O texto abaixo foi retirado
do livro “Dez anos no Amazonas (1897-1907)”, capítulo XII, escrito pelo
paraibano de Patos Alfredo Lustosa Cabral (1883-1960), publicado pela primeira
vez em 1949, com uma segunda edição em 1984, sob os auspícios do então senador
Jorge Kalume. Alfredo viveu esses dez anos no Seringal Redenção, no Alto
Tarauacá, que era propriedade de seu irmão Silvino Lustosa Cabral. Esse relato
é interessantíssimo pela riqueza de detalhes, lugares e personagens a que se
refere o autor. É um trabalho como poucos para a história de Tarauacá.
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Com a notícia das vantagens
de Redenção, o povoamento se intensificou de rio acima, por toda parte. O
cearense atrevido assenhoreou-se até às cabeceiras. Alguns deixaram a vida
naqueles confins de mundo em troca de umas quinze ou vinte curvas do rio já
transformado em igarapé. Pouco importava que morressem, outros lhes iriam
suceder. Era preciso engrandecer, dilatar a superfície da Pátria e assim evitar
que o peruano surgisse pela divisão das águas no Urubamba e se apossasse
primeiro. Por isso morria um e chegava cinco para o substituir.
Para um aumento de revezes
estourara no rio Acre a luta do seringueiro com a Bolívia, encabeçada por
Plácido de Castro. O governo cruzou os braços sem o menor auxílio, sem enviar
pelo menos um paneiro de farinha e uma saca de açúcar para a chibé daquela
gente.
As praças de Manaus e de
Belém, que tinham seus capitais espalhados naquele rio, viram-se forçadas a socorrer
e ajudar, clandestinamente, com munição de boca e guerra o seringueiro que, num
ímpeto de rebeldia cívica, insurgira-se não consentido o estrangeiro tomar pé
em suas terras.
A luta agravara-se de mais a
mais com tendência a periclitar a situação dos brasileiros ou melhor dos
cearenses.
Plácido de Castro vendo as
coisas um pouco turvas enviou ao Tarauacá um emissário com poderes de
requisitar forças dando patente de capitão para os donos de seringal que
conduzissem pelo menos vinte homens.
Todo o rio acelerou-se, todo
mundo queria ir.
Meu irmão e outros
proprietários trataram de organizar elementos combatentes para seguirem à linha
de frente.
Íamos sair quando chegou
outro emissário para comunicar que as hostilidades haviam cessado com a
rendição incondicional dos bolivianos.
Fato curioso é que, naquela
época, segundo ouvi dizer – não tenho certeza –, esteve também por lá o
“colega” Getúlio Vargas (colega na idade e na espingarda) incorporado às forças
do coronel Antônio Olímpio da Silveira,
veterano da Guerra de Canudos, de Antônio Conselheiro, na Bahia.
Entretanto os batalhões do coronel não tomaram parte na ativa durante os
combates da revolução acreana. Ele, o coronel, lá esteve, de fato, mas para
garantir a ordem e as fronteiras.
(justifico chamar Getúlio
Vargas de “colega”, porque também estive incorporado a um batalhão de
seringueiros, no rio Tarauacá, quando chegaram as notícias da rendição dos
bolivianos a 24 de Janeiro de 1903.)
Terminada a guerra, os
combatentes proclamaram a independência do rio em República Acreana. Adotaram
um pavilhão como símbolo da Pátria e outras coisas mais.
Posteriormente, foi o
litígio resolvido a favor do Brasil pela sábia diplomacia do Barão do Rio
Branco.
O Governo Federal
constituía-se senhor das terras em questão, que dali por diante nem eram
República Acreana nem tampouco pertenciam mais ao Estado do Amazonas, e sim ao
Brasil. O grande Estado protestou o ato do Governo Federal e constituiu Ruy
Barbosa, como advogado. Este abandonou a questão tempos depois.
