Eneida [de Moraes] (1904-1971)
Durante o inverno a sala era tão úmida, tão
fria que enregelava mãos e obrigava os pés a manter um constante sapateado; no
verão a sala era quente, tão quente que parecia querer matar-nos sufocadas a
qualquer momento.
Os dias – no inverno
como no verão – se arrastavam pesados, longos, sem monotonia, pois nossa
constante preocupação era inventar formas para que eles não fossem parecidos.
Enchíamos com coragem e alegria todas as horas: ginástica, estudo, conversas,
cânticos, passeio. Tão pequeno espaço que possuímos para caminhar, e o ruído
dos tamancos cortava-o, ferindo o lajedo; as saudades impressas nos olhos; as
constantes evocações. Quando se falava em quitutes variados, quando alguém
dizia como se preparava esse ou aquele prato, podia-se olhar os olhos: estavam
todos famintos. Quando se contavam passeios e se falava de mar, praia, montanhas
ou planícies, podia-se ver nos olhos famintos uma ânsia de voltar à vida da
cidade, da terra, do mundo.
Éramos vinte e cinco
mulheres presas políticas numa sala da Casa de Detenção, Pavilhão dos
Primários, 1935, 1936, 1937, 1938. Quem já esqueceu o sombrio fascismo do Estado
Novo com seus crimes, assassinatos, desaparecimentos, torturas?
De um lado e do outro
da sala, enfileiradas, agarradas umas às outras, vinte e cinco camas. Quase
presas ao teto alto, quatro janelas fechadas por umas tristes e negras grades. Encostada
à parede, uma grande mesa com dois bancos. Ao fundo da sala, os aparelhos
sanitários. Por maior que fosse a nossa luta para mantê-los limpos e
desinfetados, nunca conseguimos fugir do cheiro forte que exalavam.
Vinte e cinco mulheres,
vinte e cinco camas, vinte e cinco milhões de problemas. Havia louras, negras,
mulatas, morenas; de cabelos escuros e claros; de roupas caras e trajes
modestos. Datilógrafas, médicas, domésticas, advogadas, mulheres intelectuais e
operárias. Algumas ficavam sempre, outras passavam dias ou meses, partiam,
algumas vezes voltavam, outras nunca mais vinham.
Havia as tristes,
silenciosas, metidas dentro de si próprias; as vibráteis, sempre prontas ao
riso, aproveitando todos os momentos para não se deixarem abater. Os filhos de Rosa
eram nossos filhos. Sabíamos as graças e as manhas com que embalavam aquela
mulher forte, arrogante, atrevida sempre mas tão doce, tão enlevada pelos “meninos”.
Quando Rosa falava nos “meninos” ficávamos todas em silêncio. Onde andariam
eles? A polícia arrancara-os daquela mãe, negava-se a informar onde se
encontravam, não admitia que Rosa soubesse notícias da família: o marido
foragido, a irmã distante. E os “meninos”? No silêncio das noites, Rosa fazia
com que assistíssemos aos nascimentos, aos primeiros passos, à primeira
gracinha, ao primeiro sorriso, e depois o crescer rápido, a escola, os livros,
idade avançando. Onde andariam eles?
Problemas de uma,
problemas de todas. O noivo de Beatriz era o nosso noivo. Queríamos saber suas
notícias, coisa que nem a própria noiva conhecia. Problemas comuns, destinos
comuns. Os filhos de Antônia estavam em Natal, mas onde andaria o marido de Nininha,
preso no Rio Grande do Norte?
– Aquele eu conheço muito.
É um cabra da peste. Ninguém dobra ele, não.
Nininha alourada, de
voz cantante, opunha às cenas de doçura suas palavras de energia. Contava a
vida do marido como a de um herói.
Pobres mulheres jogadas
numa prisão infecta, sem o menor conforto. Maria pensava no seu chuveiro
elétrico, Valentina ensinava literatura inglesa (como estudava e lia Valentina)
e queríamos à viva força que Nise desse lições de Psicologia.
Um dia – jamais
esquecerei esse dia – fazia muito calor e havia sol. Pareciam maiores as
paredes da sala onde escrevêramos desabafos. A vida lá fora devia estar bela;
era verão e com certeza as ruas e avenidas ensolaradas viam passar mulheres de
vestidos claros e leves. Na sala, aquela tarde, havia tanto calor que
descansávamos nas camas, abanando-nos com pedaços de papel. Como não tínhamos
espaço para andar todas ao mesmo tempo, quando umas o faziam, outras eram
obrigadas a ficar sentadas ou deitadas nas camas. Jogávamos paciência, algumas,
e o calor era tanto que nem tentávamos falar. Qualquer gesto, qualquer palavra
ou movimento iria aumentar o suor que escorria de nossos corpos cansados. Não
podíamos perder a menor de nossas energias: devíamos sobreviver.
