sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

ELEGIA AOS MEUS PÉS - Leila Jalul

Hoje vou tirar uma onda de Lucas Leles. Ele não sabe, até por não ter revelado para ninguém, que adoro o jeito como escreve. Sou chegada a uma anarquia e até me envergonho de confessar. Lucas Leles é apenas um menino... e eu, há muito, dobrei todos os cabos, inclusive o Cabo da Boa Esperança.

Dizem os astrólogos que Jesus Cristo era pisciano. Que carregou o peso do mundo. Que tinha os pés deformados. Quem mandou andar descalço?

Disseram os escribas que Maria, a mãe do menino Deus, chorou aos pés da Santa Cruz. Ajoelhados aos pés dela, muitos pecadores juraram eterno amor e não cumpriram.

Pés, pés, pés...

Também sou pisciana. Carreguei nas costas o peso do meu próprio mundo e dos malfazejos dos meus ancestrais da linha mais direta. Tenho os pés deformados e fudidos. Pés que não valem o peido de uma vaca parida!

Na primeira infância, durante uma epidemia de poliomielite que abocanhou duas amigas - Mirtes e Ivone - paralisei e tive febre alta por um período longo. Meu avô, preocupado, mandou queimar e retirar óleo de mais de dez quilos de sementes de gergelim. Ficava em brasa quanto entanguida pelas compressas ardentes do tal óleo. Por Deus, apenas por Ele, não resolveram envernizar minha cara de pau com o tal unguento. Deixaram que fosse polida com óleo de peroba. Frio, mesmo!

Mais tarde, jogando bola para angariar o respeito e o amor dos meninos da minha ruela de barro, trucidei o pé esquerdo. Depois o direito. Quebrei os dois braços que foram consertados com gesso de clara de ovo de pata e goma de taioba. Engoli duas moedas que expeli de forma natural. Hoje, que preciso obrar dinheiro... Necas!

Aos oito, nove anos, nem lembro ao certo, tive umas feridas na cabeça. Fiquei pelada e usando "biruta", um acessório da época, feito com tecidos de renda ou seda e altamente invejado pelas meninas sem posses. Mamãe passava um líquido rosa nas perebas purulentas que tinha o nome de CALADRIL. Era uma espécie de solução que, ao secar, engelhava a pele, o couro cabeludo e tudo que estivesse ao derredor, inclusive os miolos da cabeça. Sofri. Como sofri!

Com quatorze anos, mal sabendo andar com sapatos baixos, arranjei meu primeiríssimo emprego. A sigla da autarquia era SAL - SERVIÇO DE ÁGUA E LUZ.

O SAL era dirigido por um engenheiro educadíssimo, negro com mistura de holandês, olhos verdes- esmeraldinos, especialmente bonito e bem preparado. O nome dele era Luiz Guilherme de Souza (ou seria da Silva?). Nunca estive frente à uma pessoa mais especial que ele. Nunca! Nunca, mesmo!!! O maior e melhor chefe que tive a honra de conhecer. Pela decência e honradez.

Quis apresentar-me bem no primeiro dia. Na Sapataria Acreana, sob o olhar feio e o nariz torcido da proprietária, tirei fiado um par de sapatos de princesa. Era cor de rosa, salto dois e meio, cheio de buraquinhos para aerar o suor dos “pisantes” e arrematado por um laçarote dourado. Uma graça!

A repartição abria às sete e trinta para o batimento de ponto. Às quatro e quarenta da madrugada eu já estava lá. Suava, esfregava as mãos e coçava a cabeça em frenesi. Minha intenção era impressionar o doutor e tornar-me a mais eficiente das empregadas do SAL. Não era tão fácil, mas era simples e não impossível. No pequeno escritório, éramos seis: Dona Maria das Graças, a diretora; Dona Valdívia, a secretária do gabinete; Aurélio Vargas, o chefe do pessoal da rede; Mônica Andrade, a chefona da distribuição das contas de energia; Marcionília Maria, a servente, uma biscate que adorava puxar o saco do chefe e eu, que nada era, até o dia que pudessem dizer quem era eu.

Voltando aos pés, cheguei tão cedo que não observei a separação e o lodo marrom dos tijolinhos da entrada. Meti o pé direito em meio à vaga escorregadia e... “desmenti” mais uma vez o pé direito. Isso quer dizer que entrei com atestado médico antes de conhecer os amigos e as tarefas do SAL. O sapato cor de rosa deu o maior azar. Quando a coisa engendrou, finalmente, tornei-me uma eficiente funcionária.

Esperta que era, de tanto preencher fichas de cobrança, decorei de cabo a rabo os nomes de avenidas, bulevares, ruas, ruelas, avenidas e becos. Sabia de cor a numeração dos postes. Os logradouros sem nomes e as casas sem número, num piscar de olhos, sabia dizer para os estafetas entregadores das contas o nome dos vizinhos da esquerda e os da direita. O que mais interessava era que houvesse o pagamento pelo consumo dos watts e dos kilowatts. Eu entendia de direção. Glória!

Na reestruturação do órgão ganhei, por merecimento, um cargo gratificado e abono por produtividade. Passei a ser conhecida como a Leila do SAL. Glória!!!

Anos depois, outra miséria caiu sobre mim. Quebrei a perna em oito lugares. Foi macumba, sei. Lasquei-me! Foram três anos sobre uma cama. Tonéis de dinheiro com fisioterapia. O tornozelo havia sido triturado. Mas venci. A rainha do SAL não haveria de morrer no escuro. Glória!!!

Sequelas? Sim! Há sempre um par de muletas no canto do meu quarto. A cadeira de rodas, por teimosia e por considerar humilhante e denotadora de fraquezas, doei.Não demorou muito, em 2004, inebriada que estava pela vitória do PT, apaixonada pela atuação da então Senadora Marina Silva e por meu amigo Raimundo Angelim ter conseguido ser eleito Prefeito de Rio Branco, empunhando uma bandeira vermelha, saí do choco de galinha velha e fui ver a festa. A praça estava lotada. Apinhada de gente vermelha com a estrela do 13. Marina discursava com aquela voz de, de, de... taquara rachada, como dizem os contrários. No afã de exercer minha parcela de felicidade e cidadania, quis entrar no meio do povaréu. Ao descer da calçada da fama da Praça Plácido de Castro para o asfalto, onde estava o aglomerado dos que não pensam, mas votam, enterrei a perna esquerda (a já quebrada em oito lugares) na sarjeta.

Nem pude aplaudir Marina. Estou até hoje devedora. Dali, carregada nos braços de quatro elementos sóbrios, louve-se, cheguei ao carro do SAMU, estacionado atrás do palanque. Para alcançar o PS, em dias normais, gastava-se, quando muito, uns três minutos. Bastava subir uma ladeirinha da Getúlio Vargas. Naquele dia de Raimundo Angelim vitorioso, mais de meia hora. Dizer de minha aflição... não, não digo. Para bom entendedor, até silêncio leva crase.

Enfim, chegamos. Cheguei. Mesmo com dores atrozes, corri a vista pelo saguão. Em coma alcóolico, uns vinte. Baleados uns dez. Feridos de arma branca, outros tantos. Naquele dia, especialmente naquele, pediatras faziam suturas em esfaqueados; cardiologistas aplicavam glicose nas veias dos bêbados e ginecologistas retiravam balas alojadas nas cabeças dos eleitores mais briguentos e fregueses das vias de fatos. Uma verdadeira força-tarefa pela vida. Um bafafá!

