quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Série A POESIA ACREANA > OCÉLIO DE MEDEIROS

“Passei este domingo de chuva refrigerado na poesia do Acre em três tempos, tão variada de notas e cores, e de tão vivo testemunho humano e social”.

Carlos Drummond de Andrade
sobre o livro "Jamaxi: a poesia do Acre"


Océlio de Medeiros (1917-2008) sintetiza uma das mentes mais brilhantes e irreverentes de sua época. Acreano de Xapuri, viveu em Belém, onde concluiu os estudos primários e secundários, ingressou na Faculdade de Direito, e iniciou a vida no magistério e no jornalismo (“Folha do Norte” e “O Estado do Pará”), além de atuar na militância estudantil contra a ditadura do Estado Novo, que o obrigou a transferir-se para o Rio de Janeiro. Aí continuou a exercer o jornalismo e aperfeiçoou seus conhecimentos pedagógicos com o grande expoente da Escola Nova, Lourenço Filho. Em 1939, ao retornar ao Acre, onde permanece por dois anos, dirige o Departamento de Educação e Cultura, preside o Conselho Técnico de Educação, leciona aulas de Pedagogia e dirige o jornal oficial “O Acre”. Em 1942, retorna ao Rio de Janeiro, devido “os reflexos negativos das perseguições locais que sofreu em virtude de sua vida de solteiro adolescente no Acre”. A partir de então, começa a projetar-se nos setores do Serviço Público, da literatura especializada administrativa e da política partidária.

Como técnico de administração do DASP chegou a exercer várias funções de assessoria, tanto no Poder Legislativo como no Executivo. Transferido do DASP para o Ministério da Fazenda, foi designado para servir na Delegacia do Tesouro Brasileiro no Exterior em New York (1950-1955). Aí fez diversos cursos e obteve o título de mestre pela The New York University. De volta ao Brasil, em 1955, pouco tempo depois, candidata-se a deputado federal pelo Estado do Pará, exercendo o cargo ativamente de 1959 a 1963, quando teve o mandato cassado pelo golpe militar de 1964. No auge das perseguições militares, em 1972, retorna ao Acre, onde permanece por um período de 10 anos, e, como advogado, assume a defesa dos posseiros e seringueiros espoliados em todo o Acre pelos fazendeiros “paulistas”. Ameaçado de morte retorna ao Rio de Janeiro.

No campo literário, a obra de Océlio de Medeiros é vasta. Escreveu diversos livros no setor de literatura especializada, em decorrência do seu cargo de técnico de administração, entre os quais: “Territórios Federais”, “Administração Territorial”, “O Governo e a Administração dos Territórios Federais”, “Reorganização Municipal”, “O Governo Municipal no Brasil”, etc., além de escrever vários opúsculos e de colaborar em diversas revistas técnicas, anais e em suplementos de diversos jornais.

Como literato e poeta sua presença também foi marcante, destacando-se, sobretudo pelo “Jamaxi: a poesia do Acre”, lançado em 1979. Porém, já havia iniciado seu labor literário com a histórica obra “A Represa” (1942), o primeiro romance acreano escrito por um acreano. Na Coleção Cantos Acres, reuniu seus trabalhos dispersos em 7 volumes, intitulados: “Cantos Primitivos”, “Cantos Guerrilheiros”, “O Canto Brabo”, “Cantos Épicos a Xapuri e Odes Idílicas a Rio Branco”, “Cantos e Ecos”, “Diáspora no Espaço Interior” e “Só Brasília: Superquadras, Poemas Psicodélicos e Poemas Verdes”. Além disso, escreveu “Após os Balaços, baladas para Chico Mendes” e “Desde quando o verde era mais verde” (1990). Recentemente, organizada por seus familiares e amigos, foi relançada um conjunto de sua obra enfeixada em 10 livros, que se inicia com “Só Sonetos” e se encerra com “Bolpebra, opereta bagunçada e mirações acres”.

Dentre as obras poéticas, merece uma atenção especial o livro “Jamaxi: a poesia do Acre”, que, à época, recolhia toda a produção poética do autor, ainda inédita, com trabalhos escritos a partir de 1937 até 1974. Em “Jamaxi”, percebe-se como o poeta passa do sofrido mundo interior para a poesia social. O professor, o militante, o político dão vozes ao poeta, que ergue seu grito pelo homem, pela terra e pela liberdade.

