Eu sou seringueiro
no rio Juruá,
Do meu Ceará
vivo distante!
Sempre a trabalhar
p’ra arranjar um saldo
Que tempere o caldo
D’um escravo errante...
Todos os trabalhos
duros, desta terra,
Em constante guerra
são por mim vencidos...
Cá nas solidões
cheias de maldades,
Tenho mil saudades,
dos meus pais queridos!
Mas, confio em Deus
nosso Pai bondoso
Que serei ditoso...
– Bem ditoso ainda! –
De voltar com saldo
ao torrão amado
E inda ser casado
C’o u’a moça linda...
Tal sonho dourado
é o que eu aturo,
Penso no futuro
se é como o presente...
Devo mais d’um conto,
meu patrão não presta...
Já nos franze a testa
bota-se a valente...
Que fazer? Sou preso
na cadeia imensa
Desta mata extensa
que já não tem fim...
Lá na minha terra
o caso é mudado,
E o mundo é furado...
não trancado assim!
Basta de lamentos,
confiar em Deus,
Que os penares meus
serão descontados;
Quando lá na Pátria
onde fui nascido,
Farei-me esquecido
Deste cru passado!
Este belo assunto,
esta narração,
Vai contar então
como se trabalha;
Como se fabrica
essa tal borracha
Que desfaz a taxa
de qualquer canalha...
Cá nos ermos tristes
por onde eu trabalho,
É meu agasalho
pequena choupana.
Em derredor dela,
verdes, cresce em brilho,
Vinte pés de milho,
cinco ou seis de cana.
Também tem a um lado
grande samaumeiras
Bela e sobranceira,
sobre a verde mata...
Atrás da cozinha
vê-se a fumaceira
Junto a uma touceira
de banana prata.
Em Abril ou Maio
Saio ao barracão
É grosso o pancão...
me empelho dez dias...
Quando volto ao centro
eu, e mais pessoas,
A remar canoas
com mercadorias...
Finda a viagem
muito perigosa...
Muito trabalhosa...
chego em certo porto
Onde desembarco
minha aviação...
Gemo como um cão:
“de remar estou morto!”
Mas, que importa isto?...
amanhã eu entro
Para meu longe centro...
– carga sobre a costa –
Sigo pensativo,
transpondo ladeiras
– Dessas brincadeiras
pouca gente gosta! –
Meio dia andando
para o rancho querido,
Chego bem moido...
enervado e teso!
No fim do soalho
boto a carga abaixo,
Nisto, livre me acho
do enfadonho peso...
Tiro a blusa fora,
corro o meu roçado,
Vejo prosperado
todo o meu legume
Volto para a barraca
cheio de prazer
Trato de fazer
logo fogo ao “lume”.
Vejo se tem pó,
vou fazer café;
Antes um chibé
tomo por primeiro:
Eis um alimento
muito apreciado
Pelo degredado
triste seringueiro!
Em seguida ao “moka”
fumo o meu cigarro;
E a barraca varro;
– Pois “gunverno” ali... –
Uso – por vassoura –
também – por capacho –
O pendão dum cacho
chocho de açaí...
Desembalo a carga,
vou tomar um banho;
Que calor tamanho
aqui nos flagela!
De roupa mudada
fico mais bonito...
De café repito
logo outra tigela...
Compõe-se a barraca
– de dois seringueiros –
De dois mosquiteiros
metidos nas redes!
Tosca choupaninha
muito bem coberta...
Quase sempre aberta...
não possui paredes. –
Facas com bainhas!
O rifle e espingarda
Se azeita e se guarda
zelados polidos...
Em contraste a isso
vê-se dois terçados,
Muito enferrujados
na palha metidos.
A mesa de jantar...
– de couro de veado –
Está ali pendurado,
juntinho à toalha...
Ou quando não este,
nota-se uma esteira
D’olho da palmeira,
bem trançada a palha.
Deitado ao soalho
meu machado “tumba”
Dentro dum zabumba
da paxiubeira,
Meu pequeno pote
cheio d’água fria
Mesmo ao meio dia
Sempre foi geleira...