Entrei na ala de ortopedia. Ali vejo o jaleco branco que escondia o mais famoso quebrador e entortador de ossos retilíneos da paróquia. Não falo o nome dele por respeito a mim mesma. É conhecido o bastante por sua avessada fama. Perdi o fôlego. A dor estava maior que a razão e, na base do “só tem tu, vai tu mesmo”, deitei na maca. Meu pé estava torcido, ferido de morte e sujo de mijo de ratos, salmoura de picolés, bitucas de cigarro e placas de escarros dos lascados do peito. Ainda assim, juro pelo que há de mais sagrado neste mundo, o maluco pediu que minha acompanhante fosse ao banheiro e lavasse meu pé. O pé foi lavado sem sabão, pois que não havia. Desse mesmo jeito, sem asseio adequado, sem radiografia reveladora, foi empacotado no gesso. O infeliz nem olhou o arranhão do tornozelo e deu por encerrado o procedimento. Gloria! Eu merecia!

Pela madrugada, acompanhada do índio apurinã, meu anjo da guarda, rugi de dor. O pé não mais cabia na bota branca. Com o auxílio de uma minúscula serra fita e uma tesoura cega, após suores e gemidos, fiquei dela liberta. O inchaço se expandiu. O arroxeado do ferimento acentuou.

Depois de toda essa epopeia, na velhice agora, eis que me aparece uma síndrome de Renault. Nada foi ou é pior que ela. Para os íntimos, na base da brincadeira, afirmo que essa síndrome só acomete “meninas poderosas” ricas e desocupadas. Não faço parte do rol.

Não durmo antes das quatro da manhã, às vezes nem às cinco e, às vezes, nem consigo relaxar para pregar os olhos e amortecer o cérebro. Não tenho dores: somente ardências. É como se caminhasse sobre brasas ou sobre barras de gelo. Ambas queimam com quase a mesma intensidade. E levantam pipocas. Da médica, ainda tendo que achar bonito, ouvi a sentença: vou morrer com isso e não por causa disso. Será?

Será sendo, ou será não sendo, devo estar feliz comigo mesma. Andar em volta desse meu esqueleto por quase sessenta e quatro anos, tenho vivido sessenta e quatro vidas. Acrescente-se a tudo sessenta e quatro amores e outros tantos de perdas e desgostos. É vida demais para dois pés apenas. Quem me invejar que atire a primeira pedra.

Leila Jalul
São de Neruda os versos que transcrevo abaixo. Com eles quero encerrar o ano, e, numa tentativa de ficar próxima da escrita de Lucas Leles é que me despeço, temporariamente, do site do Lima Coelho. Meus pés entrarão em férias, nem sei se merecidas. Será um tempo de ajustes no processo criativo. Os leitores agradecerão. Voltarei em fevereiro, bamburrada de ideias e saudades.

Aos que estiveram prestigiando o site, seja com poemas, contos, artigos, crônicas e comentários, um desejo de paz e saúde. Que venha 2012!

Até breve!


“Walking Around

Acontece que me canso de meus pés e de minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.

Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas”.

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* Publicado originalmente no site Lima Coelho.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

PORTA-LARGA

José Augusto de Castro e Costa*


Encontra-se denominações de tudo quanto é porta, aquela passagem existente numa parede, localizada ao nível de um pavimento. Temos porta-aviões, porta-bandeira, porta-estandarte, porta-retratos, porta-voz. Todos esses termos têm significados pré-definidos. A nossa porta-larga, porém, em aditamento à sua denominação, tem uma significação deliciosamente especial.

Estamos diante de um simpático casarão, um pouco depois do início da Rua Seis de Agosto, localizado à esquerda, no sentido do Igarapé da Judia. Melhor explicando, dava fundos com os fundos da Rua da África.

Era um casarão destinado ao entretenimento, como amar, como frequentar um cinema, como jogar dominó ou uma partida de bilhar.

Ao transpor-se a larga porta-dupla, dava-se de cara com várias mesas, dispostas de maneira que formavam corredores entre umas e outras, até chegar-se ao salão, onde homens dominavam, premido ao corpo, com maestria, o corpo de mulheres rebolativas, a provocar o entusiasmo contagiante. Logo a seguir localizava-se o balcão, onde eram servidas as bebidas, com destaque para o gin-com-vermouth e a cachaça (Cocal) aos que não tinham o privilégio cômodo das mesas.

A distração era tamanha que se perdiam as questões do cotidiano, ao encontrar-se alí figuras jocosas, divertidas, como Luizão (de camisa aberta ao peito por força da protuberância), Predial, Prikit Seco, Zilda Vara-Pau, Fernando Bruzugú, Nego da Izaura, Oswaldo Xexéu.

O Luizão, bom contador de causos, orgulhava-se de, para o espanto de todos, entornar na boca da garrafa, todo o conteúdo da Cocal, sem fazer caretas. É verdade que tal atitude era apenas a título de demonstração, a pedido de alguém a quem devesse atenção. Na maioria das noites o Luizão servia-se apenas de dozes medidas – nunca menos que duas garrafas.

A denominação Porta-Larga era dada em função do largo espaço de quatro metros e meio, ocupado por duas portas sobrepostas uma a outra. Com a pintura de cor azul desbotada, a casa apresentava aspecto de vetustez, o que na realidade o era, havendo até quem temesse por seu desabamento. Mas Zé Beiçola, ou melhor, José Praxedes, seu dono, corajosamente tocou o quanto possível seu empreendimento que, por ser paralelo à Rua da África, contava com uma vizinhança de primeiríssima qualidade, à estirpe de Silvio, Sálvio, Oswaldinho, Oscar, Nonato, Guariba, Galvãozinho. Eram também senhorios da área, embora residentes um pouco mais distantes, grandes companheiros como Papagaio, Capa-Bode, Brachula, Otacilio, João Cara-Olho.

Quem se dirigia ao Porta-Larga, obrigatoriamente teria que passar pelo Bar do Joaquim Pinto, onde muitos entretiam-se, apresentando suas habilidades no maior e mais refinado Salão de Sinucas e Bilhares de Rio Branco. Era no Bar do Joaquim Pinto que eram levadas a efeito as preliminares para o Porta-Larga.

O pessoal do Primeiro Distrito também frequentava a área, mas era importante manter boas relações com o pessoal do Segundo Distrito. De vez em quando havia algum conflito, com riscos de maiores proporções, o que levava o visitante a atravessar o rio a nado. Outras vezes ocorria o contrário, era alguém do Segundo Distrito que retornava nadando, por retaliação.

Pilunga, de baixa estatura e muito arrogante, com uma revista O Cruzeiro nas mãos, tinha visto uma reportagem sobre a inauguração de uma Usina no interior paulista e, para puxar assunto, foi perguntar à Zilda Vara-Pau, se ela já havia visto as chaminés da usina de Boqueirão, ao que a outra respondeu:

– Nunca vi nem quero ver. E se botar prá fora eu passo-te a garrafa na cabeça, cabra sem-vergonha, seu Fio duma Égua.