A obra, como faz questão de ressaltar o poeta, não é poesia regional. Compreende três fases da vida do Autor – hoje, ontem e anteontem: “É muito mais que regionalismo, apesar das suas manchas paisagistas e das provincianas manifestações naturalistas. É sobretudo, em três tempos, a poesia do agro, do azedo, do acérrimo, na expressão de sentimentos, que nas províncias são tão universais quanto nas metrópoles. Daí porque, ao tomar o Acre não só no sentido de uma fronteira geográfica, mas também, no de sua própria acepção etimológica, de adjetivo substantivado, estes inéditos, aqui enfeixados, expressam a vivência do Autor nas suas intermitências poéticas, nas fases mais críticas em que mais versejou”.

Para Océlio de Medeiros, na explicação dos três tempos de sua poesia, o “Hoje” é a piedosa visão da conflitante paisagem humana, que a tudo continua a esmagar, nesse aceleramento desenvolvimentista, externamente financiado, que visa menos ao homem comum do que à emergência de uma sociedade oprimida como potência intermediária neste hemisfério, onde ressurge a era das ditaduras messiânicas. “Ontem” é a evocação da fase intermédia entre o presente e o passado, quando as ânsias de liberdade de expressão tomaram vários caminhos. “Anteontem” é a saudosa visão do mundo morto, quando o vale era mais verde, a vida era mais cor-de-rosa e começaram a morrer de tísica os últimos românticos.

Océlio de Medeiros, a meu ver, escreveu páginas clássicas para as letras acreanas que muito engrandecem a literatura brasileira de modo geral, como demonstra o poema “Jamaxi: a poesia da miração do Acre”, em que o lirismo, em forças telúricas e sociais, desponta fartamente como em águas de repiquete, a revelar a força e os encantos do poeta. Poeta, aliás, cuja obra precisa ser sempre revisitada, pela relevância do pensamento, ainda precisa ser estudada, divulgada e dissecada. Por enquanto, a este que foi o mais combatido, combativo e irreverente dos poetas acreanos, presto minha eterna reverência.

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"E se a poesia é antes de tudo uma libertação espiritual na realidade que estimula a fuga, cumpre aos poetas reconhecer nessa dramaticidade toda a sua crueza, e não fantasiá-la."

Océlio de Medeiros

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JAMAXI: A POESIA DA MIRAÇÃO DO ACRE
Océlio de Medeiros

Fui além do Xapuri
buscar poemas dispersos
e trago em meu jamaxi
flores, frutos, alguns versos...

Jamaxi ou jamaxim
– escreva como lhe apraz –
o que importa para mim
é o que do Acre dentro traz.

Jamaxi , cesto ou paneiro,
de cipó trançado e feito,
é a carga que o seringueiro
traz nas costas presa ao peito.

Ao seu peso recurvado,
nele transporta o que quer,
vem do centro carregado,
volta levando o que der.

O meu jamaxi encerra
um passado que é presente,
angústias da minha terra,
misérias da minha gente.

Borracha, couro ou castanha,
decepções, desenganos
e as flores que a gente apanha
na vida ao passar dos anos.

As rimas soltas ao chão
vim colhendo com carinho:
são as trovas que o coração
desfolhou no meu caminho...

Seringueiro, traz aqui
do mundo que me extasia,
dentro deste jamaxi
o meu fardo de poesia.

Poesia é aquela maneira
de ver tudo diferente:
é o leite da seringueira,
é o jorro de uma nascente...

Pode ser subjetiva
ou surrealista paisagem,
mais concreta e objetiva,
ou mesmo metalinguagem.

Não é a forma que a encerra,
mas o que brota da mente:
imagens da minha terra,
paisagens da minha gente.

De qualquer sentido é a voz
ecoando na alma a esmo:
é o que está dentro de nós
e não no ser em si mesmo.

No brejo uma feia jia
sob um lírio coaxa amor:
onde é que está a poesia
na rã ou na bela flor?

Não és só sentido ou instinto,
não és somente animal,
sentes também o que eu sinto,
distingues o bem do mal.