Todos os artigos
de necessidade,
Eu, mais meu “cumpade”
Zeca Ciríaco,
Vamos transportando
pra nossa choupana
Nos confins de semana
Cada um com um saco.
Eu, na minha terra
nunca levei murro...
Mas aqui, sou burro!
– me virei em bicho!...
Pois meu jamaxi
com a sua testeira,
Dá-me a fucinheira...
só falta o rabicho!
Da barraca grande
meu leitor já sabe,
Portanto, nos cabe
seguir outra linha:
Desça dois degraus
– com muita cautela –
Vamos à panela
que está na cozinha.
Ei-la sobre a trempe;
ferve com macaco.
“Cumpade Ciríaco”
não come feijão:
Já eu, como tudo...
não reservo nada...
Pra mim, lesma assada
– faz de requeijão!
Vou lá ter vontade!...
nesta sepultura...
Como até mucura...
– só não como é cru! –
“Deixei” de ser onça...
Pra andar com “manobra”.
Só não como é cobra
mais mestre urubu!
Mas, o comprimento
deste humilde canto
Já secou meu pranto
já meu deu o riso...
Meu leitor amigo
como tu não dormes
Mais alguns informes
nos serão precisos...
Queira acompanhar-me
dez ou doze passos:
– Sem cruzar os braços –
“sem pisar no chão...”
Minha fumaceira,
Meu defumador
– Feito com rigor –
não é longe, não.
Ele é pequenino
“mas-porém” é rico,
Meu vizinho Chico
não tem um assim!
Cabra preguiçoso...
cabra sapupema
Sempre foi panema
seringueiro ruim!
Eu já lhe avisei
que tenha cuidado
Se não “enrolado”
vai ser qualquer dia...
O “cabra é toqueiro”
porém, não escapa,
Lhe enrolo na capa,
de minha bacia!
No Chico Calangro
Mais Joaquim Caçote,
Vou passar capote
quer queiram quer não.
Eles dois não “drôme”
Toda a noite é pouca...
Os passos na boca
deste meu “boião”!
Minha fumaceira
de palha jaci,
Ou ouricuri,
com caibros no chão.
Pra esbarrar o vento
se tapa em “redó”:
Tem uma porta só
e no centro o boião.
Tornos da bacia
fincados com jeito
Ao lado direito
ao alcance da mão...
Grade, prancha e cuia,
cavador, sarilhos,
Eis os “atencilhos”
da difumação.
Depois disto dito,
nós vamos à estrada,
Que já está roçada,
que entigelo e sangro.
Ela dá dez frascos,
a menor dá oito...
Desafio afoito,
Chico de Calangro!
Ele tem um “rosso”!
este meu vizinho
Pelo machadinho
Julga-se pesado!
Vou dar-lhe uma “marcha”
de bicho turuna...
Que ele se “arripuna”
para andar calado!
Só não desafio
Zeca Papagaio,
Pois começa em Maio
e não perde um dia!
Corta sete meses
pesa mil e tantos
– Tem por ele, os santos
e a Virgem Maria...
Ou então é “pauta”
com o “cabra-velho”!
Que criou chavelho
em lugar de cr’ao!
Credo! Ave Maria!
“qui cabôco” frouxo!
Para o “vei-cão cocho”!
tem sua alma boa!
Bonito é o regímen
dum bom seringueiro;
Ele e o companheiro
– marcam certo a hora –
Desprezando as redes
e o prazer do sono;
São dois cães sem dono...
Partem, vão se embora.
Sucessivamente,
tal se dá comigo:
Essa regra eu sigo
com prazer e amor!
Madrugada cedo
sou atormentado
Pelo cão danado –
do despertador!
Este “galo-disco”
das tripas de ferro,
Quando solta o berro
não quer mais parar...
Me espreguiço e benzo,
me levanto logo,
Vou fazer o fogo...
trato de almoçar...
Um café de frasco,
preto como tinta.
Cuja borra pinta
dentro da tigela
Uma catacumba,
um navio, ou barca,
Uma igreja, ou arca
mausoléu, capela...
Eu e meu amigo
caro companheiro,
Bravo seringueiro,
chamado José,
“Embocamos” tudo
– com prazer, sem luxo –
Para a “pá” do buxo
carnes e café!