O tempo fechou, literalmente, porque também começou a chover, e o Pilunga saiu correndo no rumo do rio. Caiu n’água, na altura da casa do Sálvio e saiu abaixo da Cadeia Velha. Quase morreu! Passou tempos sem voltar ao Porta-Larga, onde o rala-coxa continuava.

*


* José Augusto de Castro e Costa é acreano, natural de Rio Branco. Reside atualmente em Brasília, onde trabalha no Senado Federal, lotado no Instituto Legislativo Brasileiro – ILB, aí exerce a atividade de Coordenador de Cursos.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

MINHAS VIDAS ALHEIAS, O NOVO LIVRO DE LEILA JALUL, E A CONDIÇÃO DO AGIR HUMANO*

Isaac Melo


O contista, valendo-se aqui de Alfredo Bosi, é um pescador de momentos singulares cheios de significação. É o que faz Leila Jalul em Minhas vidas alheias, obra a marcar sua estreia no conto. Conhece-se o rasgo da autora como cronista (Suindara (2007) e Das cobras, meu veneno (2010)) e poeta (Coisas de Mulher, coisas comuns, coisas de mim (1990) e Absinto maior (2007)), agora, no conto, embora permaneçam suas características próprias, o seu fazer literário assume uma nova dimensão, menos intimista memorialista para uma mais visionária, sem, no entanto, fugir de um realismo crítico.

Minhas vidas alheias, a começar pelo título, é singular, trágico-humano, paradoxal. Nele, Leila Jalul se apodera de tal forma de suas personagens (linguagem e ambiente) que acaba por fazer das vidas alheias uma “extensão” da própria vida. O livro reúne 26 contos, em que ficção e realidade dão-se as mãos, pois como ressalta a contista: “Não adianta querer negar as evidências. Ficção e realidade são confluentes...”. Além disso, uma espécie de determinismo genético, aliado a certas patologias, e os elementos sócio-culturais exercem uma influência significativa na trama dos contos: “Inegável, também, é a carga negativa que algumas famílias arrastam vida afora. A genética faz parte disso. O restante fica por conta da assertiva de que o ambiente faz o homem e, por fim, some-se a educação, ou a falta desta”.

A música e a poesia, como nas demais obras de Leila Jalul, são características que persistem em Minhas vidas alheias. A obra congrega uma miscelânea de fatos e ambientes, indo dos seringais amazônicos às encantadoras paisagens do norte da Itália. A temática também é variegada e não deixa de tocar em pontos críticos e polêmicos, a saber: situação de trabalho infantil (O Oleiro Galenteador), alcoolismo (Pacto é Pacto), pedofilia (Magias e Promiscuidades), drogas (Anelise e seus Bofes), homossexualismo (Rojão Fatal), etc. A presença da mulher também se sobressai e perpassa praticamente todo o livro, e assume um lugar central, como nos contos: Rosa dos Ventos, Estranho Reencontro, No Úbere de uma Vaca Também Bate um Coração, Fugir é Preciso, etc. São mulheres, em sua maioria, de atitudes nobres, que não perdem sua dignidade mesmo quando feridas e subjugadas pela cultura patriarcal. Na literatura leiliniana, a mulher tem vez e voz, não por uma simples oposição ao machismo, mas como uma afirmação da essência do ser mulher, para além das circunstâncias histórico-sociais.

No conto “Árvore Gene(i)lógica”, Leila Jalul realiza aquilo que afirmou Alfredo Bosi, a saber, que o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra. É o conto mais longo de todos. Dividido em nove subtítulos, conta a história de uma família, formada por sete filhos, dos quais a vida de seis é marcada por tragédias. A contista quer acentuar a questão da genética, da “carga negativa”, do ambiente, da educação, como fatores que podem ser determinantes no destino das pessoas. Mas, ao mesmo tempo, é possível fugir desse “determinismo”, como demonstra a personagem Sayto, pois “sempre há uma brecha para a bondade”.

Os contos leilinianos às vezes sobem ao anormal, ao grotesco, ao macabro, tal como a vida muitas vezes também se apresenta. É o absurdo do agir humano elevada à sua potência maior. É a mãe que mantém a própria filha em cárcere privado, e que usa como sopeira, para servir a seus convidados, um penico inglês de próprio uso (A Louca de Caxangá); é o professor de literatura que faz luto por um palito de fósforo (Elvis Morreu); é o desfecho fatal do irmão que mata o outro a machadadas, depois de sofrer humilhações por ser homossexual (Rojão Fatal); é a história da jaqueira que, ao seu redor, minava uma água escura e fétida, pois aí o pai enterrava as próprias filhas, depois de matá-las (A Jaqueira Sombria), etc. Nisso tudo, a autora não quer enfatizar em si a violência, mas, como o fator psicológico pode ser preponderante para incitar ou coibir determinadas ações humanas.

A invenção do contista, diz Bosi, se faz pelo achamento de uma situação que atraia, mediante um ou mais ponto de vista, espaço e tempo, personagens e tramas. É o que ocorre no conto “Estranho Reencontro”. É a história de uma juíza, Suzette, que na hora de pronunciar a sentença reconhece o gentil rapaz, que dois anos antes lhe cedera o quarto para dormir, pois no único hotel do lugar já não havia mais vaga disponível, quando ali estivera a prestar concurso. O voltar-se e o olhar do réu para a juíza no instante da leitura da sentença marca o coração do momento inventivo do conto, pois aí a contista explora a hora intensa e aguda da percepção.

Mas Leila é Jalul, como alguém já ponderou. Sabe dialogar e retirar a emoção que deseja de seu leitor. Não é isso que faz em “No Úbere de uma Vaca Também Bate um Coração”? O modo como a contista realiza a descrição é formidável. A história de Chiara, que tem uma vaca como amiga e um cachorro por fiel companheiro, revela uma mulher de jeito simples, daquelas que têm apenas duas mãos e o sentimento do mundo, como ensina Drummond. Ou então, o conto “Não me Maltrate, Robinson!”, a história de uma criança recolhida da rua por um polonês e adotado como filho. O jovem se torna tão apegado à família que chega a demonstrar mais amor pela avó adotiva, quando esta falece, do que os próprios netos. Tal atitude demonstra que os sentimentos não dependem apenas dos laços consanguíneos, mas é algo também que pode ser cultivado e construído.

Com Minhas vidas alheias Leila Jalul se afirma ainda mais como uma das escritoras mais preeminentes das letras acreanas na contemporaneidade, quiçá, uma das mais lidas também, como demonstra seu público fiel no conceituado site Lima Coelho. E tudo ocorre naturalmente, sem alardes, sem holofotes. O vírus Jalul é benéfico e contagioso, só mata fazendo viver. Vida é o que brota de suas páginas, com o poder de fazer com que as vidas alheias se tornem minhas também, nossas, na comunhão do sofrimento e das esperanças, sob o mesmo altar da vida. Por fim, quero fazer ecoar minhas palavras com as de Thomas Mann, em Doutor Fausto, a saber, que a análise necessariamente toma a aparência de frieza, mesmo que se realize num estado de profundíssima emoção.


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Para adquirir Minhas vidas alheias.
Mais sobre a obra de Leila Jalul:

* Texto publicado originalmente no blog do jornalista Altino Machado.

domingo, 11 de dezembro de 2011

LICO: UMA FIGURA!

