dia claro, ele ladra de alegria; se a madrugada vem nebulosa, esbranquiçada, indefinida em cores, sem promessas, é triste seu latido. Na noite em que meu pai morreu, ele latia: latia muito, latia e gemia quando minha mãe morreu.

O cão da madrugada sente todas as coisas da vida: a quietude ou o rebuliço das árvores; o choro ou o riso das crianças; a revolta ou a calma dos mares; ou azul ou o pardo dos céus; a miséria e a alegria dos homens. Sofre com o sofrimento dos humilhados; não ser curva aos poderosos; não inveja riquezas. Seu latido difere em sons e tons, marcando sentimentos: é triste e comovido quando pousa nas favelas; é de queixa para o luxo dos arranha-céus. O cão da madrugada late: vela, vigia, zela. Lamenta os que estão apenas de olhos fechados e por isso não verão a beleza de um novo dia; os que morreram e não poderão assistir às maravilhas da aurora que vai chegar. Late para os que amam e pelos que sofrem; pelos que desperdiçam inutilmente as madrugadas e pelos que dela vivem; pelos que dentro dela riem ou choram.

Algumas vezes quieto, cabeça no chão, olhos fechados, músculos relaxados, o cão da madrugada parece não estar atento aos ruídos do mundo, mas o mosquito que tentou pousar em seu corpo foi repelido; mesmo quando dormita, ele não perde contato com o mundo, tão leve é o seu sono. Como poderia ele dormir se batalhões de desgraçados cortam o mundo em várias direções? Não é boêmio nem vagabundo: é um vigilante, e a madrugada quanto mais bela, mais perigosa.

Por tudo isso, este livro se chama Cão da Madrugada e não digam que parece o título de uma novela policial.


ENEIDA. Cão da Madrugada. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954. p. 7-8

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Eneida de Moraes (1904-1971), ou simplesmente Eneida, jornalista, militante política, feminista e escritora paraense, falecida no Rio de Janeiro. Autora de Terra Verde (1929, poesia), Cão da Madrugada (1954, crônica), Aruanda (1957, crônica), História do Carnaval Carioca (1958, ensaio) e Banho de Cheiro (1962, crônica).

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