A fonética ainda engasta
no verso a palavra rara,
mas se a rima se desgasta
no concreto o poeta pára...

Não se encerra a poesia
na forma condicionada,
conteúdo que extasia
– jamais se contém em nada!

Sem liberdade que o arrima
o poeta se deforma:
camisa de força é rima
e prisão perpétua é forma.

Estrangula-se na mente
a idéia não captada:
não encontra continente
na palavra limitada.

Ritmo é o som da essência
que só sente o coração,
são palavras com cadência
ou silêncios de emoção.

Acre tem sentido vário,
é agro, é azedo, é irritante.
Diz ainda o dicionário:
é forte, é mordaz, é picante...

Território e agora Estado,
mas seja o que é ou que for,
acre é o mundo amargurado,
vida azeda, espinho em flor...

Mas Acre é também poesia,
é a luz solar desmaiando
é a noite apagando o dia
é o céu de estrelas brilhando.

É o povo que em versos cantos
e a terra que não maldigo,
tem feitiço, tem encanto,
é o meu reencontro comigo.

E daqui para adiante,
esvazio meu jamaxi,
poesia do Acre distante
nos poemas que escrevi.


CANTOS GUERRILHEIROS
Océlio de Medeiros

São cantos brabos, poemas livres, odes
a tudo o que senti na infância acreana,
até o primeiro amor da adolescência,
que líricos sonetos me inspirou...
A terra foi o meu ventre e os rios, meus seios,
comi barro enlameado, águas suguei
e enchi meu coração de amor e ódio...
A terra é a minha carne e os rios o meu sangue,
cipós se esgalham fora do meu crânio...
Lianas, meus cabelos, crescem soltas
sobre as minhas encostas e o meu tronco...
Os galhos, – são os meus braços, – e as raízes,
– meus pés e minhas pernas, – me sustentam,
firmando-me no solo que me nutre...
Me alimento de lama, lodo, folhas
e há tijuco em minha alma, que é o limo
dos mais fundos peraus, junto ao barranco!
As canaranas crescem no meu peito
e musgos amaciam meu coração...
No fundo dos meus olhos há paisagens
e imagens primitivas da floresta...
É uma fonte cantando sob frondes...
É um rio de águas barrentas serpenteando,
na selva a abrir caminho em meio às árvores!...
É a seca, é a alagação, é o repiquete!...
São balseiros descendo a corretenza,
ou várzeas cultivadas nas vazantes...
No fundo dos ouvidos ainda ecoam
os cânticos das raças massacradas;
as tabas mortas de índios dizimados;
os disparos dos papos-amarelos
e gemidos dos que fugiam, com saldos,
dos seringais sem Deus, sem Lei, sem Pátria,
mas que foram fortins em pé de guerra;
os Senhores da Prata combatendo
e osCoronéis do Estanho derrotando...
A lama que comi vomito em versos:
se a gente pensa como a gente vive,
eu que o Acre sofri, só penso este Acre...
Os meus versos são livres como o vento
nos primeiros poemas primitivos!
E cada canto é a bárbara expressão
dos ritmos que ouvi desde o começo:
um canto do Acre ao longe, um poema BRABO!
Do peito que rasguei saem os meus ritmos!
São os gemidos da terra em suas mensagens,
e os vômitos do povo em suas angústias:
– um Canto do Noroeste, um CANTO ACREANO,
num canto da Fronteira, um CANTO LIVRE!


CANTO DE NÚPCIAS
Océlio de Medeiros

Fui buscar nas constelações as mais lindas estrelas
para o meu manto de mago.
Fui buscar nas felpudas nuvens os macios chumaços
para fazer teu colchão.
Fui buscar no firmamento os retalhos mais azuis
para fazer teu lençol.
Fui ao fundo do mar buscar os mais suaves musgos
para o teu travesseiro.
Trouxe à superfície calma do oceano as ondas
para balançar teu sono.
Retirei da garganta dos uirapurus o canto
para eu te fazer dormir.
É da seda das brumas o teu véu de noiva, que eu
costurei com finos fio do luar desfeito.
Era da alva corola das orquídeas raras a tua grinalda
de pétalas que eu tirei sorrindo.
Por fim pedi à noite um pouco do seu escuro
para envolver a alcova de sutil penumbra.
Pedi ao tempo que parasse nesse instante
e o tempo parou,
parou,
parou,
até que amanheceu.