José Augusto de Castro e Costa*


Ao aproximar-se o final do ano vêm-nos recordações de passagens ocorridas em anos anteriores, que, sem dúvida, acompanham-nos para sempre, mormente se os fatos foram protagonizados por pessoas próximas, mantidas guardadas no peito. Alegro-me de possuir, acomodadas na memória, inúmeras figuras, as quais revivem, vez por outra, comigo passagens hilariamente indeléveis. O Lico é uma dessas personagens que, não raras vezes, vem-me à lembrança e, quando isto ocorre, vejo-me facilmente exposto ao ridículo de esboçar um franco sorriso, sem o menor propósito, aparentemente sem-ver-de-quê. E isto sem levar em conta sua aparência curiosamente alegre. O Lico era albino, irmão de outros dois acreanos, também albinos: Raimundo Louro e João Branco. Eram seis irmãos, sendo quatro albinos e dois de cor morena, os filhos de dona Jandira, vizinha de minha avó. Dona Jandira, morena clara, tal qual o esposo, partiu sem saber, na verdade, a razão de haver concebido quatro albinos e dois morenos.

Raimundo Louro, João Branco e Lico eram muito atraídos pela música. O primeiro “arranhava” os teclados dos pianos do Colégio Acreano e das casas de família de Rio Branco. Era estudioso e procurava sempre destacar-se na casta superior da população. João Branco e Lico eram mais liberais, boêmios e seresteiros. Estavam frequentemente nas serenatas ou nas alvoradas levadas a efeito a aniversariantes. Ambos eram conhecidos percussionistas. O Lico, então, era exímio baterista, excelente pandeirista, muito bom ritmista. Talvez mais que os irmãos, era impagável gracejador, sobretudo nas situações em que algumas vezes envolvia-se.

Nos círculos de seresteiros de Rio Branco distinguia-se o Jonas, deficiente visual, bastante requisitado devido ao domínio com que executava seu velho cavaquinho. Seu desempenho era, por unanimidade, admirável, envolvente, incomparável. Nunca se ouviu falar dos familiares de Jonas, sabendo-se que vivia desacompanhado e sobrevivia da música que alegrava os arrasta-pés na periferia. Como vivia sozinho, utilizava-se sempre da companhia de alguém, na maioria das vezes um vizinho, para guiá-lo a algum local.

Educandário Santa Margarida em Rio Branco (AC)
Certa ocasião, ao encerrar uma alvorada (comemoração de aniversário que iniciava-se às primeiras horas da madrugada e estendia-se até às três e meia), o Lico prontificou-se a levar o companheiro. Jonas residia numa casinha pequenina, localizada na parte baixa de um barranco caído, defronte ao Preventório – Educandário Santa Margarida. Era dezembro, mês de chuvas. Ao chegar às imediações da residência do Jonas, começaram os procedimentos de descida, num local íngreme, escorregadio e escuro. Desce o Lico conduzindo o Jonas em seu ombro, esforçando-se para não desequilibrar-se, o mínimo que fosse, preocupado com um possível desfecho desastroso.

A casinha do amigo era a primeira, ali fincada, como por estratégia, para que alguém pudesse socorrer o vizinho, quando necessário. Ao tocar a porta da casa Lico procurou a maçaneta e encontrou um barbante ligado a dois pregos, para mantê-la fechada. Desatou o cordão e adentrou no recanto do amigo, perguntando-o:

- Onde acende a luz, Jonas? Responde o Jonas:

- Prá que luz, Lico? Eu não sou cego?

O plenilúnio de maio na planície acreana é, certamente, de muito bom grado para gente que gosta de curtir a noite, atravessando a madrugada adentro para “pegar o sol com a mão” e fascinar-se com o risonho e límpido céu formoso ao amanhecer.

Em uma dessas noites Lico acabara de sair de um rala-coxa no Filó, lá paras bandas do primeiro Aeroporto, defronte ao Quinze. Caminhava sozinho em busca de nova aventura quando encontra o Mota de Oliveira, radialista famoso, sobremaneira pela voz gutural. Lico viu o companheiro cambaleando e supôs que tratasse de bebida. Soube que não era apenas por isso, mas o Mota acabara de ser retirado de um buraco negro, aberto para a colocação de um poste, nas proximidades da oficina do Vivi, quase na antiga entrada para a Floresta.

Prosseguiram a caminhada em busca de um repouso, para mais uns tragos. Encontraram uma humilde e rústica birosca, bem em frente ao Cemitério São João Batista. Não havia acomodações, nenhum tamborete, evidentemente, até porque Rio Branco, na época, era completamente desprovido de qualquer requinte, mormente em local sinistro. O menu de bebidas à disposição também era de sofrível escassez: apenas Quinado e cachaça (Cocal).

Quase não conversavam, muito menos o dono da birosca. Mas lá pela terceira dose, já amanhecendo, o Lico, muito conversador, resolve puxar assunto e pergunta ao dono:

- Meu companheiro, você não tem medo de trabalhar, numa hora dessas, defronte ao cemitério? O cara respondeu:

- Rapaz, quando eu era vivo eu tinha!!!

Aí o Mota de Oliveira desmoronou, desmaiado! E o Lico engatou uma quinta no rumo de casa, aonde chegou arrebentando o portãozinho e caindo na varanda da entrada:

- Mãeeeeeeeeeeeeeeee!

Não apenas dona Jandira acordara, mas a vizinhança inteira sobressaltou-se com o berro do Lico e o ensurdecedor barulho de seu tombo no assoalho. Minha avó Emilia também correu para ver, quando dona Jandira dizia:

- Quando abri a porta, parecia que eu estava vendo o cão chupando limão: o Lico, com os cabelinhos arrepiados, de branco ele estava uma mistura de roxo com lilás e as meninas dos olhos sem parar, de um lado para o outro, parecia que iam pular para fora. Cruzes! Tibes! Vote!

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* José Augusto de Castro e Costa é acreano, natural de Rio Branco. Reside atualmente em Brasília, onde trabalha no Senado Federal, lotado no Instituto Legislativo Brasileiro – ILB, onde exerce a atividade de Coordenador de Cursos.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O ABSURDO DA VIOLÊNCIA GRATUITA

Profª. Inês Lacerda Araújo


Atos gratuitos não são livres como pensava Albert Camus. Eles podem ser terríveis. Há tipos de violência que decorrem de comandos políticos absurdos, incompreensíveis, parece que vão além de nossa humanidade.

Há na história do comunismo stalinista um desses episódios de violência que revoltam e chocam, infelizmente pouco divulgado.

Em reportagem recente, a TV5 Monde abordou a história narrada na obra l'Île aux cannibales (A Ilha dos Canibais), de Nicolas Werth. O subtítulo é: uma deportação-abandono.

Em 1933, em plena época stalinista na ex-URSS, perseguia-se e deportava-se para a Sibéria todos os suspeitos de não colaborarem com o Partido Comunista.

Bastava que a pessoa circulasse sem o passaporte ou que tivesse alguma atitude suspeita para ser declarado inimigo do Estado.

No documentário em que se entrevistaram pessoas que viveram ou souberam desses castigos, e com filmes da época em que encarregados da deportação se dizem incapacitados de atender na ilha tantos deportados (6000 pessoas em poucos meses), a crueldade do regime stalinista se expõe, ela é estarrecedora.A ilha em questão fica em um rio perdido na imensidão da Sibéria.