Ficou criado o Território do
Acre com jurisdição própria, independente, abrangendo o Alto Purus, o Juruá e
seus tributários com área de cento e noventa e dois mil quilômetros quadrados,
conforme dados geodésicos feitos posteriormente, delimitado por uma reta que partia
do Rio Abunã, afluente do Madeira, às cabeceiras do Javary. Foram criados os
departamentos do Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. Neste último foi
inaugurada, na foz do rio Moa, a cidade de Cruzeiro do Sul, tendo como prefeito
o General Gregório Thaumaturgo de Azevedo, que nomeou os tenentes do exército,
Guapindaia, delegado do Juruá, e Luiz Sombra, do Tarauacá, com atribuições de
resolverem todos os problemas atinentes ao policiamento e negócio dos rios.
Em todos os seringais
encontrava-se uma autoridade investida de poderes – o inspetor de Quarteirão.
Coube a mim, em Redenção, esse belo emprego. Todas as brigas e encrencas, que
surgiam, eram resolvidas pelo Inspetor que, depois, dava conta ao “tenente” dos
ocorridos em sua circunscrição.
Desempenhei o cargo por
espaço de um mês, passando o exercício a outro.
O Sombra pintou horrores –
prisões violentas, humilhações –, causando vexames aos tímidos. Muitos, ao ter
notícia de que ele vinha pelo rio, fugiam para o mato. Viajava o delegado em
batelão com três soldados apenas.
Quando voltava do alto rio,
conduzia dez, doze criminosos para Cruzeiro do Sul.
Andava à paisana. Passando,
certa vez, no porto da barraca de um seringueiro, onde o rio era entupido de
paus e a custo a canoa passava, desviando-os, o Sombra ralhou áspero com o
mesmo por não conservar o rio limpo nesse local.
O seringueiro respondeu-lhe
que não era fiscal de rio. Pouco estava se incomodando com o seu entupimento. –
Você sabe com quem está falando? Não, porque nesse rio está andando muito vagabundo,
respondeu o seringueiro.
O tenente não deu palavra,
tocou de rio acima. No primeiro barracão que encostou deu ordem ao Inspetor de
Quarteirão para prender o sujeito. Na volta, quero-o preso, disse. O Inspetor
foi sozinho à casa do revoltoso conversar sobre o assunto. Este declarou que
não se submetia a ninguém.
Mas você desobedeceu à
autoridade, aquele senhor é o tenente Luiz Sombra, falou o Inspetor! Não o
conheço como tal, passou por aqui um indivídou sem farda agredindo-me, por isso
reagi e reajo tantos apareçam, respondeu o seringueiro.
Quando o Sombra chegou,
perguntou ao Inspetor: cadê o homem?
Está na barraca e não
obedece a ninguém, respondeu. Disse que V. Sa. não estava fardado e
o dono da casa era ele.
O tenente vestiu o dolman desceu com seus três homens.
Chegando à barraca encontrou a mulher daquele valentão chorando.
Daí a pouco o seringueiro
saiu do mato armado até os dentes, dizendo: – Agora reconheço que estou diante
de autoridade. Baixou a boca do rifle e entregou-se à prisão.
O seringueiro conhecia a
disciplina militar, havia sido soldado na campanha federalista do Rio Grande do
Sul.
O tenente Sombra viu que
aquele sujeito era de muita fibra.
Relaxou prisão.
Nesse tempo esteve em
Redençã o padre Antònio Fernandes. Benzeu a igrejinha e celebrou missa.
Convidou-me, antes, para
juadá-lo, respondi que não sabia. O sacerdote oficiou sem o sacristão... Não me
envergonhei, pois, das cinquenta e tantas almas que se achavam ali presentes,
não se tirava uma que desempenhasse a missão. Não houve batizado, confissão nem
casamento. Ali não existia mulher, elemento esse indispensável em toda parte.
Era tio do general Juarez e
do atual deputado Fernandes Távora, do Ceará.
Todo dinheiro que ganhava
era para educar os sobrinhos. Falava bem a língua dos gentios.
CABRAL, Alfredo Lustosa. Dez
anos no Amazonas (1897-1907). Brasília: Gráfica do Senado, 1984. p.53-55
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