Albert Camus
(A Peste aproximou-se, docemente, de Diogo.
Somente o corpo de Vitória os separa)
A PESTE
Então? Renunciais? (Diogo, com desespero, olha o corpo de Vitória.). Não tens força. Teus olhos estão perdidos. Quanto a mim, tenho o olhar fixo do poder.
DIOGO (depois de um silêncio)
Deixa-a viver e mata-me.
A PESTE
Como?
DIOGO
Proponho-te uma troca.
A PESTE
Que troca?
DIOGO
Quero morrer em seu lugar.
A PESTE
Eis uma dessas idéias que sempre temos, quando nos sentimos cansados. Vamos, não é agradável morrer e o pior já está feito para ela. Fiquemos nisso!
DIOGO
É uma idéia que se tem, quando se é o mais forte!
A PESTE
Olha-me: eu sou a própria força!
DIOGO
Despe teu uniforme.
A PESTE
Estás louco!
DIOGO
Despe-te! Quando os homens da força despem seu uniforme, não são nada belos a qualquer olhar!
A PESTE
Talvez. Mas sua força está em terem inventado o uniforme!
DIOGO
A minha está em recusá-lo. Mantenho minha proposta.
A PESTE
Reflete, ao menos. A vida tem coisas boas.
DIOGO
Minha vida não é nada. O que conta são as razões de minha vida. Não sou um cão.
A PESTE
Então o primeiro cigarro não tem importância alguma? O odor da poeira, ao meio-dia, sobre os aterros, as chuvas da noite, a mulher ainda desconhecida, o último copo de vinho... então tudo isso não é nada?
DIOGO
É alguma coisa. Mas esta viverá melhor do que eu!
A PESTE
Não, se renunciares a te ocupar dos outros.
DIOGO
No caminho em que estou, nunca podemos parar, mesmo que o desejemos. Não te pouparei!
A PESTE (mudando de tom)
Escuta. Se me ofereces tua vida, em troca da desta mulher, sou obrigado a aceitar - e ela viverá. Mas eu te proponho um outro ajuste. Dou-te a vida desta mulher e deixarei que ambos fujam, contanto que eu fique autorizado a cuidar desta cidade.
DIOGO
Não. Conheço meus poderes.
A PESTE
Neste caso, serei franco contigo. Preciso ser o senhor de tudo - ou, então, não o serei de nada. Se tu me escapares, a cidade me escapará. É a regra. Uma velha regra, que não sei de onde vem.
DIOGO
Mas eu sei! Vem do mais fundo das idades, é maior do que tu, mais alta do que teus patíbulos: é a regra da natureza. Nós vencemos.
A PESTE
Ainda não! Tenho aí este corpo - meu refém. E o refém é o meu último triunfo. Olha-a. Se alguma mulher tem o rosto da vida, é esta aqui. Merece viver e queres fazê-la viver. Quanto a mim, sou constrangido a entregá-la a ti. Mas pode ser em troca de tua própria vida, ou em troca da liberdade desta cidade. Escolhe.
(p. 132-1135)
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Não deixe de ler:
CAMUS, Albert. Estado de Sítio / O Estrangeriro. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
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