Um caso exemplar:
Uma mãe chega em Moscou, na estação de trem, pede à filha de 12 anos que vá comprar pão. A menina é chamada de vagabunda, agarrada e deportada para a ilha.

Não havia como abrigar e nem alimentar tantos deportados. Os guardas matavam os que ousavam fugir a nado, alguns se agarravam a troncos e eram também caçados e mortos.

A brutalidade dos guardas e comandantes era inominável. Alguns comandantes questionavam se havia necessidade de tanta brutalidade, mas nunca questionavam a necessidade de deportar.

O que fazer com os prisioneiros se não havia comida? Um comandante diz:

"Deixem-nos sair, eles que pastem!"

E outro: "Para vocês eu sou Stálin!"

A fome e a degradação, a impossibilidade de fuga, o desespero, tudo isso induziu ao canibalismo entre os prisioneiros. Os alvos mais fáceis eram as mulheres e crianças. Eram amarradas ao tronco de árvores, e partes do corpo arrancadas, as mais fáceis de comer...

É fundamental recuperar em livros e documentários o descalabro de regimes ditatoriais. É importante lembrar e informar que pessoas inocentes, vítimas de um ditador cruel, foram levadas a um ato a que apenas situações extremas constrangem.

Levou muito tempo para que os crimes de Stálin ficassem conhecidos. É incrível que mesmo quando já haviam sido divulgados (sem condenação alguma!) ainda houvessem intelectuais "esclarecidos" que apoiavam e justificavam o regime e o partido que o sustentava.

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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.

domingo, 4 de dezembro de 2011

TITIO CALLILLA - Leila Jalul

Estamos num dia qualquer do ano de 1960-DC.
Tarde cedo, na velha banheira da casa do dentista Dr. Angelim, cedida para que morássemos eu e mamãe, escutei um grito rouco chamando meu nome. Fechei a velha torneira enferrujada, pulei fora do banho e, sentada no vaso sanitário de tampa amarelada pelo tempo, fiquei a bater queixo. Estaria louca?

A chamada do grito rouco soou novamente, mais desesperada, até: - “Sumaia! Sumaia!”

Só mamãe estava em casa, dormindo e roncando em sua rede branca, coberta tão somente por uma pequena toalha xadrez que lhe escondia os seios. Acordei-a aos pulos, segundo ela, mais branca que uma vela e disse-lhe firmemente: - “Mãe, titio Callilla morreu! Gritou por mim um grito de muita dor. Levante, vamos até à casa dele!”

Mal acabei de falar, ouço a voz de Joshua em tom aflito. Abri a porta e fui falando: - “Titio morreu? Fala, Joshua, ele morreu? Como?

Joshua baixou a cabeça, triste e envergonhado como nunca o tinha visto. Deduzi, sem dificuldades: titio, viciado em sexo que era, morreu de quatro no ato, fazendo amor. Deixamos mamãe entregue à sua preguiça, com os peitos de fora, e zarpamos para os cômodos onde moravam titio e Joshua a três quadras dali.

A expressão “ninho de amor” nunca foi tão cabível para dizer daquele ambiente onde viviam os pombinhos Callilla, de quase 60 anos e Joshua, de apenas 18, mal e mal completados. Tudo cheirava a almíscar e alfazema. A mesa pequena, forrada com toalhinha branca de crochê, estava impecavelmente arrumada para o lanche. Um raminho de Lilases dentro de um copo d’água, dois pratos de sobremesa de cerâmica barata, dois jogos de talheres de alumínio e duas taças verde-garrafa de cristal grosseiro.

Devido à solteirice e para não criar indagações, dormiam em camas separadas. Sobre as camas, além das cobertas com dobraduras especiais, os robes de chambre de cores neutras. No chão, entre as camas, uma passadeira de feltro marrom. Sobre ela e lado a lado, as fofas pantufas dos apaixonados.

Encontramos o morto despido e ainda morno. Sua compleição gigante impediu que o franzino Joshua pudesse sozinho vesti-lo e colocá-lo sobre uma das camas. Não foi a mais bela cena que vi. Nem nos filmes havia visto! Da região do prazer uma imagem bizarra. Aquilo se assemelhava a uma camélia azulada e murcha. Limpa, porém.

Desviramos o corpo, esticamos-lhe as pernas e, após vestir-lhe uma camisa social de listras, adquirida nas Lojas Garcia e ainda com o selo e alfinetes nas mangas e colarinho, entrelaçamos suas mãos sobre o abdome. Uma calça de gabardine preta, do tempo que era mais magro, foi-lhe, a bastante custo, vestida. Conseguimos eu e Joshua, deixá-lo decente e bem apessoado. Meias e sapatos pretos não nos exigiu esforços. Empoamos seu rosto para tirar o grosso da oleosidade e aspiramos um perfuminho for men por todo o seu inerte corpo. Ao final, deixei sobre a cama a boina que titio mais usava. Deveria levá-la junto, fosse para onde fosse. Era sua marca registrada. Pronto! Estava pronto! Pronto para chegar ao Reino.

Durante toda a ritualística da preparação Joshua chorou. Em várias passagens, muitas, até, beijava o rosto de titio Callilla. Uma demonstração de afeto que nunca havia presenciado. Nem em filmes. Com aquela meiguice, não! Era a maior e mais pura demonstração de ternura de um menino por um velho.

- Joshua, vá chamar o Niasi Sharife e o Elifas Chaar. Diga-lhes do acontecido e peça-lhes que providenciem o restante do serviço funerário. Fizemos a nossa parte. Contenha o choro e não dê explicações desnecessárias. Pense que titio morreu por ter chegado a sua hora e que da hora ninguém pode passar.

Puxei a cabeça de Joshua até meu colo, beijei sua testa e ordenei fosse encontrar os amigos e conterrâneos de titio.

Nenhum homem foi tão bem atendido no depois da morte como o velho Callilla. No salão onde funcionava uma espécie de clube libanês, em alto estilo, foi velado, elogiado por sua destreza no jogo de gamão e, enfim, pela sua bondade. Poucos parentes compareceram. Além de mim e de mamãe, mais ninguém. Se é que apareceu, duvido muito, entrou e saiu como um relâmpago. Do único irmão vivo, meu avô Anuar, foi a falta mais sentida, notada e comentada com sotaque de repreensão. Por quê? Era a pergunta que não queria calar!

No final da manhã do outro dia, debaixo de uma fina garoa, o corpo de titio Callilla desceu para a clausura eterna de uma gaveta. Joshua estava para além do choque. Estava em letargia. Nem chorava, nem de mim desgrudava. Passamos no ninho de amor, pegamos alguns dos seus pertences e fomos para minha velha casa. Deixei-o descansar, assimilar a morte e sentir o vazio da perda.

Somente quase na hora de dormir é que decidi abordá-lo. Tomou um caldo de frango reforçado com aveia feito por mãe Fayma, bebeu uma dose de Maracujina e desabou em pranto. Refeito, perguntou-me quem tinha sido titio Callilla. Estava ávido por respostas e ofegante por carinhos. Por que vovô não foi ao enterro do irmão? Seria por conta da sua desviada escolha sexual? Seria por culpa dele? Não via motivos para culpas, então, por quê?