* * *

Eu sem meu manto de mago,
E tu despida de brumas,
Nós dois como crianças num colchão de nuvens,
num lençol de algas, nossas cabeças sonhando sobre
musgos.
E ambos despertamos para a vida!

Rio Branco, 1971


O QUE RESTOU
Océlio de Medeiros

O nosso velho amor!... Que está restando agora
de mim, de ti? De mim, a bronzea enrijecida
apolínea figura que se foi na aurora
do teu ventre exraizada em nossa despedida?

O nosso velho amor!... Que está restando agora
de ti, de mim? De ti, a Vênus esculpida
em curvas de alabastro que eras tu outrora
e cuja carne é agora flor emurchecida?

O que restou de mim, de ti, – quando é sumida
a libido do corpo à arrefecente idade –
restou em ti e em mim, é o que restou da vida...

São cinzas, nada mais, do amor da mocidade,
e na nossa quaresma onde o passado é a ermida
o coração só tange os dobres da saudade...

Rio Branco, 1974


ACRE: VOLTA À VIDA SIMPLES
Océlio de Medeiros

O meu caleidoscópio é o pensamento,
que imagens do Acre forma em minha mente:
é o rio que dobra um porto lamacento...
é o barranco... é a floresta... é a minha gente...

Mas sinto mais sua falta no momento
em que a gente por algo se ressente:
por qualquer coisa brigo, me apoquento,
e um nada faz ferver meu sangue quente!...

Meu corpo é a Terra do Acre enrubescida
na luta dos meus pais e antepassados...
é o povo... é a sua borracha... é a sua lida...

Por isto do Acre sinto impregnados
meu sangue, minha carne, minha vida
e o tempo em que fui gente em dias passados...


OLHANDO O RIO
Océlio de Medeiros

No alpendre, em minha casa, à tarde quente,
à sombra da mangueira que deleita,
costumo olhar o rio descendo em frente
e que lembra uma estrada liquefeita...

O rio suave escorre o suor plangente
do fim crepuscular, que a tarde enfeita:
suas águas passam, como passa a gente
na vida, que é ilusão em rio desfeita.

No leito do destino se desfia
cada vida, descendo em sua corrida
para a morte, que é o fim da vã porfia...

Águas rolando são a nossa vida,
que é como um rio correndo noite e dia,
e nunca volta ao ponto de partida...


O POVO ACREANO
Océlio de Medeiros

Sarapatel de tipos diferentes,
de raças e de sangues,
panelada da terra,
buchada ou maniçoba,
procede o povo do Acre da violência
da conquista da selva,
do domínio dos rios,
da ambição, da aventura.
Dos quatro cantos vieram várias levas
dos homens sem mulheres,
nortistas, nordestinos,
heróis do Paraguai,
foragidos do horror da Cabanagem,
da guerra de Canudos
e da maior das secas,
desde o devassamento.
Dos quatro cantos vieram logo atrás
dos homens da borracha
as caboclas e as brancas
para a rede das índias.
Os brabos e as mulheres que o seguiram,
as Donas do Ceará
e as Sinhás do Pará
abriram seringais.
Depois, quando a borracha foi pneu,
“polacas” foram polens,
sementes e matrizes,
que criaram raízes.
Foi assim que nasceu da descendência
da gente aventureira
o povo da fronteira
do noroeste acreano.
Nasceu mamando leite de seringa
e comendo borracha,
guerreando a Bolívia
e quebrando castanha.

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REFERÊNCIAS:
MEDEIROS, Océlio de. Só Sonetos – feixe I. Brasília: MacPaper Gráfica, 2005.
--------------------------------. Jamaxi: A Poesia do Acre. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 1979.
--------------------------------. Cantos Guerrilheiros. Brasília, 1974.
---------------------------------. Após os balaços, baladas para Chico Mendes. Brasília: ME PLANALTO, Prosa e Poesia, Editora.


Um comentário:

val souza disse...

simplismente perfeitooooo