quinta-feira, 17 de junho de 2010

O SER HUMANO É AQUILO QUE FALA

Profª. Luísa Lessa**
É fato que a civilização tem dado extraordinária importância à escrita e, muitas vezes, quando nos referimos à linguagem, só pensamos no seu aspecto de representação formal. Esquecemo-nos, maior parte das vezes, que a linguagem é muito mais, é tradução do pensamento, da vida, das classes sociais, no meio físico, de homens e mulheres. Então, é fundamental não perder de vista que ao lado da forma escrita de uma língua, lhe há o lado mais básico, vivo, real, que é a manifestação oral, porque o ser humano é apenas metade de si mesmo; a outra metade é a sua expressão oral.

A língua, na concepção da ciência Sociolingüística, é intrinsecamente heterogênea, múltipla, variável, mutante, instável e sempre em desconstrução e reconstrução. Ao contrário de um produto pronto e acabado, a língua é um processo, um fazer-se permanente e nunca concluído. É uma atividade social, um trabalho coletivo, produzido por todos os seus falantes, cada vez que eles se interagem por meio da fala ou da escrita.

Por isso, nenhuma língua permanece uniforme em todo o seu domínio, ainda num só local apresenta um sem-número de diferenciações de maior ou menor amplitude. Existem tantas variedades lingüísticas quantos grupos sociais que compõem uma comunidade de fala. Essa variação pode acontecer de formas diferentes, até mesmo dentro de um único grupo social, como se tem verificado, aqui no Acre, ao longo dos anos. Há palavras e expressões próprias da cada lugar. As regiões do Acre, Juruá e Purus possuem traços peculiares.

Dessa forma, a variedade de uma língua que um indivíduo usa é determinada por quem ele é. Todo falante aprendeu, tanto a sua língua materna como uma particular variedade da língua de sua comunidade lingüística e essa variedade pode ser diferente em algum ou em todos os níveis de outras variedades da mesma língua, aprendidas por outro falante dessa mesma língua. Tal variedade, identificada segundo essa dimensão, chama-se dialeto.

Os estudos da Dialectologia Brasileira estão a apontar muitas variedades lingüísticas dentro do grande território nacional. Do norte ao sul se fazem presentes o falar amazônico, o nordestino, o baiano, o mineiro, o fluminense, o sulista entre outros que se subdividem, formando uma vasta diversidade.

E dentro dessa imensa diversidade, há duas línguas no Brasil: pois há duas línguas no país: uma que se escreve (e que recebe o nome de “português”); e outra que se fala (e que é tão desprezada que nem tem nome). E é esta última que é a língua materna dos brasileiros; a outra (“o português”) tem de ser aprendida na escola, e a maior parte da população nunca chega a dominá-la adequadamente, isso porque a educação escolar não é uma prioridade nacional e há, em pleno século XXI, milhões de analfabetos.

Por todas as nuances ou matizes que possui uma língua, não há como reproduzi-la, fielmente, na riqueza de sua oralidade. O que acontece é que existem graus de diferença nesta distância entre as duas formas da língua: a escrita e a falada. As diferenças entre essas formas se acentuam dentro de um continuum tipológico, que vai do nível mais informal ao mais formal, passando por graus intermediários. A informalidade consiste em apenas uma das possibilidades de realização, não só da língua falada, como também da língua escrita.

Assim sendo, a linguagem é um fator de discriminação social, pois as diversidades lingüísticas provocam preconceitos dos falantes de uma variante mais elitizada aos falantes de uma variante menos favorecida, ocasionando dificuldades para estes últimos. E, numa sociedade dividida em classes, pode-se identificar a existência de duas variedades lingüísticas, dois “códigos”, determinados pela forma social: o “código elaborado” e o “código restrito”. Estes diferentes códigos resultam da diferença entre os processos de socialização que ocorrem entre as classes sociais.

E, dessa forma, como a língua espelha a cultura e expõe as formas de pensamento, o código lingüístico não apenas reflete a estrutura de relações sociais, mas também a regula. Assim, o ser humano aprende a ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em sua fala, segundo a sua realidade social e cultural. E, desse modo, se a consciência é constituída a partir dos discursos assimilados por cada membro de um grupo social e se o ser humano é limitado por relações sociais, resulta não haver uma individualidade de espírito nem uma individualidade discursiva absoluta. Tudo reflete a pessoa integrada ao mundo físico-social em que vive.

Diz-se, finalmente, que o falante não é livre para dizer aquilo que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso, a ocupar seu lugar na escala social, expressando tudo aquilo que é, a partir do lugar que ocupa na escala social. Assim, a sua fala revela, além do seu pensamento, o seu nível cultural, a sua posição social, a sua capacidade de adaptação a certas situações, sua timidez, enfim, a sua forma de ser e ver o mundo.

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**LUÍSA GALVÃO LESSA é Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestra em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Ocupa a cadeira de número 34 na Academia Acreana de Letras. É acreana de Tarauacá.

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