Decidi ser melhor abreviar o momento das declarações de culpas e das demonstrações de comiseração. Abrindo o jogo, falei:

- Escute Joshua, não há culpas. Entenda de uma vez por todas que você foi importante na vida de tio Callilla. Talvez tenha sido a melhor experiência amorosa dele. Saiba que ele morreu feliz e amado. Titio era maronita e vovô mulçumano sunita. Maronitas e mulçumanos - sunitas e xiitas - travavam uma batalha, silenciosa ou barulhenta que fosse, sem dia e hora para terminar. Não era uma guerra religiosa, apenas, como podia parecer. Era guerra pelo poder. A coisa tem se modificado, mas persiste. As batalhas vão desde a divisão territorial até por causa de uma simples esfiha.

Joshua, menino, fica certo de uma coisa: se o fato de um homem gostar de outro homem for coisa do demônio, quem menos contou nesse caso foi o demônio. É briga de gente grande!

- Sumaia, obrigado! Muito obrigado! Que Deus abençoe você. Sua explicação tirou um enorme peso da minha alma, da minha consciência e do meu coração.

- Que Allah cuide de você, Joshua! Que prossiga no seu rumo, garoto! O caminho será longo. Logo aparecerá um novo amor, tomara que da sua idade! O que sentia e demonstrava por titio eram resultados de afeição e agradecimento. Que sabe dizer do amor?

Independente da talagada do calmante de folhas, sem mudar de posição, Joshua dormiu um sono quieto, típico dos inocentes. Mal acordou, no outro dia, quis saber mais sobre a origem de titio.

Embora o assunto não despertasse em mim nenhuma alegria, pelo contrário, atendi aos apelos de Joshua. Disse-lhe sobre a origem da discórdia: vovô e titio eram apenas filhos do mesmo pai. Meio irmãos, portanto. Minha bisa Zainab morreu de parto do vovô e este acabou sendo acabado de criar por Sulema, a nova esposa.

Sulema, por sua vez, veio a ser a mãe de duas meninas – Johara e Yaminah - e de titio Callilla. Ser criado por madrasta, expliquei para Joshua, nem sempre é um mau negócio. Sulema criou vovô com todo carinho do mundo. Deu a ele o mesmo que deu aos filhos, sem qualquer diferenciação. Assim contava vovô.

Na juventude dos dois meninos é que começou o racha. Titio ficou amigo de uma patota maronita e bandeou-se para o outro lado da fé. Fica difícil para os ocidentais o entendimento dessa estúpida cisão, expliquei para Joshua. O certo é que, por conta do desgosto com a inimizade entre os filhos, a morte de meu bisavô foi antecipada. Titio saiu de casa e vovô assumiu as funções de administrador da fábrica de refrigerantes nos arredores do aeroporto de Beirute. Foi então que tio Callilla exigiu sua parte para iniciar um próprio negócio. Deu tudo errado. Sulema, induzida pelo filho, ordenou a venda da empresa.

- Ouvi de vovô uma história que me deixou confusa. Foi sobre o sumiço de uma miniatura do Corão, com capa banhada a ouro e de um anel com um enorme diamante que valia uma fortuna. Eram objetos que pertenciam ao falecido pai deles. Vovô sempre teve certeza que o nome do ladrão era Callilla. Este negava e o resultado foi o peso da dúvida e da desconfiança. Sulema vacilou. Entre acreditar no enteado e no filho...

Desolado, vovô ainda ficou um tempo na companhia da madrasta e das irmãs, até que, numa ação bruta e covarde, foi perseguido e quase morto pelos trogloditas amigos de meu tio. O que poderia ser uma guerra religiosa virou uma contenda familiar. O fato de Titio Callilla ter se bandeado para a ala cristã implicava mais um voto para a bandeira de seu partido no parlamento libanês. O ambiente familiar ficou insustentável. Isso motivou vovô Anuar a, no ano de 1906, creio eu, migrar para o Brasil. Em São Paulo, ajudado por patrícios, estabeleceu-se.

Seu primeiro comércio, na região do Brás, foi numa pequena loja de miudezas e armarinhos. Lojinha de uma porta só. Cresceu, cansou e entrou no ramo da hotelaria, em sociedade com dois amigos. O primeiro hotel “de luxo” e quase que exclusivo para migrantes libaneses, tinha quatro andares e ficava na Rua Líbero Badaró, então centro nervoso da comunidade sírio-libanesa. Nos redutos dos “brimos”, incluindo os judeus israelenses, ortodoxos, ou não, Joshua, não havia Faixa de Gaza. Quisessem, ou não, conviviam pacificamente, deixando as diferenças para trás.

A tranquilidade de vovô Anuar foi quebrada com a chegada inesperada de um novo hóspede. Ninguém mais, ninguém menos que titio Callilla. No início, evitando indisposições com os sócios, vovô nada falou. Por sua vontade, dependesse dele, titio não teria ultrapassado o batente da portaria. Mas ultrapassou. De gênio contrastante e espírito falante, titio abriu o bedelho e contou aos amigos de meu avô, sem nenhuma cerimônia, fatos que nunca aconteceram. Por exemplo: que vovô havia quebrado os negócios da família na tal fábrica de refrigerantes em Beirute.

Decepcionado com as inverdades ditas pelo meio irmão e pela desconfiança dos amigos na sociedade do hotel, o velho Anuar pede as contas e segue sua vida. Volta ao comércio, desta vez num restaurante. Não demorou e os antigos sócios de vovô entraram em desespero por conta das atitudes de titio. O antes hotel familiar para migrantes libaneses estava se transformado num ponto de encontro de amores proibidos. Penso eu, imagino, no tal prédio não circulavam mosquitos: os espermatozoides não permitiam intrusos e o cheiro de sêmen os afugentavam.

O apartamento que titio ocupava, fazia algum tempo, registrava um vai e vem de homens de todas as idades e nacionalidades. Seguindo o exemplo (que mau exemplo sempre é seguido) e por ele ajudados, outros habitantes do local acharam-se no direito de ali receberem mulheres e homens. Em resumo: titio era um proxeneta de marca maior. Sua renda mensal básica não vinha do suor do seu rosto, mas do das prostitutas que gerenciava.

- Quer saber mais, Joshua?

- Sim.

Não me fiz de rogada. E desatei a contar os fatos que ouvi contar pela minha avó, por meu avô e que até hoje tenho por verdadeiros.

Bem, não tardou muito, titio foi expulso do hotel. Estava apaixonado por um moleque cigano. Com aquiescência e permissão da família do moço, juntou-se à caravana e instalou-se em Campinas. Campinas já prometia ser a segunda maior e mais desenvolvida cidade de São Paulo.

Sem grandes dificuldades para a vida nômade, viveu tranquilo num trailer com o seu menino Perun, o ciganinho. Tinha conforto. Dentro do possível, o maior. Perun, filho de Katina, era bonito e rico. Titio Callila estava vivendo nas nuvens. Por um lado, sim. Precisava, ainda, não se deixar julgado um aproveitador de meninos ingênuos. Queria trabalhar para mostrar-se útil.