Foi nessa tarte que
tenho gravada na memória que ela entrou na Sala das Mulheres. Nunca esquecerei
seu ar de espanto nem aqueles sapatos que haviam sido brancos. Estavam
manchados de terra ou de sangue? Nunca esquecerei o vestido sujo, as mãos
trêmulas, os cabelos brancos revoltos.
Ouvimos os passos do
guarda subindo a escada; as chaves na porta de grades; depois ela entrou.
Estatura mediana, vestido estampado, olhos curiosos. Entrou em silêncio. Em
silêncio o guarda a deixou ali.
Olhou em torno.
Procurou examinar uma a uma as mulheres, envolvendo-as todas num olhar imenso.
Sentou-se na ponta de uma cama próxima, curvou-se, meteu os dedos por entre os
cabelos.
– Quem será?
– Que mulheres serão
estas? – estaria se perguntando.
Aproximamo-nos.
Tínhamos sempre o cuidado de fazer o reconhecimento e o nosso próprio
interrogatório: de onde vem, que fez, por que foi presa, seu nome, etc. Muitos
etc.
Perguntamos quem era
ela. Nenhuma resposta. Ninguém a conhecia; não nos conhecia. Insistimos.
Levantou os olhos, encarou-nos de frente, parecia animal pronto a se defender.
Nossas perguntas foram feitas em várias línguas. E ela continuava firme, sem a
menor perturbação fisionômica.
– Não sabemos quem é
você. Mas nós somos antifascistas, nós somos presas políticas. Cada uma de nós
tem sua história; esta veio presa do Norte, aquela está aqui como refém porque
o marido sumiu. Somos todas brasileiras.
Uma de nós adiantou-se
e lhe disse:
– Eu sou comunista.
Foi a esse grito que
aquela mulher despertou. Agarrou-se à companheira, beijou-lhe o rosto e pôs-se
a exclamar com grandes lágrimas descendo pelo rosto alquebrado.
– Camarada, minha
camarada!
O olhar com que agora
envolvia as vinte e cinco mulheres era diferente; queria entender as palavras
nas paredes, perguntava, sorria, abraçava todas, chorava e ria. E contou.
Contou com voz firme o quanto sofrera. A Polícia Especial a maltratara
monstruosamente. Mostrou-nos os seios onde trazia impressas marcas de dedos.
Colocavam-na no alto da escada, amarrada e nua para forçá-la a declarar ou
delatar, enquanto dois homens enormes lhe puxavam os seios.
Falou-nos do sofrimento,
da fome e da sede que lhe haviam imposto. Falou-nos de seu companheiro e das
barbaridades que ambos padeceram. Falou sempre com voz clara, precisa, serena,
em tudo que passara nas prisões desta cidade. Seu corpo guardava ainda as
vergastadas do chicote policial. Jogavam-na de prisão em prisão. Ora era metida
em celas de prostitutas, ora no meio de ladras ou ébrias. Durante mais de dois
meses sofreu humilhações físicas e morais.
– Muito ruins, muito
ruins, comentava.
Uma de nós falou:
– Ela precisa comer,
tomar banho, mudar o vestido.
Houve um corre-corre
geral. Todas queriam dar-lhe roupas, todas queriam dar-lhe um pedaço de pão, de
doce, uma fruta. Comia sorrindo. Sua fome tinha dois meses, seu sofrimento mais
algum tempo.
Minutos depois voltou o
guarda. Explicou que fora engano. A prisão para ela seria outra. E sorrindo:
– Muito pior.
Quando partiu, deixava
vinte e cinco amigas. Não lhe dissemos adeus, não tivemos um momento de
fraqueza. Mas quando as grades se fecharam atrás dela, cinquenta olhos
choravam.
A tarde tão quente de
verão foi mais longa e dolorosa naquele dia. Ninguém falava. Voltamos ao jogo
de paciência, ao silêncio, à angústia de saber que a vida lá fora devia andar
linda.
Três meses depois ela
voltou. Veio viver conosco. Todas as noites, à meia-noite, levantava-se e
andava, andava de um lado para outro, sem uma palavra.
– De meia-noite às duas
da manhã ela devia apanhar; ficou-lhe uma psicose.
Essa mulher se chamava
Elisa Soborovsk, a Sabo Berger, mulher de Henry Berger. O governo Getúlio
Vargas entregou-a mais tarde à Gestapo. Hitler matou-a.
Sabo, para sim, foi uma
revelação; jamais conheci mulher tão culta, tão humana, tão valente. Uma mulher
tão bela. Nunca a esquecerei.
Na noite em que ela
partiu com Olga Benário para o navio que as levaria a Hitler, era inverno e
tiritávamos de frio. Sofríamos ainda mais, porque tínhamos aprendido a amá-la.
Recordando-a agora,
cumpro um dever. Jamais esquecerei também as vinte e cinco mulheres da sala ora
fria, ora quente, do Pavilhão dos Primários.
Grandes mulheres; boas
companheiras.
ENEIDA. Aruanda: crônicas. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1957. p. 104-112
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Acerca de Elise Saborovsky Ewert, a Sabo, leia
mais aqui.
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