Terminada a “bóia”
meu cachimbo fumo,
Cada qual, seu rumo
parte diligente;
Chega na madeira,
corta, e com cautela
Embute as tigelas
segue novamente...
Neste desempenho,
de cachimbo ao queixo,
Balde e saco deixo
onde se bifurca
Minha extensa estrada
tão cheia de dobras...
Onde sobre conras
já dancei mazurka!
Nesses labirintos
ou montanhas Russas,
Faço escaramuças
na função do corte.
Posto, que cansado,
não me sinto fraco!
Já nalgum macaco
tenho dado a morte...
Finalmente, alcanço
esse entroncamento
Que o povo – “Zé-Bento”
– cá da minha laia –
Findamos o corte,
chamamos de “feixo”,
Onde o balde deixo
mal a aurora raia.
Lá me vou de novo
pelo “labirinto”...
Já cansadas sinto
Minhas fortes pernas...
Infeliz da mãe
desse visionário
Que transpõe diário
mais de cem cavernas!
Pelas duas horas
chego na barraca,
Boto abaixo a maca
vou tomar café.
Como alguma cousa
pá forrar o peito:
Isso já tem feito
meu cumpade Zé!
Acendo o cachimbo
“e o meu leite aqueço”:
Logo no começo
defumo um sapato:
Eis nosso calçado
que aqui se gasta.
Só um par não basta
para a estrada e o mato!
E a borracha rola
sobre este cachimbo
Que vomita um nimbo
lambiscando o teto.
Petrifico o leite
da colheira diurna,
Dentro dessa furna
própria dum inseto...
E a borracha cresce
sucessivamente,
Na fumaça quente,
crosta sobre crosta:
Vai avolumando
qual balão tufado.
“Fico azucrinado”
“quando a bixa tosta”!
Passo duas horas
bem atarefado
Nesse humilde fado,
mas, apetecido!
Pois, borracha é chave
que destranca a porta
Dessa via torta
do torrão querido!
Finalmente acabo:
sobre a tábua lisa
Rebolo a camisa
do bolão de oitenta...
Ponha a marca de ferro.
(nos cobres me monto!)
Dívida dum conto?...
comigo não aguenta...
Saco a blusa fora
(tenho o corpo quente)
Assovio contente
polkas, walsas, “chotes”,
Preparando a “bóia”
penso nos vizinhos
Ambos, – coitadinhos –
estão nos meus capotes!
Me sinto contente
pelo dia ganho,
Vou tomar meu banho
pra poder jantar.
E depois que janto
deito na maqueira
Pra desta maneira
eu poder cantar:
“Sou bom seringueiro,
– mas não sou poeta! –
Minha predileta
é a seringueira...
Vivo tão distante!
Triste e degredado
Do meu berço amado
“Maria Pereira!”
Repito de novo
vivo desterrado,
Errante e isolado
nesta zona infinda...
Mas espero em Deus
que inda voltarei,
E me casarei
com u’a moça linda!
*
* *
Agora leitor
– da classe letrada –
Tu leste a “embolada”
do meu cantador?...
De certo que sim:
pois bem, foi verdade…
Cá na majestade
das selvas sem fim
Também tem quem cante...
(Natos trovadores)
Também tem atores...
– Não vês o japiim?!
* *
*
(Melhorado: 1930).
REFERÊNCIA
LIMA, Francisco Peres de. Folk-lore Acreano. Rio de Janeiro: Brasília Editora-Rio, 1938.
SOBRE O AUTOR.: Amâncio Leite, um cearense acreanizado, viveu em Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá, Acre, no início do século XX. Foi seringueiro e um exímio poeta regionalista. Sua poesia desvela a vida dos seringueiros e seus anseios no seio da floresta amazônica. De sua autoria tem-se registro de um livro intitulado “Os cantares seringueiros” que veio a lume por volta do ano de 1930, dos quais sabe-se da existência de raros exemplares.
Um comentário:
BELO POST, AMIGO.
AINDA PENSO QUE DEVIAS ENCONTRAR A LENDA DO MAPINGUARY.
LEILA JALUL
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