Por escolha e com a ajuda de Perun entrou no mercado imobiliário. Campinas florescia a passos largos e deixou meu tio passando um pouco mais do padrão dos milionários locais. Sabia ser mercador. Tinha lábia e disposição de mercador.

Aconteceu que, seguindo a lei, nômade que é nômade, não cria limo. Perun e toda a comunidade cigana desarmaram acampamento e foram para outra cidade, desta vez no Rio Grande do Sul, mais precisamente para o sulzinho, nas cercanias do Uruguai. Longe, pois! Titio Callilla preferiu deixar a trupe seguir sozinha.

O amor de Perun fez-lhe falta? Fez! Não tanta, asseguro! Titio vivia um período dourado e não lhe faltavam namorados e mais namorados. Dentre eles, uns mais tortos e outros mais tolos. O certo é que caiu. Faliu. Cada menino que teve abocanhou sua parte. Quando ficou na lona, totalmente sozinho, descobriu estar tuberculoso. Não havendo a quem recorrer em Campinas, por estar sujo na praça, pediu ajuda à Katina, mãe de Perun. Ajudado, com presteza, tratou-se em Campos do Jordão e ficou curado.

De volta a São Paulo, chapéu na mão, procurou Anuar, meu avô e meio irmão dele. Vovô ajudou, mas, por mágoa ou por bem conhecer-lhe a má índole, não quis manter nenhum vínculo ou proximidade. Ajudou como se estivesse ajudando a qualquer um que lhe pedisse auxílio. Foi essa a trajetória de titio Callila. Resumida, mas é esta a história dele.

- E sua história, Joshua? Qual é? Tem nome hebraico e cabeça chata. Quem é você?

- Sou paraibano, Sumaia. Sei que meu nome, no português, corresponde a Josué. Sou órfão e fui criado por uma família pernambucana. Gente muito boa! Só saí da convivência dela quando conheci o Callilla.

- Entendi.

- Sumaia, gostaria de ficar consigo e com Dona Fayma até que possa resolver o rumo a tomar. Posso?

- Claro, Joshua! Claro Josué!

Enquanto Joshua foi buscar seus panos, mais que rapidamente tratei de arrumar o quarto que ocuparia. Pedi para que trouxesse os alimentos perecíveis, as fôrmas de doces sírios e alguma outra coisa ou coisas que o fizessem lembrar titio. Achei que ele deveria dar continuidade na fabricação caseira dos doces e melados de aletria, amendoim e sêmola. Manter-se ocupado, sempre, é uma das boas saídas para amainar as lembranças dos mortos. Ou desaparecidos!

Missão cumprida! Joshua já não apresentava a cara de tédio que as pessoas estampam depois da passagem dos entes queridos. Ficou sereno. No cair da noite, enquanto mamãe fazia suas orações, Joshua me entregou uma caixinha de marchetaria, linda, diga-se, com trava e cadeado dourados. Dentro dela, em perfeito estado de conservação, estavam a miniatura do Corão de capa dourada, uma bela cruz cravejada de brilhantes e um enorme anel chapeado, de estranhíssimo desenho e que mais parecia uma arma. Um tijolo, diria.

- Sumaia, por direito, estes objetos pertencem ao seu avô. Quanto antes, agora, se possível, preciso entregá-los. Se o Callilla os deixou por tanto tempo guardados, se não os vendeu no período das vacas magras, outra razão não existe senão a de devolvê-los ao legítimo dono.

- Deixe-me que faça isto. Vovô Anuar, talvez, nunca se sabe, não se sinta confortável diante de você. Vou lá agora.

Vovô jantava.

Pacientemente esperei que jantasse, andasse e arrotasse. Seu ritual digestivo era sempre o mesmo: vinte voltas e vinte arrotos debaixo do caramanchão da videira. Somente após a oração de agradecimento da refeição é que pude tomar chegada. Imaginei que vovô ficaria acometido por algum tipo de emoção ao ver aqueles objetos do passado. Qual nada! Segurou o Corão, apertou-o contra o peito, falou uns halabidalahs e devolveu-me a caixa, dizendo: - “Entregue ao menino. Ele precisará disso! Diga-lhe que mande derreter o ouro do anel e a pedra aparecerá. Não preciso de diamantes. Menos ainda de cruzes!”

Assim foi feito. Assim estava escrito!


Nota da autora – No processo eleitoral do Líbano, pelo que consta, os votantes, incluindo os ateus, precisam ter filiação nas correntes religiosas existentes. É confusa esta vinculação político-religiosa. Há muito mais, mais que muito, para entender as relações humanas do Oriente Médio. Os conflitos parecem eternos. Não quero crer que, no Brasil, as coisas se encaminhem para tal. Seria um desastre!

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*Publicado originalmente no site Lima Coelho.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA

Profª. Inês Lacerda Araújo


Os filósofos antigos, tanto Platão como Aristóteles, consideram inquestionável que o ser humano possui uma essência que o distingue dos demais seres. Para Platão, a alma imortal e divina habita o corpo perecível. A alma racional guia as outras duas almas, a da coragem e a alma dos apetites. Sem a alma racional, não passaríamos de animais.

A alma inteligível “se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do mesmo modo identidade”, escreve Platão no Fédon. A mais elevada capacidade da alma é contemplar o Belo e o Bem em si mesmos, assim alcançar a verdadeira virtude pelo contato com a verdade. As Verdades Eternas foram contempladas pela alma, mas nem todas as almas se recordam com a mesma facilidade das ideias puras e perfeitas. É preciso reflexão filosófica para ascender até elas.

O corpo, ao contrário, é mortal, tem formas mutáveis, não tem inteligência, e se decompõe. Quando a alma se separa do corpo com a morte, ela migra para o lugar de onde veio e se liberta do corpo que “constituía para a alma uma espécie de prisão” . O filósofo, aquele que ama a verdade e a sabedoria, é aquele que tem a missão de ensinar a libertar-se do corpo e livrar-se da opinião, variável e instável, e ater-se às ideias que são as essências imutáveis de todas as coisas.

Para Aristóteles a essência que distingue e individualiza os homens é sua racionalidade. Todo ser é individual, é uma substância, algo que permanece mesmo com as mudanças. Em toda substância, há matéria e forma, potência e ato, diz Aristóteles.

Pela forma os seres distinguem uns dos outros; eles subsistem ou existem em uma matéria (o corpo humano, a madeira, o ferro, o barro); há um produtor da forma, que age na matéria: é sua causa eficiente; todo ser se destina a uma finalidade, sua causa final é o bem, sua plena realização.

A definição significa a essência de uma coisa. Por exemplo: “Homem é animal racional”. Suas propriedades variam: "São elas: Essência, Quantidade, Qualidade, Relação, Lugar, Tempo, Posição, Estado, Ação, Paixão” diz Aristóteles em Metafísica. Por exemplo, algum homem com sua essência de ser individual, que tem uma aspecto, um peso, está em nossa frente, neste momento, parado, em certa atitude.

***

Para a filosofia contemporânea a essência, o que é comum a todos os homens é sua existência, finita, particular, no tempo e no espaço, a vida é de cada um, pertence apenas àquela pessoa, há uma autodeterminação e liberdade de ser e de agir, de decidir, de optar, de valorar, inclusive de criar valores.

São análises muito diferentes das concepções antigas.

O laço que une os homens em uma identidade parece ser na atualidade a dignidade da pessoa humana, ainda assim, difícilmente há acordo quanto ao que seja a dignidade, a integridade da espécie e o valor da vida. De modo que essa característica não é universalmente aceita, não é nossa essência. As religiões, culturas, geografias, modos de viver e de pensar, são específicos.

O que leva à questão:
Todos existem sim, mas existem sob o mesmo padrão, haveria uma espécie de "teto" comum e universal, atemporal?

Desde que filósofos introduziram dois fatores interligados, a temporalidade e a historicidade, não há mais régua capaz de medir e padronizar uma essência humana.

Schopenhauer assim se expressa:
A vida humana em seu conjunto revela as propriedades de uma tragédia...uma série de esperanças mal-sucedidas, tentativas fracassadas e enganos conhecidos tardiamente. Reconhecer, observando sua vida, que todo homem está in the wrong pode ser sua salvação.

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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

MAQUIAVEL: O DIREITO E A FORÇA

Profª. Luísa Lessa*


Folha de rosto da edição de 1580,
do Príncipe de Maquiavel
Vive-se um período de incertezas, conturbado por escândalos políticos. E em meio aos fatos veiculados, sente-se temor pelo que possa acontecer ao Brasil. E nesse mar de incertezas, especialmente no que tange ao poder dos homens sobre outros, um caminho é ler “O Príncipe”, onde Maquiavel fornece explicações para muitas indagações atuais.

A primeira indagação: o que é governar? “O Príncipe” responde: Governar é optar. E esse ato de escolha necessariamente favorece alguns e prejudica outros. Todo segredo da arte política consiste nisso: inventar um mecanismo de decisão que gere mais favorecidos do que prejudicados. Esta constatação remete a outra: política é conflito, luta, antagonismos, enfrentamentos. Numa palavra, política é guerra, violência. Pode até ser pacifista, mas não pacífica. Isto é, pode ter a paz como objetivo, mas não como meio.

Maquiavel ver a política como uma guerra, não porque as pessoas vivem se matando umas às outras, mas porque vivem num constante enfrentamento de interesses. Esses interesses são agrupados por partidos. Os partidos têm “militantes”. A guerra tem ‘militares’. Nos dois casos, a luta é comandada por uma “milícia”, isto é, por combatentes. Uma vez que a política se rege pela lógica da guerra, tem em vista destruir os interesses do outro e dominá-lo.

Em face do que se disse, até então, mais uma pergunta: O que é política? A política é uma singular relação humana na qual uma parcela de pessoas exerce o poder sobre e contra outra parcela. Logo, poder político é violência e opressão, sempre. Vêm-se fatos violentos e opressores todos os dias. Não há como fugir deles no atual sistema, quando uns oprimem outros.

O que determina o poder de um sobre outros, a força de uns sobre outros? Novamente ‘O Príncipe” responde: o que determina o poder que um indivíduo exerce sobre o outro, o poder que um partido exerce sobre a sociedade, o poder que o Estado exerce sobre a coletividade, é a força relativa de cada um. O Estado é mais violento do que o indivíduo, porque reivindica o monopólio da força legítima. “Legítima”, eis o problema do “direito” de oprimir. A violência praticada por um indivíduo sobre outro é punida pelo Estado em base ao “direito”.

Onde se funda o direito do Estado? Unicamente no fato de monopolizar a força. O que limita esse direito? A força de fato dos indivíduos. Do mesmo modo, os direitos dos cidadãos são determinados por suas próprias forças e limitados pela força do Estado. Isso significa que o poder do Estado é absoluto de direito, mas não de fato, pois é limitado pela força dos indivíduos. Igualmente, o poder político é opressor, mas a opressão é finita.

Maquiavel traduz essa luta por meio de uma metáfora. Segundo ele, “existem dois gêneros de combates: um com as leis e outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo dos animais” (O Príncipe, cap. XVIII). As leis, isto é, o “direito”, se fundamenta na força. O homem se assegura no animal. O racional é sustentado pelo irracional.

Uma vez que é imprescindível o emprego da força, isto é, da natureza animal, Maquiavel sugere “escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que fizerem simplesmente a parte do leão não serão bem-sucedidos” (O Príncipe, cap. XVIII). A força não é bruta. A verdadeira força é aquela que vem somada à astúcia. O poder do Estado não está no número de militares ou de armas. Está nos ardis que emprega para universalizar as escolhas parciais que toma. A verdadeira força está na raposa, não no leão.

Entenda, pois, o leitor, que a metáfora do leão e da raposa quer dizer o seguinte: Tendo, portanto necessidade de proceder como animal, deve um príncipe adotar a índole ao mesmo tempo do leão e da raposa; porque o leão não sabe fugir das armadilhas e a raposa não sabe defender-se dos lobos. Assim, cumpre ser raposa para conhecer as armadilhas e leão para usar a força. Logo, um príncipe deve usar mais a cabeça do que a força, ou seja tem que usar mais a esperteza da raposa do que a força do leão.

Ainda, para Maquiavel, a violência política é dissimulada. A raposa disfarça, aparenta estar morta. Soldados e tanques escancaram a opressão. Revelam a face odiosa da violência e alimenta a revolta. A ostensiva demonstração de força acaba por mostrar-se fraqueza. O leão fica preso nos laços. É preciso a raposa para soltá-los. É necessário habilidade para dissimular a violência da força bruta.

***

* Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestra em Letras pela Universidade Federal Fluminense; Membro da Academia Brasileira de Filologia; Membro da Academia Acreana de Letras.

** Publicado originalmente no Site Gosto de Ler.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

RIO BRANCO – UMA DOCE CIDADE

José Augusto de Castro e Costa*
Pensei que a possibilidade
De rever minha cidade
Já estivesse lá pras bandas do nunca mais!!!

Seria demais!
Para ser franco,
Jamais rever Rio Branco
Seria mais um castigo a mais.

A sina revogou, no entanto:
Rodou à acreana
Pisou no tamanco...
E cá estou eu,
Trazendo comigo um montão de saudade!
Uma tremenda saudade
Que Rio Branco jamais havia visto,
Ou mesmo previsto
Que nos reveríamos de verdade.

Onde estão as catraias?
As cansadas catraias
A levar em seu bojo
Um cravo ligado nas saias
Das moças da terra...
Belezas das praias,
Das águas geladas.

Da doce Judia,
Ressacas curadas
Com encanto e alegria
E muita magia...
E bote magia!

E onde as serestas...
E onde as festas
E seus doces finais?
Um ortopedista a cantar
Um coelho galã a dançar...
Isto já não se vê mais!

Nem só viola ia à festa,
Mas pra fazer uma seresta
Na casa de algum fulano,
Ia Zé Paulo e o banjo, Crescencio no trombone,
O Deca no saxofone,
Ia até eu no piano!!!

Mas hoje a cidade é outra, está linda !
De cidade até tem mais pinta,
Não se anda mais a esmo.
Teu romantismo acabou
Minha querida Rio Branco.
A tua roupagem mudou,
Mas teu espírito é o mesmo.

***

*José Augusto de Castro e Costa reside em Brasília, e compôs esses versos impulsionado pelo seu primeiro reencontro, depois de mais de quatro décadas, com a cidade de Rio Branco, sua terra natal.